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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

* Texto lindo de minha Maria. Uma confirmação. Uma profissão de fé.

Ainda não entendemos como o tempo,
tão curto ainda, 
existe em função de tudo 
que se pode realizar numa vida inteira. 
Já confessamos um segredo perigoso, 
do tipo que se guarda para sempre, por medo ou vergonha. 
Já curamos males que ciência ou mesa de bar alguma consegue tratar. 
Já pintamos uma janela ouvindo música. 
Já acordamos ao som de “Eu te amo”. 
Já envergamos. 
Já arriscamos. 
Já o vi chorar. 
Já temos um jardim. 
Já bebemos como dois velhos amigos. 
Já dançamos.
Já assistimos a uma apresentação do Suassuna.
Já experimentamos as primeiras alianças, que trançamos um para o outro. 
Já nos seguramos firmes, como só irmãos podem resistir.
Já nos presenteamos nos dias comuns do ano. 
Já nos surpreendemos. 
Já manifestamos, como o Dragão do mar. 
Já coincidimos prazeres no escuro.
Já escolhemos nossa música com todo o sentimento. 
Já caímos e levantamos. 
Já nos movemos por fé. 
Já perdoamos falhas dolorosas. 
Já podemos enfeitar mais de um álbum de fotografias. 
Já nos buscamos, cedo ou tarde do dia, em outra cidade ou num barzinho da rua. 
Já sei, de cor e salteado, as suas poesias. 
Já velamos o sono de cada um.
Já nos cuidamos, quando muito cansados.
Co(n)fundimos os nossos nomes.
Já dormimos nos beijando. 
Perdemos, e as vezes são inúmeras, as horas. 
Todos os dias, recebo suas palavras róseas. 
Todos os anos, em seu aniversário, dedico a ele as minhas melhores e mais raras letras. 
Já perdemos as formalidades superficiais, aquelas que acusam somente distância, 
as pertinentes ainda não, que a admiração não nos deixa dispensar o trato gentil.
Já brincamos com travesseiros e beliscões.
Já nos aconselhamos.
Já nos amamos.

domingo, 24 de novembro de 2013

Porvir


ainda não compensei os convites ausentes,
tampouco estanquei o desejo irrefreado de vê-la invitar-me,
não percorremos caminhos interioranos
nem comparei à piçarra molhada sua pele morena;
ainda não olhamos atentamente o mar, embevecida e demoradamente,
sequer admiramos o ocaso ou deitamos vista sobre o oriente;
não desenredamos todas as curas, também não curamos todas as exegeses;
ainda não a vi afligir-se de cansaço
nem lhe dei a oportunidade de partir em paz;
não recordamos o suficiente, sequer apuramos o tempo da memória;
ainda não viajamos, não cozinhamos juntos, não desenhamos coração no pulso,
não pusemos cria no mundo, não nos abraçamos no dia do aniversário,
não nos despedimos com um volte logo, não nos cobramos presença,
não perdemos por completo a formalidade;
ainda não preenchemos os vazios, não lemos poema de Quintana
ou nada compusemos a quatro mãos, a não ser o futuro;
não nos beijamos sob as luzes de artifício do réveillon,
não segredamos dores, não assistimos a um casamento,
não adormecemos ao som de "Eu te amo";
não acariciamos as paredes recém-erguidas de nossa casa,
não nos amamos na chuva, em noite de quintais.
Ainda não nos convencemos dos contrários
nem desacreditamos da imanência dos acasos;
não tomamos vinho tinto, não mergulhamos com golfinhos,
não viajamos a Paris, não nos preocupamos com as horas navalhadas;
ainda não perdemos as comparações, não arrefecemos o ciúme
ou adestramos a saudade;
não recebemos a visita dos nossos, não dançamos sozinhos no meio do salão,
não montamos álbum de retratos, não fomos ao cinema,
não trocamos carícias diante dos amigos,
não nos presenteamos no Natal;
ainda não ouvimos estrelas, não pintamos nosso quarto,
não nos queixamos das ausências, embora breves;
não levamos um filho ao hospital, não combinamos surpresas,
não adivinhamos frases, não experimentamos as dores alheias,
não tememos o dia seguinte
nem perdemos a fé;
não noivamos, não casamos,
não penduramos na parede da sala de estar
a fotografia de família;
ainda não assistimos a uma apresentação de Alceu,
não cultivamos orquídeas,
não desacreditamos das flores,
não choramos o suficiente;
ainda não tomamos café na cama,
não passamos o domingo no aconchego de uma rede;
ainda não nos livramos dos vícios,
não nos precipitamos no abismo,
não saltamos de paraquedas,
não despressurizamos a cabine,
não nos esperamos no aeroporto,
não arrepelamos as últimas farpas,
não tomamos sorvete de cupuaçu,
não nos medimos a temperatura,
não nos arrependemos de nada;
ainda não permitimos derrotas,
não apadrinhamos ninguém,
não experimentamos as alianças,
não tememos as vias escuras;
ainda não entendemos como o tempo,
tão escasso, tão magro,
existe em função de tudo
que ainda não foi realizado.  

sábado, 16 de novembro de 2013



"Para tão longo amor, tão curta a vida."
Camões


          A vida nos conferiu a dádiva do reencontro. Instruímo-nos pelo tempo, pela espera, pela fé em algo distante e amorfo, mas orientador de crenças, justificador de desejos, que é assim, a estender a mão, a forma mais inteiriça de súplica. Se tudo começou por um gesto de amor, se a própria existência assim se fez, não é diferente o que em nós irrompeu, como a construção do mundo, nas mesmas dores e essências da criação. Estamos pelo que se fez desse universo erguido sobre as distâncias. Somos pelo que se apresenta até onde as vistas arpoam, caminhos longevos e sinuosos, que assim são todas as trilhas. 
          O amor está nela há mais tempo, não há dúvidas, pelas razões mais inesperadas, que era apenas uma menina, mais sustentada pela clarividência do olhar atento do que pela gana de permanecer de pé. Encantou-se comigo de primeira. Será verdade? Precisamente eu, o ser mais insípido da face da terra, sem braços firmes, de pernas bambeadas de cansaço, arfante do cigarro, dependente inveterado das gentes que me cercam, distante, pálido, insone. Por que eu? A própria esperança embrionada em uma garotinha de ares interioranos e trejeitos formais atraída por um professor simplório e alheio a todo o plano que começara a se desenhar a partir daquele momento. Entanto, apesar de as imagens desse tempo se distanciarem - se fossem impressionistas, haveria mais nitidez pela distância, mas as tenho surrealistas - vejo-a ao lado do namoradinho de escola, tão combinados, sem nada a pesar-lhes nos bolsos, a cabeça despida de comparações, que eram os primeiros exemplares de um mundo que, até então, não se abrira. 
          O ano acabou, e a primeira distância veio. Passei tempo sem vê-la e confesso que não mais trazia comigo qualquer vestígio de sua presença. Porém, anos depois, ela retorna, carregada ainda do mesmo amor, talvez movida a duras penas por ele. Mulher longe das imagens colegiais, apesar do ar ainda maquinal de menina desamparada, mas era inteiriça agora, despertava atenções, desejos, malícias. Em mim, revelo, o que se deu foi curiosidade. O que faria essa menina por ali? Descobri depois que ela estava naquele lugar por mim. Será verdade? Justamente eu, desmerecedor de qualquer tipo de amparo, professor de tantos, aluno de poucos, fugidio, arisco, vazio como a pedra que educa, iluminado pelo sol das aspirinas, sempre de supermercado em supermercado a vasculhar cada prateleira em busca de felicidade. Dessa vez, aproximamos-nos, embora distância ainda houvesse. Fisicamente, estávamos próximos, mas as circunstâncias do tempo nos separavam. Tanto o tal tempo fez, que findou, mais uma vez, por nos separar, e eu crente que fosse de vez. A segunda distância veio.
             Vez em sempre, apanhava-me vasculhando sua vida. Sentia-me tolo, ameninado. Admirava-a de longe, sem o menor contato que fosse, receoso que era de modificar o que já estaria certo em seu caminho. Tive duas oportunidades e não aproveitei. A vida jamais lançaria mão de uma terceira margem. E aconteceu, por pura casualidade, outra vez nós dois em meio a tantos, próximos e ainda distantes. Deixei que ela passasse por mim duas vezes, para certificar-me de que os caminhos estavam livres. Reencontrei-a então pela terceira vez. Será verdade? Finalmente eu, que tanto esperei encontrar um lugar que me fosse comum, uma bússola que apontasse na direção de um futuro promissor e feliz, um amparo de quem nunca, por hipótese alguma, me soltaria a mão, uma espreguiçadeira à beira-mar que gritasse serenidade pela certeza de que mentiras e hipocrisias não mais haveria. Dessa vez, não mais nos separamos. Decidimos confiar nisso que os mais exaltados chamariam destino. Sim, creio que essa história não começou a ser escrita de agora. Estava escrita antes mesmo de se inventar a razão da existência. 
                 O próximo parágrafo é exclusivamente para ela. 
             Minha vida, amo-a sem imprecisões, de forma pura e independente. Em você, descobri passo firme, liberdade de ser o que sou e o que não poderia ser. A paz reside em seu sorriso, mais que simples sorriso, a medição de todos os sorrisos. Sua força, que fortaleza essa! Como braços tão pequenos e mansos podem sustentar tantas vidas?  Se seus braços faltarem, tantos cairão. Quanto orgulho sinto dessa minha pequena, minha morena de todas as horas, que cabe tão bem no meu abraço, que me acolhe de forma tão solidária. O que dizer senão da imensa alegria de tê-la a pintar minha casa com as tintas da esperança. Não, amor, não vou impedi-la de fazer nada. Apenas caminharei ao seu lado, sem qualquer resquício de distância, para que eu possa, aos poucos, retribuir o que foi feito por mim. De seus olhos quais enigmas, desenhos de Nazca, renasci. Para toda a eternidade, estarei aqui. Exatamente aqui, onde sempre estive. E a terceira distância, depois de crisálida, metamorfoseou-se em amor. 
          

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Via crúcis



          Em uma barraca de praia, há pouco, um homem que, como todos por ali, aproveitava o feriado em conversas fiadas, petiscos variados e cervejas geladas deu de estrebuchar, contorcer-se e cair. Estava morto. Na mesa ao lado, eu apenas observava o tumulto. Choro de quem quer que seja não houve. Apenas o baque, o arrebatamento inicial de quem não esperava que, em pleno feriado, ao pino do sol, em uma praia, alguém pudesse morrer. Aos poucos, mesmo com o cadáver estendido na areia, a normalidade tomava conta dos passantes. Em uníssono, uma pergunta. Como ele morreu? Hipóteses não faltaram. Coração entrevado, acidente vascular cerebral, alergia a caranguejo, engasgo, overdose. Mas, no final das contas, ao se inquirir o motivo de sua morte, conscientemente ou não, perscrutavam-se também as razões de sua vida. Como ele viveu? 
            Vivemos muito pouco, ao menos para o que realmente deveríamos fazer. Ao longo de trinta e seis anos, a vida me foi um tanto imprecisa. Sobrevivi a sobressaltos, colhi restos e apaziguei lembranças. Por vezes, fiz escolhas torturantes, dessas que deixam estigmas profundos na alma. Extirpei passos promissores, senti dores terríveis no ombro e nos joelhos. Descobri, a duros entraves, que felicidade não se compra a granel, tampouco se engarrafa ou se perde em fumaças. Senti cada poda, desviei a atenção de mim, empobreci-me. Lutei como qualquer brasileiro, dei-me às promessas de um futuro profissional sólido, dediquei-me, na maioria das feitas, às coisas erradas. Deixei de pedir perdão quando deveria e cheguei a pedir demais quando não mais existia fé. Desacompanhei minha cria, fui acusado de inúmeros crimes dos quais, por contradição, não me sinto réu. Tolerei as mais vis lembranças e carreguei a cruz de todas as culpas do mundo, qual Cirineu. Se me fosse dada a oportunidade de redesenhar algo, que se afastasse de mim, pois, o cálice da culpa.
            Caminhei, por certo, em passos desastrados, mas sempre fui diligente no que concerne à vida alheia. Nunca me permitiria atravancar caminhos há muito escritos. Ausentei-me inúmeras vezes para não conduzir comigo a falta de ter, ainda que sem intenção, desviado o destino de outrem. A frialdade das coisas, o racionalismo mais impertinente,  a descrença em quase tudo, isso me protegia e me desconstruía a cada insônia. Entanto, acreditar no que está escrito é inerente a quem se dispõe maquinar tolices no papel. Algo de primordial existe na essência dos seres, o que não se revela e está lá, da maneira mais velada, mais impressentida. É essa essencialidade, a confundir-se com desejo e lembrança, que chamo destino. E se, por desleixo e egoísmo, desuni mãos que, por hipótese que fosse, nunca deveriam se desenlaçar? E se participei, mesmo que involuntariamente, do sofrimento de alguém que, por me ser desconhecido, terminei julgando ser merecedor de mágoa? E se interrompi histórias reais por razões imaginárias? E se a tinta que ora emprego fosse apenas para cobrir outros traçados, que, de tão marcados na página, fingem apagar-se, até que a folha seja posta contra a luz? 
            O homem morreu na praia. O mar não se abriu para recebê-lo. A conta de sua mesa ficou por ser paga. Amparado por estranhos, descalço, pálido. Imaginando-o no céu, seria ele a única nuvem no estirão azul. O vendedor de queijos não choraria por ele. A mulher magra de biquíni não o amaria. O garçom atento às mesas entupidas de comentários não o abraçaria. O guarda-vidas não o ressuscitaria. O boyzinho não abaixaria o volume do rádio. Estendido na areia, jazia um corpo franzino, leve por não mais trazer consigo as culpas que lhe foram impostas. Cumprira sua sina, trilhara sua via-crúcis. Nome não tinha. Como foi mesmo que ele morreu?

domingo, 3 de novembro de 2013

a resistência das coisas



                         a casa é longe agora,
                         entretecida de taquaras,
                         tabiques espessos, argamassa em taipa,
                         nem joão-de-barro, arquiteto nato,
                         sonharia erigir, que em sonho
                         não se ergue casa assim.

                         a casa de longe
                         parece morada de gente, de bicho,
                         som de passarinho, viola e latido,
                         tudo é de papel, sofá-papel, mesa-papel,
                         espelho-papel: o dia comum,
                         o açude verde, o jitó olho-d'água.

                         a casa de outrora
                         avermelhou-se na distância,
                         armou rede na parede quebradiça,
                         rangeu pelo íntimo da noite
                         um ranger de tanger o juízo,
                         de britar o tempo na moenda do engenho.

                         a casa de antigamente
                         meou-se de repente, acidulce, terra e pão,
                         piçarra molhada e batida, rosto de cimento queimado;
                         distanciei-me não por acaso ou morte,
                         que sou feito a taboca entrelaçada no barro:
                         o fado da casa é dizer adeus.
                       
                       
                         

segunda-feira, 28 de outubro de 2013



Flores, que contradição!
Murcham no vaso,
Brotam no coração...

domingo, 27 de outubro de 2013

Palavreiro


Quanta falta faz
a palavra simples,
que é lavra constante,
o verbo gestante,
o advérbio mocho,
o adjetivo frouxo,
o substantivo.

Não encontro mais
a palavra eclipse,
a que pede água,
a que reivindica,
a que mente ao filho,
a que morde e fere,
a radioativa.

Algo ainda me traz
a palavra dia,
que se oculta em gestos,
que recolhe os restos
e devolve amparos
na diária fala
rouca de calar.



   




            Todos os dias sem resposta, as incógnitas do tempo, as mensagens sopradas ao acaso ou o próprio acaso por mensageiro, as vincas no rosto... seja amor?
            De bater demais, coração desmazelado abriu janela. Que mundo é esse? Gigantesco...
            Se não reconheço passos antigos, levo-os comigo...
            Palavra...nada demais, senão essência, o próprio umbral, passo novo a alimentar-se do caminho...
           
            

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Cântico



Tem mais música no desterro,
na angústia, nas extremidades,
mais acordes nas banalidades,
nos bares, na penumbra dos olhares,
nas gotas, no retinto dos asfaltos.

Tem mais música nas gentes opacas,
nas horas e nas noites incandescentes,
nas antessalas, nas baionetas e estilhaços,
mais partituras nos veios dos rostos salobres,
na tenaz insistência dos recomeços.

Tem mais música no patrimônio furtado,
nos desapontamentos, na devassidão,
na doença, na clave sem dó nem privacidade,
mais melodia no gesto figurativo,
no braço estendido do ocaso, nos dísticos.

Tem mais música na ferocidade,
nos pulmões entupidos de cinzas e insônias,
nos braços ressequidos dos renegados,
mais harmonia nos sentimentos antigos,
nos baixios habitados por indigentes.

Tem mais música na criatura morta,
na criança perdida, nas bestas,
nas caricaturas sentimentais,
mais poesia nas cidades assoladas,
no abandono das crenças, nas farsas.

domingo, 13 de outubro de 2013

Sobre ontem e amanhã



           Fui pequeno, mais do que o necessário, invisível pela própria condição, sem sumo, um sobrevivente que a vida deu de jogar na praia, por isso mesmo um pária entre gigantes. Sem irmãos, apoiei-me em amigos vários, de todas as massas, seres luminosos por certo, infalíveis em seus conflitos, implacáveis em suas divergências, apenas amigos, fraternos porque os decidi assim, meninos sem religião ou pudor, conhecedores de todas as manhas do conhecer, o destino a desafiar a genética, o negro gago e falastrão, o órfão de irmãs cortejáveis, o simplório de seis dedos em cada mão, o ariano insosso de olhos azuis, o magriça estudioso e aprisionado, quantas faces sem nome, a palavra que os define não fora dita, que são mais, mais que o sentido de toda uma infância, mais que uma vultuosidade na memória, mais que um derradeiro encontro na antiga quadra de futebol, agora meu coração é essa quadra, e todos ali estão, ensurdecedores, desbocados, como em um porta-retrato em feitio oval. Tornei-me, pela suprema ironia, professor, e de Português, um néscio, um leitor limitado, mas que, aos poucos, deu de riscar mundo com retóricas convincentes, de apaixonar-se pela persistência, as árvores, as nuvens, as letras, não havia mais diferença entre as coisas, tudo passou a ser criação e análise, forma e conteúdo, diegese e exegese, e os alunos, os sorrisos, suas percepções, sua apurações, seus rostos aflitos apontados para as janelas, e eles, muitos deles, de olhares atentos postos sobre meus trejeitos caricaturais, dominei-os por não ser um deles, e ainda assim permitir que se aproximassem o suficiente ao ponto de abraçá-los com ironias. Veio-me João, meu filho, espelho de carnes rijas, anunciante das boas horas, a doçura de seu choro, a obrigação de perenizar-lhe o sorriso, a catapora que quase o tirou de mim, as viagens e as falas distantes, os tempos em que não se havia tempo, as festas de pais sem o pai, a voz encorpando, o corpo gritando, os pelos, as mudanças. Fiquei sem pai, por que justo ele? ficaria sem mim, mas ele, por quê? não assistimos à  goleada de seu time de coração, não conversamos sobre o clima que muda sem fundamento, não previmos os números da loteria, não sentamos na areia da praia, não vimos o mar juntos, mas dei-lhe um neto que o abraçou. Fui tabagista inveterado, boêmio a embebedar-se de olhares, divorciado sem teto. 
             Diferente não sou, apenas a tudo que cri ser acrescento um passo: algo nobre, sem dúvida, mas inexistente para mim, até que, por destinação, peraltice das horas, em um (re)encontro fugidio, surgiu, sob as faces do dragão, o anjo que prometeu resguardar-me os passos, doce sob seu manto de mulher, um espasmo que me fez acordar de anos de uma hibernação complacente e descabida, um nome que eu não tinha e passei a ter, uma perspectiva de família, uma voz de perdão, um eu te amo depois do amor, um quê de menina em suas traquinagens, um posto assumido de sentinela, tão por acaso quanto o que se pode contar em uma noite de luas e vinhos, chegante nos ventos de agosto. Sou a ausência dos ponteiros, a mácula dos reflexos, a ponte que redesenha os rumos do futuro; sou, então, estranhamente sem medo, sem hábito. Além de tudo que continuo sendo. Sou amor por definição ou o que se permitir que eu seja. Sou feliz, por ora. 

sábado, 12 de outubro de 2013



Se soubesses que a palavra, a mesma que une e resguarda,
não tem poder de ceifar o que entre nós se embala.

Se soubesses que a vida, a mesma que tolhe e resvala,
não diz mais que teu nome, não existe sem teus olhos girassóis.

Se soubesses que o tempo, o mesmo que aprisiona e chora,
não segue sem teu encanto, sem teus dedos ponteiros.

Se soubesses que o espelho, o mesmo que invade e confisca,
não se crê sem tua imagem, sem tua face segura e moldura.

Se soubesses que eu, o mesmo de ontem e sem amanhã,
trago no peito algo que não se aquieta sem tua presença.


domingo, 29 de setembro de 2013

Oração à Maria


À mulher que me ensina, todos os dias, os caminhos do amor.

Guiai-me as horas, as horas plangentes,
as horas mortas, horas brancas, puntiformes,
as intermináveis horas deflagradas em minha direção,
as horas que não têm princípio nem hão de ter fim,
as horas que emergem de vossos olhares atentos.

Alertai-me, ó Mãe, das agruras deste mundo,
que direis uma só palavra para sobrevir o bafejo da criação
em vossas mãos de pétala, mãos de lavrar almas desafortunadas,
mãos que pingam em pingos ligeiros e impressentidos,
mãos de adivinho, de cura e protesto - aéreas. 

Permiti-me cumprir minha sina ao vosso lado,
sob a proteção de vossas asas, sereníssimas asas,
que sois dotada de asas, como pássaros ou anjos,
que sois, dos seres, a invenção, a matriz, não por acaso mãe,
maria, soberana, sóbria, madrigal. 

Estendei vossas bênçãos a quem por vossa presença clama
por reconhecer a divindade de vosso nome, 
a prosperidade de vossa estirpe, o emoldurado de vossos
olhos vitrais... Vinde, Rainha que temeis a apostasia,
rogai, docemente, por este que em vós habita.



O menino que catava nuvens



         Desde sempre, o pequeno perdia-se mirando o céu, imaginando formas nas nuvens. Tanta nuvem, que perfeição. Bicho, gente. Numa dessas, apareceu um tigre-de-bengala, presas gigantescas, perseguindo uma lebrinha inocente, pega-não-pega sem fim, e nunca se viram garras tão sanguinárias. Quando deu de montar no dragão algodoado, o céu transformou-se em tela de cinema. Já viu nuvem tão grande, de não se ter quase nada do azul, que preferiu nem arriscar forma qualquer. Tapete, parecia tapete, ou rabo de gato persa. 
            Finalzinho de tarde, vermelho de dar gosto, e ele lá, catando nuvens com um galho encantado de carrapateira. Mas, como por encanto, o céu virou clareira. Nuvem mesmo, só uma, miúda demais, disforme, mais parecia investigar quem de baixo insistia na vigília. O menino, um tanto chateado, jogou de lado o galho, que encanto já não tinha, esperançoso de um céu diferente no dia seguinte. 
            Demorou até a tardinha do outro dia espreguiçar-se nas horas. O céu estava com cheiro de nuvem. Correu o molequinho para o quintal, sem galho, sem nada, só a vontade de imaginar quais desenhos estariam ali suspensos. E nada. O céu não passava de uma imensidão azul, uma abóbada fria, um tecido sem pintura. Apenas uma nuvenzinha passeava por ali, despretensiosa, nanica, sem graça. Dessa vez, o menino demorou-se um pouco, tentou dar forma àquela nuvem. Cachorrinho poodle. Bicho-da-seda. Bobagens. Onde estavam os tigres e os dragões?  Tentaria novamente no outro dia. 
            Mais uma tarde de puro azulado no céu. O menino chegou a pensar que as nuvens deram de fazer greve. Menos ela, a nuvenzinha, que descrevia, como passeasse, seu caminho sem pressa. Nuvem besta. Pequena, teimosa. Esticando-se toda, até parecia um sorriso, desses de canto de boca. Nuvem preguiçosa. Se ao menos desse de ser mais ligeira, poderia ser a primeira bala disparada no campo de batalha. Nem isso. Se fosse um pouco maior, poderia ser jipe, dos de guerra. Mas era nuvem atarracada, baratinha albina. 
             Mais uma tarde, e o menino desabou para o quintal. Agora o céu já não mais espantava por seu deserto. Nuvens havia, e muitas, de todas as espécies. Ele alegrou-se. Mas, mirando a imensidão, deu por falta de algo. Correndo vista de ponta a ponta, viu que a nuvenzinha de todas as tardes não mais por ali estava. Nuvenzinha besta. Parecia barba de avô. Nuvenzinha que podia ter feito greve, como as suas companheiras, mas decidiu riscar céu, sem medo. E o menino, que por dias sentiu falta das grandes nuvens e seus mirabolantes desenhos, guardou o mistério da ausência de uma nuvenzinha sem forma. Outros dias, o menino estaria pelo quintal catando nuvens. Mas antes de qualquer coisa, como por hábito, perscrutaria o céu de ponta a ponta à procura daquela nuvenzinha, tão pequena perto das outras, tão besta. Tão maior agora do que o próprio firmamento. 

domingo, 22 de setembro de 2013

A propriedade do professor


Ao amigo Webster Lima, in memorian.

          Professores deveriam ser imortais. Em um mundo atribulado, resguardado pela frieza das máquinas, das impessoalidades, quem ainda é capaz de distribuir algum tipo de humanidade é o professor. Quebrem-se os aparelhos de telefonia móvel, interrompam-se as redes sociais, apaguem-se as luzes, mas nunca, nunca mesmo, silenciem um professor. Sequer a morte, despreparada, cega, injusta, nem mesmo Ela em sua sacrossanta labuta de reciclar almas pode limitar o alcance da voz de um professor. A despeito das maquinações, das desumanidades, da capitalização do conhecimento, a palavra de um mestre, na melhor acepção do termo, pereniza, não teme as estiagens dos que mercantilizam a educação. Ser educador é conhecer. Conhecer gente, conhecer caminhos, conhecer atalhos e saídas, conhecer-se, reconhecer. Ser educador é ser, nada mais, apenas ser, e, nessa perspectiva ontológica, deslocar-se de si para o outro, sem amarras que o impeçam de vasculhar, palmo a palmo, as necessidades de quem por ali se abanca à procura de entender o que quer que seja. Ser educador é mergulhar sem medo nas profundezas oceânicas das relações humanas, enquanto alguns, os que se dizem especialistas, apenas observam da praia. Ser educador é irritar-se com as mesquinharias, as quinquilharias dos que possuem no peito uma engrenagem ou um chip, ou pior, um cofre cheio de coisas vazias. Ser educador é admitir que se pode sobreviver sem as instituições, mas as instituições morrem sem a presença do professor. Ser educador é tatuar na retina do aluno as melhores expectativas possíveis de futuro, é embutir nele o germe da alegria, da esperança, é ralhar de vez em quando, na vontade de gritar que se ama, mas com a decência de pai que protege a cria, mesmo que, para isso, tenha que machucá-la um pouco. Ser educador é ter propriedade de fala e conhecimento e não ser propriedade. 
           As palavras que cá exponho não se devem entender como epitáfio ou revolta. São o que são, palavras. Direcionadas a quem necessita delas, a quem as compreende, a que as tem por verdade ou mentira. Por fim, ser professor é quase tudo, menos submeter-se. Ser professor é ser um subversivo, um comunista mesmo, um bolchevique guevariano da melhor estirpe.  Não há professor que não ame o que faz, uns menos, outros mais, uns mais exaltados, outros um tanto conformados, mas são formas diferentes do mais puro e necessário amor. Seja como for, depois de refletir um pouco, vejo que professores não morrem. Morrer é curva na estrada, já diria o poeta. Morrer é ser esquecido. Jamais esquecemos um bom professor. Jamais. 

domingo, 15 de setembro de 2013

Quadrilha para recordar



O que me compele:
não tua presença,
senão a lembrança,
vestida de afeto,
pois eras pequena,
assim sem caminho,
tão longe de tudo,
tão quase moleca;
às vezes, encanto,
em outras, desejo.
Algo me condena
ao ver o teu rosto
de novo irrompendo...
– De novo! De novo!
Não sei se de longe
te aprumo tocaia,
te empurro ao passar;
nem olho de lado,
faço por vingança,
fingindo um acaso.
Não posso mais nada,
somente esperar
se não no decênio
de que me falaste,
talvez num desastre,
quiçá tempestade,
chuva de granizo,
mandinga de tia,
unguento de feira,
um resto de mar.
Que faço? Te espero?
Te deixo passar?
Te castro, te engulo,
te aborto, te cuspo...
Qual nada, vacilo!
Se penso, desisto,
se intento, me amanso,
sou pouco demais
com tempo de menos.
Achei ter virtude,
pensei te encantar...
– Já era! Já era!
De tudo que faço,
de ontem, de hoje,
só fica o desejo,
mas esse é tão besta
que chego a te ver
casada comigo.

Ateus olhos




          No princípio, nada. As músicas, as mesmas.
          Crivado, assim o peito, de nãos,
          a oblíqua indecência das horas,
          a fúria, a fuga, a farda,
          maquinal o que me tornei,
          linha de produção desumana:
          o tilinto dos copos,
          a deflagração das fumaças,
          a puntiformidade das carnes alheias.
          Brutal, mais que, invasivo:
          as horas dias, os dias meses,
          os meses anos.
          Caiei-me à solitude, dilatei-lhe as pupilas,
          acolhi-a como se cão sedento,
          não existe mística na dor, quando de dor não passa.
          Fui sem ser, caminhei lonjura de tontear,
          senti fome de gente, de palavra que fosse,
          de palavra pintada,
          de palavra árvore,
          de palavra embrulho,
          de palavra fósforo aceso,
          de palavra xadrez,
          de palavra rosa.
          Quedei à margem de alçar voo desasado,
          bem que antes, minutíssimo antes,
          sobreveio o que distingue,
          olhos macios de mãe,
          embornais os olhos,
          que ali as coisas não se põem por mero caber,
          olhos latifundiários, extensão a perder de vista,
          lupanários os olhos de aboio,
          olhos pela hora do Angelus,
          ateus por pouco não, de crença, outrossim,
          se olhos não, haveriam de ser mãos,
          pés, ventres, seios,
          neles, em cada peça quebra-cabeças,
          a palavra cria forma
          tão próxima de ...dor
          que até rima.
       
       
         

domingo, 1 de setembro de 2013

o que sou agora...




          O que sou agora, senão a espera? de tempos outros, apequenado, sou traço servil em escrituras inconvenientes, comigo os pesos. Se trajo a pretidão das noites, não por modismos, há um rescaldo, enegrecimento do que proveio dos vãos secretos. Final de tardes, céus de carne, cada vivente a um sol, o mar clareia, tão pacífico. O mar, o mesmo dos primeiros olhos, estranharia se me viesse de dentro. De pequeno, desmentiria as horas, que seriam espontâneas e fartas, a despeito da carreira agalopada dos dias. Cinco ou seis cercavam-me de infância, sem a cobrança dos tantos que viriam. Os livros em ciranda amansavam a brabeza dos ponteiros, que me vêm como placas de advertência, alertando das curvas sinuantes. Meus ombros doem, se anunciassem as primeiras chuvas. Dia em que vim, chovia. E chovo ainda. Não mais por fora. Uso palavras até que sequem completamente. O sumo de algo está nelas. Colhê-las, desmanchá-las, morrê-las, acreditá-las, o tempo as desiste. E o acaso as resiste, assim como faz persistir as demandas. O homem, o que lida com os epitáfios, este não mais, a não ser na estranheza. Falta-me a intimidade das noites, o acalanto frouxo da palavra, mesmo dita por obrigação, preferível ao silêncio. Amo. Desniveladamente. Diversos amores. Maria, João. Um por tanto, outro por intenso. A um digo quase pouco; a outro, quase nada. Que hoje é de dizer, daí o motivo de palavras tão circulantes, sem forma, embora geométricas. De quanto tempo precisamos para principiar amor? vidas, meses, átimos?  e isso, em tropel invasor que me desafia a insônia, penetrando como facho de primeiro sol pelas frestas da alma; isso que tange sonoro pela anunciação de algo, em pele, morto e ressuscitado; isso que me nega os acasos e me compartilha futuros; não seria, pois, isso a mais urgente forma de amor? se digo, por razão vária, precisar de alguém, em indefinição, é que no livro de semas que inabilidosamente escrevo, a penas, todos os dias, um dos nomes que escolhi para o ente que amo foi esse, alguém, a essencialidade do que é ser, do que é sentir. Em páginas perdidas de calendário, sentimentalidades, se as atribuí forma e conteúdo, não as recebi em mesmo envelope, lacrado e perfumado. Lançar mão das palavras sem tê-las de volta, árvore que se derruba sem a contrapartida da semente, é o que me contém. E se a palavra acabar, não por carência das vinhas, mas por desleixo de quem deixara de adubar o solo? de tantas tessituras, a que me fala é a mesma que invade os olhos-de-abismo do enigma que escolhi decifrar. Escrevo agora, e por tempos a fio, a quatro mãos, duas das quais invisíveis. O que sou agora, senão desejo? se quero ser dessas mãos de vento, há de se abrir, a golpes ferozes, trilha em mata densa. E que me seja mais que bom-dia, que me seja mais que um filho no ventre do futuro. Que me seja indecente e leal, contador de causos antigos e inventador de coisas que cheguem da porta da frente, mimetizador de destinos e desfibrilador de sonhos. Os ossos estalam, vez em quando. Uma secreção amarronzada acompanha o pigarro. O dia em que, impelido, dei-me à sina do reencontro, comi manga verde com sal e infância, passeei descalço em praia de falésias e céu avermelhado, ouvi a primeira palavra de meu filho, palito-sem-paliteiro. O que sou agora? a todos os instantes em que aprendo a lida de amar, chamo-lhes felicidade. Sou, certa forma, feliz. Melhor estar. Agora sou.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Pleno, por dentro e por fora


E foi noite infinda,
vida não vingava,
momento era insônia,
qual nó de gravata.

A vida, que vida?
Que vida? Qual nada...
O tempo estancado,
página arrancada.

E eu feio, perdido,
por dentro e por fora,
sem luva, sem calço,
sem lua ou aurora.

E a vida, que vida?
A mesma de sempre...
chegou-se piedosa,
trazendo um presente.

Em forma de acaso,
vestida de ontem,
cheirosa das flores,
eivada de fontes.

Os olhos, tão olhos,
foz de simetria,
desejo de louco,
paixão arredia.

Se por insistência...
tudo nasce assim,
por que haveria
de não ser em mim?

Agora só canto
e danço sem medo;
a vida - Que vida! -
trouxe meu sossego.

Que faço? Agradeço?
Componho sonatas?
Saudade sem monta,
vontade danada!

O que não havia
se impõe, remoçando,
que, depois de tantas,
fui me apaixonando.

Se ainda sou feio,
não sei, pode ser,
mas vejo que, às vezes,
é bom não saber.

Por dentro e por fora,
nem mágoa, nem grito:
o que guardo em mim
é mais que um bendito...

É mais que palavra,
É mais do que o rito,
É mais do que mais,
É mais do que sinto...

Que a vida me leve,
de leve...que tarda!
Que traga, de tarde,
M.E.










           

domingo, 18 de agosto de 2013


Se não houvesse pela frente
teus olhos mansos e cansados,
nada de noite, nem dia,
nada de falta, nem açoite.

Se todo fosso encaminhasse
ao estradão do paraíso,
nada de carma, nem calma,
nada de bomba, nem arma.

Se em cada aço desse esteio
adormecesse a tua presença,
nada de fome, nem silêncio,
nada de livre, nem de nome.

Se a cada passo desejado
só um desejo se erguesse,
nada de medo, nem desculpa,
nada de culpa, nem degredo.

Se mais um dia, só um dia,
fosse o que fosse para nós,
nada de planos, nem glórias,
nada de restos, nem enganos.

Se os teus olhos, descansados,
no breu, notassem minha mão,
nada de hoje, nem depois,
nada de nada, só nós dois.

Se não se sabe amar, como lidar?




          Perdi, há muito tempo, as condições necessárias para estabelecer qualquer relacionamento amoroso com quem quer que seja. Esqueci como lidar com a convivência, com os amparos sentimentais, com as vidas entrelaçadas. Mesmo a simplicidade das mãos dadas, em passeio leve pela calçada, não me soa de modo natural. Abraço então, nem imagino por onde começar. Pensando nisso, recorri aos compêndios, aos conselhos dos mais experientes, para poder formular alguns requisitos básicos para se iniciar e, sobretudo, para se manter uma boa intimidade sentimental. 
1. É urgente desenvolver uma técnica de aceitação do outro. Compreender que felicidade sem compartilhamento é tão doloroso quanto tristeza. Ter coragem, sim, de ousar, surpreender, fazer a pessoa amada sentir-se aninhada. Flores não saem de moda e devem ser despendidas nas ocasiões urgentes. Se houver animosidade, se a infelicidade teimar, deve-se lançar mão do velho buquê de rosas, que cura e abençoa, anunciando dias melhores. 
 2. Não esquecer jamais a beleza do toque, do estar-junto, do abraço, do ladeamento. Amores, muitas vezes, vão-se embora ou, o que é bem pior, sequer principiam. Amar não é fácil, exige sangue no olho e desprendimento, mas não se deve abrir mão de si mesmo. Anular-se em função do outro é obsessão, doença. Amor é, em essência, libertação. Enquanto a pessoa amada ao lado estiver, sempre é preciso dar a ela motivos novos e convincentes para um próximo encontro, que pode ser o último ou o decisivo.
 3. O que se sente deve ser dito. Muitos murcharam antes do tempo porque se engasgaram com o que nunca foi dito. Se é amor, que se manifeste. Que se entendam, por serem óbvios, os processos que levam do sentir ao expressar. De um singelo eu-gosto-de-você até um preciosíssimo eu-te-amo, os rumos são desgastantes e tortuosos, mas, havendo o que dizer, faça-o com a verdade de quem sabe que momentos assim jamais serão esquecidos.
4. Alegria, o segredo de qualquer convivência. Sem ela, os dias passam rápido demais, desmantelando-se em rotinas e culpas. Parece-me fácil alegrar o ente amado. Uma mensagem de carinho, uma ligação inesperada, um encontro fortuito, pronto, os olhos recuperam-se de qualquer cansaço e os batimentos cardíacos seguem o compasso agalopado do nome de quem se ama.
5. Dizer a verdade é crucial. Expor-se como se é, sem subterfúgios. Se doer, que doa. Infelizmente, em tempos de internetização dos sentimentos, a dor insiste em não ser virtual. Mas, se for por uma verdade bem dita, ainda que doa, o tempo fará com que se olhe para trás e se tenha a impressão de que tudo foi feito por puro zelo, uma vez que mentir não extirpa a dor, mas torna-a uma metástase. 
6. Caminhar de mãos dadas é, sim, parte da história. No final, a memória vai fazer questão de guardar a integridade desses momentos. Entanto, deve-se ter orgulho dessas mãos unidas, sinais de bons presságios, de boas novas e esperanças.
7. Nunca se pode perder o encantamento. Mirar o outro com ternura, sorrir ao fazer isso. Sentir-se amado e amar como se fornecesse o essencial para dois crescerem unidos e intransponíveis. Dar-se ao olhar, reconhecer-lhe as carências, desvendá-lo. Cantar. É indispensável cantar junto. E gritar. E dançar. E rodar. Mesmo que não se saiba como fazer tudo isso. 
8. Terminantemente proibido é desistir do que se quer. Se vale o enfrentamento, à guerra! Esfriou? Ame mais, surpreenda mais, persista mais, enlouqueça mais. Amor é para os loucos. Dessa forma, tem-se que fazer valer o título de insanidade.
9. A presença nos momentos mais importantes é fundamental. Aniversário, Natal, Réveillon... momentos profissionais marcantes, formaturas. Ainda que os instantes carreguem-se de tristeza, que se esteja lá. O tempo não pode desatar nós que as mãos unidas conceberam com  tamanha urgência. 
10. Por fim, para amar, só há uma saída: realizar o amor. Cultivá-lo, dar-lhe de beber, alimentá-lo a todo instante; fazer com que as famílias se unam com isso, criar paz. É isso. Definitivamente, amar pressupõe paz. Não é cidade, é campo. É praia mansa, alisado de rabo de gato, dedo mindinho de bebê, café de mãe. É paz. Agora, por certeza, não há paz sem luta. Que essa serenidade venha sem receio e que o tempo, estranhamente generoso vez em quando, devolva ao amor a paz necessária para frutificar!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A seu tempo



tempo
tempero
intempestivo
da tempestade...
têmporas
teimosas tentam
contemporâneas
templárias
contemplação tanta
temporal em tudo
(ex)temporão


domingo, 11 de agosto de 2013

Domingo



          Domingo devia de ser feito árvore de natal, preenchido de luzes e motivos de celebração. Era de ser por comemorar o recomeço. Encontrei um relógio de bolso, banhado de prata, e chovia. Se alguém o perdeu, por puro descuido, é porque havia de parar comigo. Em verdade, já era meu. Apenas se deu conta disso em tempo de me surpreender. Todo domingo tinha de ser assim. Menino ainda, mamãe encontrou um cão de olho vazado. Aos poucos, o bichinho foi ficando. O que começou por piedade tornou-se paixão. Bem que o domingo podia ser como esse cãozinho caolho, a quem papai providencialmente apelidou de Lampião. A névoa no quarto, em clima serrano de menino, é o domingo que espero. A primeira vez no cinema, com meu pai, é domingo. As mãos enlaçadas pelo orgulho de amar, passeantes pelo desejo de esperançar de felicidade um mundo que já não se toca. É domingo. A frase que pede e que, a um só tempo, entrega, o compromisso selado materialmente pela aliança escondida debaixo da pedra, o primeiro beijo depois de tantos sem o mesmo gosto. Domingo. O vazio das horas preenchido pela presença maciça de um colo, um filminho por pretexto para o aconchego, o quarto cheiroso da pipoca, o sabor das primeiras namoradas. Apenas no domingo. O primeiro eu amo você, enquanto a vida se distrai da dor e dos temores, e os filhos que ainda não foram, ainda que jamais sejam, por ali ganham forma e, às vezes, até nome. Domingo. Não confio na segunda, que é de concreto. Domingo é o cartão do presente. Por enquanto, meus domingos são vazios, sem as luzes que lembram as festas. Mas domingos de verdade virão. Domingo devia de ser feito sonho. 

Sobre passarinhos e escaladas



         Dias desses, numa tarde de cair vermelho, figurinha pequena, desamparada por sua pequenez, mirava da forma mais antiga um pardalzinho equilibrista em um cai-num-cai elegante, dependurado no fio de energia elétrica. Quem imagina o que o pequeno sonhador pensava: se na fragilidade grácil daquela criatura ou se na liberdade descompromissada do passarinho que, por não ter ninguém que o alertasse dos encantadores perigos da vida, saltitava sem medo sobre o fio de alta tensão. O que se via era um garoto, o menor entre os seus, farolando as peripécias do pardal, imitando os movimentos do bichinho, sacudindo com certa ternura os braços magriços. E o menino voava, e caminhava leve sobre os fios elétricos, e cantarolava uma canção afinadíssima, e todos os pardais do mundo o reverenciariam. A gênese da felicidade. 
       Para ser feliz, tem-se que permanecer em alerta, estar atento aos detalhes. Cada traço a delinear as horas é motivo bastante de crença na vida. Viver, em sua mais pulsante plenitude, é que move os seres, e o que lateja em cada um são as despercebidas alegrias, essas que preenchem paulatinamente o tempo, aprimorando desejos e lembranças. É que somos trágicos, necessitamos de drama e atrelamos a felicidade a momentos de inigualável grandeza, o que naturalmente nos oculta pormenores. Se se escala a montanha, encantam o topo, a bandeirola fincada, o gigantismo das paisagem ao longe, em cartão-postal. Mas, no meio da escalada, uma pedrinha maldita dá de soltar-se e obriga o alpinista a reinventar instintos até conseguir, entre sorte e perícia, retornar à calmaria inicial. Anos e anos se passam, até que o escalador, agora aposentado, em um último passeio pelo que vivera, recorda a dita aventura. A paisagem de proteção de tela, a enormidade do paredão de pedra, a coragem de se chegar ao ápice, nada tem a mesma nitidez do que a pedrinha que o fizera escorregar. Uma pedrinha solta, maior que a própria montanha. Esta o fizera crer na chegada; aquela trouxera a importância de se respeitar o passo. 
         No final, apenas sobram essas pedrinhas, invisíveis por sua discrição, mas persistentes na memória. Há tempos deixei de lado as pedras e os pardais que trazem consigo a essência da felicidade. Preciso, então, retomar planos, desamarrar cadarços. Exatamente agora, vejo-me em outros tempos, sexta-feira, final de expediente, calças arregaçadas, a água do mar ainda morna correndo pelos pés descalços. E uma paz higienizava o espírito. Meu filho, ao meu lado, encalacrado no computador, risada arteira de menino, tagarelando novidades sobre qualquer assunto. É felicidade em sua raiz mais bruta. 
          A canção certa, quase terapêutica, tocada no rádio, sintonizada pelo puro acaso, faz-me sorrir. A cara enjoada de meu menino pouco antes do banho, faz-me sorrir. O instante em que se percebe o aluno aprender, pelos sinais naturais de seus olhos, faz-me sorrir. A ligação inesperada de um amigo há muito escondido pela rotina, faz-me sorrir. As palavras encaixadas em perfeito mosaico, fazem-me sorrir. O tempo que não passa ou a dor que passa, às vezes, fazem-me sorrir.
          Parece que alguns passarinhos ainda me encantam. Agora, não se pode ter receio ou vergonha de imitá-los, batendo asas que ali sempre estiveram, porque, para voar, antes é necessário acreditar no voo. Se é simples, não sei, e é até melhor que não seja. Ser feliz talvez seja simples questão de sorrir. Sozinho ou não, sobrevivendo ou não, acreditando ou não. Penso que retomarei o hábito de passear na praia ao final do expediente. Há riscos, por certo. Mas a felicidade quer de nós uma contrapartida. Ser feliz, pela própria subversão do ato, exige coragem.  

domingo, 4 de agosto de 2013

Princesa olhos d´água


Onde a pele alvorecendo
e as mechas traços de luz?
Onde as carnes vermelhidas
e os olhos plenos de mel?
Voz não há, senão palavra
que se apaga com o tempo.
E eu aqui no mesmo instante
em que, cheia de tortices,
toda a alvura transparente,
cor de sol em praia mansa,
devolveu-me delicada
a vontade de ser dois.

Sobre absolutamente nada


             Não quero mais escrever. Juro. As bobagens que derramo no papel surtem efeitos muito inesperados, na sua maioria negativos. Melhor guardar comigo o que merece ser guardado. Meu Deus, mas é quase impossível! E olha que já escrevi sobre muitas coisas. Amor, morte, saudade, política, educação. Agora estou propício a não dizer palavra que seja. Talvez o melhor esteja em tratar sobre nada.
               O nada faz parte da minha vida. Tornou-se, aos poucos, um carma e um motivo condutor. Quando menos espero, eis que ressurge o tal nada, em perseguição, provando que o passo seguinte não faz sentido, uma vez que simplesmente inexiste. Planos? Nem pensar. Somente com a irrestrita autorização do nada. Amores? Somente os impossíveis, os que chegam no instante errado e vão embora em tempo incerto. Futuro? Só se for o do pretérito. Por essas, decidi tratar sobre isso. Nada. É o que este texto é. Nada. É o que as pessoas, em geral, tendem a representar umas para as outras. Nada. É o que pensamos ou sentimos. Nada. Pior mesmo é entender que os cultivadores do nada são os mais inusitados. Se criamos expectativas em relação ao outro, idealizamos, passamos duas ou três demãos até mascarar as imperfeições mais grotescas; se inventamos planos, engomamos a roupa, compramos perfume novo, aí é que a pessoa a quem dedicamos tamanha mudança nos vêm conduzindo o abre-alas do nada. E sobra o que naturalmente sobraria. Nada. 
                    Não que eu queira exaltar o nada. Nada disso. Quero mesmo é fugir dele. Mas o bicho me persegue. Por mais que pareça que as coisas vão dar certo, lá vem o danado do nada roubar a cena, obrigando a começar tudo de novo. Já estou tão acostumado que a dor nem perde mais tempo comigo. Basta o nada. Quer saber? Chega. Se o nada me quer, que venha, que se acomode, que me adicione, mas que tenha a ombridade de respeitar ao menos meus momentos de insônia. Podemos, inclusive, dividir bem direitinho. O nada fica com o dia, a insônia cuida da noite. Nada mais justo. 
                  Pedindo agora uma licencinha ao nada, gostaria de fazer um último apelo. Último mesmo. Depois disso, nada. Bom, estou sozinho. Aliás, quando o nada entra em nossa vida, baixa-se automaticamente o aplicativo solidão. Voltando ao assunto, estou sozinho. Então, como ninguém se habilita a compartilhar comigo tanto nada, e quem tentou só contribuiu para a consolidação desse mesmo nada, resolvi tomar uma medida um tanto desesperada. Vou me vender. É isso. Um breve anúncio de classificados, na intenção de encontrar alguém que queira, assim como eu, não se livrar do nada, mas dividi-lo. 
                         Lá vai. Para começar, sou professor. Não tenho muito tempo, a não ser para o nada, como já foi dito. Creio que seja uma grande vantagem, já que a intensidade desse pouco tempo tende a ser inigualável. Além disso, posso, como professor de Português, corrigir trabalhos, tirar pequenas dúvidas em relação ao vernáculo. Posso até dizer o que é vernáculo. Isso sem cobrar, pedindo em troca apenas um pouco de atenção e carinho, o mínimo necessário para quem vem do nada. Sou de conversar e, se não houver assunto, invento. Falo sobre tudo, inclusive nada. Não sou tão privilegiado física ou financeiramente, mas posso compensar com bom humor, algumas tiradas irônicas, felicidade constante e algumas surpresas. Às vezes, quando há necessidade, procuro provar que, quando se quer realmente algo, as coisas se tornam possíveis. Ainda acredito em acasos, embora já tenha acreditado mais. Certa feita, alguém me disse que eu seria algo feio por dentro e por fora. Não caia nessa. Ao menos a primeira parte não é assim tão verdadeira. No mais, não sou de cobranças, quase não tenho ciúme, mesmo tendo aprendido recentemente que ser ciumento é, a um só tempo, ser vaidoso. Bom, se assim o é, não sou muito de vaidades. Bebo socialmente, e devo dizer que sou bastante sociável. Fumo, o que é horrível, mas, no ritmo das intenções de quem se interessar por este anúncio, posso pensar em parar. Danço conforme a música, dependendo, evidentemente, de qual seja a música. Não sou paranoico, possessivo ou deslumbrado. Escrevo. E prometo escrever um texto por semana em homenagem a quem decidir me adquirir. Levo comigo pouca coisa e muito nada.
                      Sinceramente, não sei se essa propaganda toda é capaz de tocar quem quer que seja. Opa! Relendo o exposto, notei estar faltando algo imprescindível em uma relação comercial, o valor do produto. Sou baratinho mesmo. Na verdade, aceito qualquer coisa, afinal, se for alguma coisa, já é melhor do que nada.


Sobre recalques e medos



          Às vezes, sinto o cheiro forte do medo, e isso me causa certo estranhamento. Se ainda fosse um medo que de mim escapasse, mas o que me chega é o temor alheio, sem fundamento algum, como se viver acuado e escondido gestasse algum tipo de prazer, o que, evidentemente, não passaria de uma espécie crônica, embora não rara, de obsessão ou devaneio. Um recalque, na acepção mais comum do termo.
          Dizer com isso que o medo não me atinge seria deveras pretensioso, por certo. Sentir medo, até certo ponto, é bom. Preserva, orienta, humaniza. Sinto profundo pavor, por exemplo, de que algum ente querido se ausente antes do tempo. Por isso mesmo, o esmero com que trato meu filho é quase patológico. Já perdi muito na vida. O que me vela é a companhia de meu pequeno, que, por ser menino, sente medo mais do que qualquer um de minha idade. Ainda assim, sei que ele jamais sairia de meu lado, a despeito de qualquer ameaça, viesse de onde fosse. Isso de não fugir à luta, independente da sanguinolência do predador, é o que creio ser amor de verdade. Se, pelas andanças da vida, encontramos um ser disposto a levantar bandeira conosco, sair às ruas erguendo cartazes e gritando amor a quem quer que seja; um ser imune a balas, sejam de borracha ou não, e consciente de que existem lágrimas muito mais profundas e incômodas do que aquelas causadas por gás lacrimogênio; se encontramos esse ser, devemos preservá-lo, como um tipo de arma secreta contra qualquer um que se atrevesse a interferir na democracia traçada pelos amantes. Escolher ficar com alguém exige coragem. Amar é um ato extremamente subversivo. 
       Entanto, existe um medo que apequena, que não faz o menor sentido, que se traveste de um protecionismo infundado. É a absoluta ausência de coragem. O outro medo, que preserva, é justificável por ser baseado na vontade de permanecer vivo e, com isso, continuar lutando. Agora, isso que tenho por descoragem subsiste porque não se enfrenta o que merecia ser enfrentado. Não se manda calar, sair, desaparecer. Apenas se aceita, da forma mais passiva, reverenciando o amarelecido da tristeza, da falta de sorriso, mirando os pés do carrasco como se ali fosse o único lugar para onde se poderia caminhar. Sei que sou pequeno e limitado para muitas coisas, sobretudo as que envolvem atividades físicas, mas, se é para encarar o que me impede de alcançar felicidade, vamos para cima, apanhando sim, morrendo um pouco sim, mas, acima de tudo, lutando pelo que se acredita. Creio ser um bom manifestante, em se tratando dos destraves emocionais. Algum pseudorrevolucionário pode, ao ler este texto, enxergar por aqui alguma forma de alienação. Pode ser. Cada um luta pelo que lhe falta. O que me falta é carinho, sentimentalidade, companheirismo. Sendo assim, manifesto-me em prol disso. E não sinto o menor receio de ser atingido por qualquer projétil arremessado por um louco. Se é para sangrar, que seja em batalha, para que o sangue derramado faça lembrar vida, não morte.
              O medo, sinto-o leve, embora nunca cicatrizado. Ultimamente, sobreveio-me um profundo receio de, até o fim dos meus tempos, permanecer à mercê da solidão. Por enquanto, meu filho e minha mãe servem de amparo. Estão aqui. E quando não mais estiverem, pelas razões naturais da vida? Alguns nomes vão e vêm. Fantasmas surgem de todos os lados, deixam recados anônimos, publicam e apagam frases de efeito, mas não passam de rostos estanques em uma tela. Para ser de verdade, é preciso agredir o medo. Mas, para fazer isso, deve-se ter a certeza de que a luta é justa. Perigoso sempre será. Machucados sempre ocorrerão. Se é para levar um soco, que se faça de olhos abertos. Fechar os olhos, deixo para a hora do beijo. 

sábado, 3 de agosto de 2013


Não compreenderam. Que contradição! Sou professor e carrego comigo o dom de não ser compreendido. Mais uma vez, atiçaram-me a esperança e arrancaram-na de mim, como se nisso houvesse algum tipo de graça. Como expus o que sou, tacharam-me de irresponsável, tabagista e alcoólatra, prova incontestável de que não houve o menor esforço em me conhecer de verdade. Se mentisse sobre mim, seria, por certo, hipócrita e aproveitador. É uma pena! Terminar o que há muito começou. Terminar o que nunca começou. Terminar o que jamais começaria. Sim, sou pai, educador, divorciado, mas não é por isso que mereço ser visto como um ser algo diferente ou digno de desconfiança. Hoje, não sinto nada por ninguém. Não por não ter coração, como os tolos argumentam, mas por acreditar que, até agora, não houve quem se levantasse à minha frente, estendesse a mão cirúrgica e desfibrilasse. Talvez apareça, um dia. Talvez não. Enquanto isso, vivo como quero viver, sem satisfações maiores, a não ser àqueles que realmente se importam comigo. Não existe entorpecente pior que a solidão.  

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Amar ia...


Amaria, assim mesmo, futuro do pretérito.
Seria mais, se tempo houvesse.
Se fosse acaso, não teoria.
Se fosse vivo, não instante.
Se fosse leve, não inconstante.
Se fosse pele, não palavra.
Se fosse descanso, não distância.
Se fosse entrega, não vigília.
Se fosse amparo, não pressa.
Se fosse crença, não tentação.
Se fosse brisa, não pensamento.
Se fosse mão, não espera.
Se fosse paz, não desagravo.
Se fosse, ao mar iria
amar
ia
apenas mar
ia

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Sobre insônias e epitáfios



          Momentos de insônia servem, dentre outras, para exercitar a paciência e a imaginação. Em um desses, depois de idas e vindas em tentativas frustradas de pegar no sono, não houve como evitar um pensamento mais lúgubre, carregado de uma sombria tristeza. Entanto, nessa feita, passei a compreender o momento derradeiro de uma forma mais prática. Em vez de arregimentar métodos tolos para escapar do inevitável, pensei mesmo no que poderia ser escrito na lápide de meu túmulo. E o que se escreve nessas coisas? No final, essa última frase, que vai ficar como uma espécie de verbete, mostrará aos curiosos o que tentamos ser em vida, mesmo que, na maioria das vezes, não tenhamos efetivamente conseguido. Imaginei, pois, uma série de possibilidades.
               Para um bancário: "Vem pra Caixa você também!"
               Para um aficionado em televisão: "A gente se vê por aqui!"
               Para um bêbado: "Capotei, mas desci redondo."
               Para uma periguete: "Até a terra comeu!"
               Para um dono de supermercado: "Lugar de gente feliz!"
               Para um político: "Morri negando."
           Para um homem apaixonado: "Está faltando você aqui, querida!"
               Para uma balconista: "Próximo!"
               Para um pessimista: "Tá achando que é melhor? Vem pra cá!"
               Para um fanático por tecnologia: "Cova fazendo download."
               Para um espírita: "Me aguarde!"
               Para um otimista: "No fundo, no fundo, não é tão ruim..."
               Para um manifestante: "Eu não, mas o Brasil vai sair do buraco!"
               Para um aluno desinteressado: "Amanhã não vou pra aula!"
               Para um piadista: "Quer saber um segredo? Vem aqui que eu conto..."
               Para um fã de Roberto Carlos: "Esse cadáver sou eu!" 
            Para um valentão: "Me tira daqui que eu te mostro quem é o morto!"
               Para um ex-aluno do colégio Evolutivo: "Seu futuro está aqui!"
               Para um publicitário: "Anuncie aqui!"
               Para um funkeiro: "Se joga, se joga joga na minha cova e vem."
               Para um micareteiro: "Enfia o pé no chão!"
               Para um tuiteiro: "#partiu."
               Para um viciado em Doril: "A dor sumiu!"
               Para um crítico inveterado: "Alguma coisa a gente tem em comum!"
               Para um vidente: "Eu sou você amanhã!"
               Para um motorista de ônibus: "Sempre cabe mais um."
               Para um concurseiro profissional: "Esta vaga é minha!"
               Para um beneficiário do governo: "Minha casa, minha morte!"
               Para um sertanejo universitário: "Nossa, nossa, assim você me mata!"
               Para um viciado em sexo: "Morro por um buraquinho..."
               Para um afeito a refrigerantes: "Só tem terra, pode ser?"
               Para um marido insatisfeito: "Enfim só!"
               Para um bom irônico: "Aqui jaz e aí também!"
               Para um usuário convicto de celular: "Você, com fronteiras."
               ...
               Agora, para mim: "Descansando em paz...finalmente!"

               
          
               
               
               
      

domingo, 28 de julho de 2013

Soneto pela insônia


Sou a que exaspera, veladamente,
que se levanta frouxa, feito aurora,
mansa e termal, de um só, feito demente,
mas, em muitos, grita meu ser agora.

Sou a flor que morre ao raiar do dia...
ex-pátria, de alma amputada... em silêncio
corredores sujos, sem companhia,
ditam os passos, que fogem em prenúncio.

Grito à fome que ainda me sacia,
aos loucos que me arremessam anzóis,
ao vento que me aquece as carnes mortas.

Por instantes, temo a vida, tão fria
que os sonhos me cobrem, como lençóis,
e a noite, que arde, já não mais importa.


terça-feira, 23 de julho de 2013

Crônica a bem do destino



           Alguém aí acredita em destino? Ao avaliar os fatos do ponto de vista unicamente academicista, o acaso não passa de atitudes que, por insistência do ser interessado, convergem para a realização de algo há muito desejado. Nada de sublime, por certo. Apenas insistência. Mas, estranhamente, a despeito da frieza que me vem por hábito, prefiro não pensar assim. Esse tal destino existe sim e é de uma molecagem de ébrio, quase invenção de cearense. 
       Se imaginássemos uma situação aparentemente simples, como enredo de novela das oito, e acrescentássemos algumas pitadas de ficcionalidade, teríamos um bom exemplo de como o acaso pode ser decisivo na vida de alguém. Vejamos. A começar, um encontro despretensioso em um lugar em que se esperaria encontrar quem quer que fosse, menos quem por ali esperaria não ser encontrado. Entende? Continuemos. O reencontro é inevitável. Como perdessem o costume das conversas mais longas, as palavras principiam de maneira tímida. Entanto, em poucas frases ditas ou reditas, o íntimo aflora, e algo novo se refaz misteriosamente. Assim, o tempo se desfaz e as vozes se confundem, que muito há para ser dito, e o palavreado flui desarvoradamente, como se desacreditassem de uma próxima vez, como se estivessem diante da derradeira confissão. Sentam-se um ao lado do outro. Tocam-se levemente, testando a veracidade do momento. Ampliam-se, tornam-se longínquos, teorizam e desacreditam. As boas falas dos melodramas cinematográficos, as canções de apego, o Marxismo, o exoterismo, Freud e suas insônias, nada suprime o verdadeiro motivo daquele instante: o acaso. 
             Motivado pelas horas avermelhadas impostas pelas solidão, ele crê em toda a poesia estirada sobre aquele momento. É noite, como tinha que ser. O que mais lhe apetece são os olhos da moça. Olhos de xilogravura. Olhos de sertão, de noite sem nuvens. Olhos de boi, manhãzinha cedo, sorvendo da folha única um resto de orvalho. Esses mesmos olhos veem-no como antípoda. Ela não é de ter com os poetas. Pelo contrário, é uma revolucionária, apesar da feição de vidro. Seus pensamentos são livres, tremulam, impregnam-se de imagens consolidadas, presas a instituições teóricas que lhe fazem, naturalmente, desacreditar das versões pouco originais do amor. Nada que venha dele destaca-se. Por isso mesmo, desperta-se nela uma sensação de inutilidade intelectual, como se ali vasculhasse em todos os bons teóricos um silogismo que fosse para explicar a criatura que se punha à sua frente. Ele é uma aporia. 
             Depois de tudo, o nada. A despedida. Com ela, promessas de uma outra vez. A partir dali, o que viesse passaria a ser meticulosamente planejado. Mas o início, esse nasceu de uma circunstância inexplicável, fruto do mais puro e arrebatador acaso. O destino, por mais improvável que pareça, existe. É que passa despercebido no percurso das coisas. Mas o princípio está nele. 
         Talvez sobrevenha, ao final desta leitura, a curiosidade de saber quem são esses dois seres originalmente opostos que, por uma peraltice do acaso, optaram pela contiguidade. E não seriam quaisquer dois? Entendo que o leitor queira nomes. Francisco e Maria. Nomes bem simples, simbolizantes do que há de mais comum. É favor recordar que o destino, por muitas vezes, aninha-se na simplicidade. Talvez por isso o acaso seja tão desacreditado. Por ser simples demais. 

domingo, 14 de julho de 2013

Janelas do laboratório


Quem mandou botar
janela no laboratório
Quem mandou botar
janela no laboratório

agora eu vi o mar
agora eu vi o mundo
agora eu vi o mar
agora eu vi o mundo

vou pro meio da rua
vou pra fazer pirraça
vou pro meio do povo
vou pro meio da praça

Quem mandou botar
janela no laboratório
Quem mandou botar
janela no laboratório

vou me manifestar
vou pra fechar o tempo
vou pra me libertar
vou ter o meu momento

Quem mandou botar
janela no laboratório
Quem mandou botar
janela no laboratório

agora eu sou o mar
agora eu sou o mundo
agora eu sou o mar
agora eu sou o mundo

quarta-feira, 10 de julho de 2013

SARA



Sara
Sempre sara
Sempre cura
Desfilando
Tanta gente
Que não sabe
Que não tem

Sara
Sempre rara
Sempre escura
Vai pro quarto
Vai sem culpa
Sem dever
Nada a ninguém

Sara
Sempre clara
Sempre dura
Traz no corpo
uma pintura
de uma flor
e alguns vinténs

Sara
Sempre fala
Sempre escuta
Abre a porta
É criança
Fecha a porta
É mulher

Sara
Não repara
No que eu trouxe
Uma rosa
Um acabou-se
E o tempo
Que vier

domingo, 7 de julho de 2013

À querida Gleide.


            Se não nos falta encantamento, resta apenas o encontro, aquele há muito adiado pelas desrazões. Ainda subsiste, persistentemente, uma memória que busca, a cada palmo, a delicadeza dos gestos, a alvura, os cabelos trigais, as palavras doces e imerecidas. Estou ressequido por uma série de entraves que a vida, por travessura, imputou-me. Nada não. Haveria, pois, dor que se estendesse tanto que não fizesse crer na cura, no alívio? Que a sua paz, a que neguei, a que inexplicavelmente persiste em velar-me, ainda que ao longe, que essa paz chegue logo, mansa e didática, com a mesma leveza de seus dedos sobre minhas esperanças.


terça-feira, 2 de julho de 2013

CARTA DE AMOR


CARTA DE AMOR FICTÍCIA, COMO NUM EXERCÍCIO DE ESCRITA E SENTIMENTALIDADE. 

               
              Querida ......................................, 
              Tuas ausências, estranhamente, são o motivo condutor das horas que aprisionam os dizeres mais secretos. És a íntima razão das páginas em branco. E teu corpo silente faz da memória um atracadouro sem embarcações. Há algo sanguíneo em tua beleza, e a própria criação subsiste por teus instantes de desapoderada euforia. Em ti, pensamento e palavra unem-se, em um cio, e esta, de tanto êxtase, queda indizível. O que quero ao teu lado é imortalidade.  
            Se te imagino a declamar o que te mascare a dor, é que te quero bem, não como os amantes  de início ou as canções sem rumo; o que te oferto é oração, qual devoto filial e atento. Por tanta fé, exercito, a duras lutas, uma paciência gregoriana. Sei que te libertarás dos clarões que turvam a lembrança e desencorajam os gestos. Deixarás de ser memória e serás encantamento.
               Outras vidas, não as pretendo, a não ser que me haja garantias de que retornaríamos pelo destino que nos une e nos tenta a buscar, secretamente, os desejos mais latentes. Assim é o destino: a  foz do reencontro.
         Serás amiga e amada, fruto de meu tempo de espera; reconhecerás em mim tua absoluta paz. E que as palavras encontrem em ti o descanso necessário. 
                Com o carinho de quem apenas vela,
                .....................................................................................