Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 31 de março de 2013

Elegia por teu rosto ou Cartografia de um tesouro antigo


Entre todas as sombras que me afligem,
há o teu rosto,
que assume o posto de verso,
que ilude a mais intempestiva tentação,
que resguarda em si o mais que perfeito amar.

É lá que se revelam teus lábios.

Lábios que encontram as gentes que passam.
Lábios que se afinam ante os presságios de um beijo.
Lábios que choram tênues lágrimas sem razão.
Lábios que me têm pelas artes do encontro.
Lábios que são o prelúdio da pele.

É lá que se escondem teus olhos.

Olhos que se entopem de estranhos sorrisos.
Olhos que são como catedrais repletas de famintos.
Olhos que alegam prazer ao menor anúncio de tristeza.
Olhos que se prostituem na presença da jovialidade.
Olhos que são quase tão antigos quanto o próprio olhar.

É lá que as tuas sobrancelhas colhem instantes.

Sobrancelhas que denunciam o corpo em sobressalto.
Sobrancelhas que se erguem por espanto ou oração.
Sobrancelhas que rompem a barra das vaidades.
Sobrancelhas que buscam o céu espantadas e sacolejantes.
Sobrancelhas que destoam das demais imperfeições do tempo.

É lá que teu nariz se equilibra.

Nariz que se contorce pela náusea das indesejadas conversas.
Nariz que se empina ao vigor da maior beleza.
Nariz que vasculha vestígios dos antigos amores.
Nariz que remoça pelas essenciais fragrâncias do prazer.
Nariz que é bússola para as breves investidas da fêmea.

É lá que ainda descanso
na mais incerta das asseverações: o reencontro.

Quando teu rosto anoitecer,
chegarei, como nunca, manso
e entrarei sem ser notado
e escreverei no espelho da tua face
algo que subentenda minha presença
e partirei sem dizer palavra,
como sempre.


Fortaleza, 31 de março, ao som de Eurídice, de Vinícius de Moraes.

domingo, 17 de março de 2013

A choupana e a rosa


construí uma choupana,
palha, taipa e coração:
caluje, choça, palhoça,
coberta de solidão.

os tenros raios de sol
das manhãs do interior
são caminhos de piçarra
entre sonhos e torpor.

a tarde vem perigosa,
carregada de desejos,
a colher as longas horas,
a regar o que sobejo.

brotou aqui uma rosa
que não nasce todo dia,
despetalada, sem vida,
espinhenta e arredia.

cuidei da rosa, coitada,
dei-lhe água e mantimento,
podei as partes cansadas,
provi-lhe todo o sustento.

a rosa, toda faceira,
já dona do meu jardim,
depois que sarou de tudo,
quis se aproveitar de mim.

apaixonado e servil,
não tive como enxergar,
que a rosa, depois de boa,
só queria me explorar.

até que numa manhã,
de uma relva caridosa,
fui tratar com a danada,
mas não havia mais rosa.

de tudo, restou um breu,
um laço, um lampejo, um nó,
uma pétala sem dona,
a pobre choupana e só.






domingo, 10 de março de 2013

poema do recomeço



Dei-me, insensato, ao teu convívio errante
que, mansa brisa a acalentar o estio,
voou! Que ausência invade os instantes!

Por onde anda o que forjaste a sonho?
Por onde se esconde o que prometeste?
Peito amargo, por que és tão medonho?

A casa onde vivo é mentira e dor:
cômodos, cômodos de solidão!
A hora atiça o tempo abrasador.

De meu filho, memoriais e ausência!
De meu lar, exílios e desamparo!
De mim, recomeços e sonolência!