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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

INTROSPECTIVA 2017


    Mais um ano se vai. Passou rápido? Claro que não! Arrastou-se como uma charrete de pneus furados. Assim, já que 2017 bateu as botas, convém realizar sua autópsia a fim de determinar a causa mortis. 
      O ano começou com mortes nos presídios em Manaus, em Boa Vista e no Rio Grande do Norte. Quem morreu? Presidiários. Para uma parte dos que bateram selfies natalinas e confraternizaram ao som da Ave Maria de Schubert, matar gente assim não faz a menor diferença, afinal de contas, não passam de assassinos-estupradores-meliantes-de-quinta-categoria-sem-deus-no-coração! Claro que isso só vale para quem não está no Face desses maravilhosos defensores da moral, da liberdade e dos bons costumes. Se, por qualquer metonímia do destino, um ente branquinho e querido cair em tentação e sucumbir às intempéries do crime, para esse, pelo amor de Deus!, justiça e segurança em primeiro lugar, pois ele é Humano e merece ter seus direitos preservados.
        Em 2017, alguns conceitos foram (re)criados. Falou-se muito em Fake News ou mesmo em uma tal "Pós-verdade". Nada mais do que a boa e velha Mentira. Agora, pior mesmo que qualquer notícia fake é o Face News. Quanta boçalidade! Nas redes sociais, o mundo parece se enviesar de forma tal que a mais estúpida futilidade parece ganhar um peso similar a um silogismo aristotélico. Terminei o ano, por exemplo, sabendo quem comeu o quê (ou quem!) ou a que horas da madrugada o corpólatra chega à (ou da) academia. Por intermédio dessas janelas virtuais que dão para o vazio das vaidades (com o perdão do pleonasmo!), descobri as mais decentes aberrações: autopromoções a dar com pau, pessoas plenas de um espírito de solidariedade único, desde que se possa registrar o momento exato em que se presenteia uma família em situação de rua com aqueles salvadores dois reais; figuras quixotescas (com o devido perdão de Cervantes!) a garantir fotografias ao lado de pessoas enfermas em hospitais; chefes de cozinha de todas as estirpes; viajantes inveterados; noivos e noivas que, em um ano, conseguiram noivar com cinco ou seis pessoas diferentes; fabricantes de mitos; cidadãos religiosos e castos; defensores febris do militarismo e do armamento pesado na mão do dono da bodega. E por aí vai para bem pior!
        Durante o ano, as descobertas científicas impressionaram a todos!A Terra é plana! Na verdade, a
existência de gente que consegue pensar assim só prova o quanto a Terra está se tornando chata. Nunca houve ditadura militar! Na verdade, o que aconteceu foi um governo em que o poder se concentrava nas mãos de um único grupo, com participação popular bastante restrita (melhor assim, não?). O Comunismo está voltando! Só não se sabe de onde. Homossexual é doente, mas tem cura! Pena imbecilidade ser incurável.  
        Na política, o ano deu o que falar. Temer mostrou que, na verdade, estamos em 1917. Para ele, ninguém entende mais de economia doméstica do que a mulher, que é a grande responsável pelas finanças do mercantil. Pergunta à Marcela qual o preço do feijão! Cinquenta cruzeiros? Em meio a mesóclises e outras firulas, o presidente conseguiu comprar o passe de todo mundo. Nunca se viu uma feira com tantos parlamentares em promoção! Tiririca se arrependeu de não ter feito nada. Mas continua lá, recebendo sem fazer nada! Que palhaçada! O Maia e seus tiques nervosos deram a tônica das votações no Congresso. E o presidente não foi investigado, apesar de Joesley e Wesley, a dupla sertaneja revelação do ano. Geddel, o porquinho-da-índia, guardava no seu cofrinho mais de cinquenta milhões de reais. Aécio viu sua carreira (!) reduzida a pó (!) depois dos escândalos das gravações em que ele, entre outras, utiliza um linguajar digno de um Cidade de Deus: "Dadinho é o caralho! Meu nome é Aécio Neves, porra!". Maluf foi preso (?). Aliás, se está na cadeia, deixa com o Gilmar, que ele solta! Mas, se é para ficar no xilindró, que seja na base do provolone (na cueca!) e do vinho francês, como o pessoal lá da Papuda.
        Foi também um ano de racismos gratuitos, extremismos baratos, violência sem sentido. No Ceará, a travesti Dandara dos Santos foi brutalmente assassinada. A filha de Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank foi vítima de racismo. Crianças foram queimadas vivas em uma creche em Minas Gerais. Outras morreram após um colega abrir fogo em uma sala de aula em Goiânia. Professores foram covardemente agredidos com tapas, chutes, cadeiradas e Escolas sem Partido.
       Perdemos Belchior, Luiz Melodia, Almir Guineto, Jerry Adriani, Kid Vinil, Rogéria, Paulo Silvino, Márcia Cabrita, Nelson Xavier, Eva Todor, Jerry Lewis... E quem ganhamos? 
           Resta agora aguardar a chegada de 2018. Mas o que esperar do ano que se avizinha?! Que não seja mais um desses atalhos que nos fazem descobrir que andamos, andamos e não saímos do lugar! Vem aí Copa do Mundo e Eleições. Talvez possa ser um ano em que se mude alguma coisa. Ou então eu me mudo.
           Feliz 2018 (?).              






segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Dos cantos da boca,
escorre uma palavra exangue,
temerosa dos olhares do mundo...

Do ventre arbitrário,
a palavra assume voz de parturiente
e grita em espasmo.

Do espaço em branco,
uma manjedoura erige-se
a abrigar a palavra mocha e secular.
Vi ontem um menino transido de fome que estendia as vistas pelas janelas cerradas dos automóveis. Faltava-lhe um dos braços. Sua oração era pedir. Ao meu lado, a mulher que amo, de olhos vivos e mãos delicadas. Amo-a incondicionalmente, que é por seu tempo que encontro paz. Ela, como de costume, acariciava-me a nuca. O amor aumenta a cada carícia. Penso que a amaria mais se aquele menino, cingido de dor, não mais sentisse fome. Se não houvesse criança assim, abandonada em sua esqualidez, o toque da mulher que amo seria mais suave e afetuoso. Seus olhos confundem-se com os daquele menino: olhar humano. Amo-a porque nela existe fé. Amo-a porque, em seu mundo, não há fome.
Numa mesa de bar, um grupo de dez pessoas cujo silêncio impressionava. Cada qual com seu aparelhinho ligado à internet. Vez ou outra, um comentário breve sobre o que se via nas telinhas amordaçantes. No mais, palavras mudas, olhos esbugalhados, dedos agitados. Que esse hábito ridículo não mais se repita em uma mesa de bar! Que não se troquem pessoas reais por cadáveres virtuais! Quando os bares silenciarem de vez, música, poesia, verdade e democracia estarão seriamente comprometidas. Sendo assim, esses zumbis da nova era, que não sabem conversar olho no olho, procurem outros lugares para exibir seus troféus tecnológicos. Sugiro cemitérios. No mais, deixem a boa e velha boemia para quem entende que bom mesmo é se entorpecer de gente.
Falta ao brasileiro em geral a sensação da cidadania ou, ao menos, a intenção de sentir-se parte efetiva de uma comunidade, de uma nação. Para isso, é necessário compreender o que parece (a apenas parece) relativamente simples: somos agentes políticos e sociais e, por isso mesmo, os que detêm o poder político, econômico ou midiático precisam reconhecer que, sem o aval do povo, suas atividades de nada valem. Em tempos de informações interconectadas e rápidas, a massificação e a manipulação advindas de setores da mídia imputam ao público (normalmente passivo) duas sensações, a meu ver, perigosas: primeiro, a de que a imprensa existe para defender as instituições democráticas e para esclarecer a população, de maneira precisa e imparcial, tornando-se, pois, o baluarte da ética e da liberdade, desde que não ousem contrariá-la; segundo, a de que a violência, mercadoria das mais disputadas pela mídia, faz-nos reféns de nós mesmos, e é preciso desconfiar das sombras, desde que seja a sombra de um garoto negro, pobre, morador de comunidade, sem ostentar grifes, sem o olhar seguro e anêmico dos que vivem em melhores condições. Jovens de classe média-alta aglomeram-se em shoppings, temos um encontro de tribos. Jovens de comunidades menos privilegiadas reúnem-se com as mesmas pretensões, temos um "rolezinho", e as portas das lojas se fecham, e o caos se instaura. São vândalos os que corrompem símbolos de poder e opressão, mas os que, durante séculos, enriqueceram às custas do clientelismo, das transações espúrias, da miséria humana, da politicagem, da exploração da mão de obra, esses passam por vítimas. Não quero com isso defender atitudes extremistas. Pelo contrário. Atingir símbolos de um sistema falido e elitista é uma coisa. Ferir pessoas é outra completamente diferente. Entanto, a Copa do Mundo está aí. Nos estádios, vozes orgulhosas das cores nacionais disputarão espaço nos ecos do hino nacional. Espero, contudo, que as ruas não se calem por causa de um gol de Neymar e companhia e que os gritos de paz, saúde e educação sejam mais lancinantes que os rojões e as balas de efeito moral. Professores, estudantes, médicos, policiais, donas de casa, não importando o rótulo ou a estratificação social, todos devem torcer pelo Brasil. Não me refiro, obviamente, a um time de futebol. Falo de uma nação. Macunaímas que somos, precisamos de uma identidade, de um reconhecimento, de um caráter. Quem sabe o placar se inverta! Quem sabe nos descubramos parte do mesmo time! Quem sabe as coisas mudem!
O parto diário, o do encontro, o das despedidas. 
O parto da noite prematura, da madrugada siamesa, da manhã vindoura. 
O parto e o sangue 
no olho e nos dedos do homem sem nome: 
parto tingido de fúria. 
O parto do amanhã, 
ponteiros em lâmina correndo o ventre do tempo. 
O parto redivivo, 
entrelaçado no cordão umbilical dos erros. 
O parto do amor sangra. 
Não existe parto sem dor.
Eu me uno a qualquer um que tenha fome! Entanto, existem vários tipos de fome. Qual é a sua? É absolutamente condenável que um cidadão ou uma cidadã, por qualquer razão absurda alicerçada no puro ódio, não possa saciar sua fome de sentimento, de amor, de desejo pelo outro, de carinho! Vislumbro caminhos livres de amarras pseudorreligiosas ou pseudomorais que impeçam que pessoas livres possam aliviar sua fome de liberdade! Mirem-se no exemplo das crianças, que apenas concebem um único tipo de separação: as que brincam acompanhadas e as que brincam sozinhas; ainda assim, as que estão sozinhas não ficam assim por muito tempo, que o bom é estar junto, viver com, conviver! Aos que se acham plenos, empanzinados de doutrinas cegas, entupidos de irracionalidades, engasgados pelo veneno de uma falsa superioridade, peço que apenas saiam do caminho e permitam outras formas de amar, outras maneiras de ver a fome e de satisfazê-la plenamente. Sim, eu apoio qualquer causa humana e, quer saber, que os puristas morram entalados com seus pensamentos medievais! Tudo muda! Até as fomes! Antes de sermos hetero ou homo, somos gente, e o que nos basta é respeito!