Amigos leitores que por aqui já passaram

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O encontro

          O ônibus deveria ter chegado há quinze minutos. Como não acreditasse na ineficácia do tempo, perguntei as horas a um passante, que respondeu desconfiado, olhando para o meu relógio. Prestava atenção nas conversas alheias, criava pretextos contra o incômodo do atraso. Vasculhava os bolsos com insistência, desviava-me da plataforma de desembarque para verificar os ponteiros, escrutava cada detalhe da antiga rodoviária.
          A três dias do Natal, o lugar fervilhava de senhoras de todos os tamanhos, carregadas de curumins, mirando sem pressa o corredor por onde os ônibus entravam e saíam. Em outro ponto, mochilas multicoloridas derramadas sobre o banco de cimento cru. A voz estridente dos vendedores de bugigangas salientava-se. No refeitório, um grupo de freiras, alheias à vozearia, tirava um terço lento. Um senhor de gestos antigos socava fumo no cachimbo. Amealhavam-se pelo acinzentado do lugar encontros e despedidas. Vendo de longe, não era possível diferi-los. Apenas sucediam, sem interrupções. Mães apegadas aos filhos, numa ladainha quase ensaiada, eivadas de recomendações e bênçãos. Filhos distantes, o pensamento no meio da rodagem antes mesmo do embarque. E mulheres de todos os matizes, chorosas de seus maridos, umas por remorso, outras por saudade. Decerto a maioria dos que se atalhavam pelas plataformas planejavam as festas ao lado da família. Pelas palestras, facilmente se notava essa intenção. Eu apenas esperava, todo malfeito, derreado num canto de parede, como se estivesse sob efeito de pancadas.
          - Mas demora esse ônibus! Você também espera o que vem da Parnaíba?
          - É sim ...o de Parnaíba ...já devia ter chegado! – respondi aturdido, sem saber direito de onde rompia a indagação. Olhei de lado e ali estava, sentada sobre um garajau, a dona de tão inoportuna intervenção. Uma senhorinha de ar brejeiro, jeito de moleca arteira, conquanto os vincos na cara repicassem-lhe a idade avançada. A velha deu seguimento à inquisição.
          - É parente?
          - Como?
          - Estou perguntando se você espera algum parente. Eu espero filha, genro e três netos. Vieram passar o Natal comigo.
          Quase todos que ali estavam, senão todos, assim o faziam por causa de algum parente. Não importasse a patente genealógica, os laços familiares compeliam seus motivos. Pais, filhos, irmãos, cônjuges, todos se amontoavam na esperança contígua de recuperar as horas usurpadas pela necessidade. Aquela mulher perguntadeira, ao aceitar a prodigalidade dos seus, redimia a si e a todos de sua árvore familiar, que os galhos podados agora ressurgiam mais fortes e viçosos. Se não fora abandonada por merecimento, ao menos tinha por expiação a distância dos que, quando de casa, nunca acreditaram numa total aproximação.
          - Não é parente não...
          Faltava-me dever explicações a uma desconhecida, uma velha enxerida que deveria apegar-se a um terço, como as freirinhas empoleiradas no refeitório, e deixar de lado o falatório inquiridor. Ela nunca entenderia.
          - É não?
          Como descortinar o motivo de tamanha insistência? De onde viria esse apego a alguém tão pouco confiável como eu?
          - É minha namorada...
          Melhor assim. Sem pormenores. Sem esgarçar toda a minha vida para justificar uma simples espera em rodoviária.
          - E já faz tempo que ela está longe?
          Como tossisse, afastei-me um pouco, mirei o atracadouro dos ônibus. Fiz um gesto num estalar de dedos para indicar um longo tempo. A senhora deu-se por vencida, grunhiu, gesticulou e, finalmente, concluiu o interrogatório.
          O cansaço já me cobrava assento, quando o ônibus de Parnaíba despencou pelo corredor. O pulso disparou. Rangia os dentes como se mascasse um chiclete. E ela, como estaria? Com a mesma apreensão ou, quem sabe, mais segura de gestos e falas. Como tocá-la, se é que o devo fazer? Talvez um simples aperto de mão indique certo descaso ou mesmo indecisão. Um abraço parece-me ousado demais. Somos namorados, acordamos isso, mas o fato é que nunca nos encontramos de verdade. Sempre confidenciamos nossos porquês pelas vias seguras do computador. Um ano e cinco meses de intimidades digitais não me garantiam segurança no momento mais aguardado por nós dois. E se ela não gostar do meu cheiro, da textura de minha pele, da espessura de meus cabelos? E se tudo que a tela e o teclado escondiam não for suficiente para ela?
          O motorista pôs-se à porta para recolher os bilhetes. Seria ela a primeira a descer, como em cena de novela? Não foi. Um senhor de ossos engelhados roubou-lhe a cena. Mas ela veio. Deve estar no aguardo, assim como eu, do momento certo de aparecer, como na hora marcada para entrar na internet e traçar longas conversas, ternas e silenciosas, outras vezes até picantes, dada a intimidade que adquirimos com o passar dos acessos.
          Depois de alguns minutos de expectativa, ela surgiu, trajando o suéter vermelho que lhe enviei seis meses atrás, quando ainda embrionávamos o primeiro encontro no mundo real. Acenei timidamente. Seu sorriso cercou-me de alívio. Estacou em minha frente e abriu os braços. Já não me sentia um estranho naquele lugar. Agora eu tinha a quem esperar ou por quem chorar quando partisse. Abracei-a com força, sentindo sua complacência.
          - Adorei seu cheiro!

sábado, 18 de dezembro de 2010

3o lugar no XIII Prêmio Ideal Clube - Conto

Compartilho aqui minha absoluta felicidade por ter alcançado o terceiro lugar no XIII Concurso Ideal Clube de Literatura, categoria texto inédito. Levando em conta que foram mais de quatrocentos inscritos, acho que vale a pena investir nas letras. Segue abaixo o conto agraciado.

                                                        O BORDADO PELO AVESSO


           A viagem prosseguia morna e o tempo se esticava. Olhar pela janela dava uma aflição. A paisagem estorricada, a sequidão dos riachos, os arremedos de bichos a farejar qualquer esboço de pasto. O sol das quase três horas derretia-lhe a maquiagem. Faltavam ainda uns bons quilômetros. Retocava os lábios, os lados do rosto, queria parecer bem. Poucas poltronas ocupadas, um silêncio dormente.
          Quinze anos sem dar notícias. Um suspiro, uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu então voltar, rever a casa materna, engolir as mágoas. Empurrava os peitos com força, arrumava-se na poltrona, cruzava as pernas, sacudia os cabelos.
          A vermelhidão das horas riscava o horizonte. A modorra lhe trazia o velho pai. Seu Estênio, de olhar grosso e sobrancelhas grudadas. Veio-lhe o dia em que parou a lida para improvisar um penteado numa espiga de milho. Apanhou para a vida toda. O pai, dizem, morreu de desgosto, quando, no caminho da cacimba, flagrou os primos. De nada adiantou bater, xingar, amarrar no pé da cama. Quando é para se soltar, não tem quem segure. O velho não resistiu. Adoeceu, prostrou-se e dias depois morreu.
          Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, de alguma forma entendia, mesmo calada, consentindo com o olhar distante, perdida no terreiro, tangendo as galinhas. Vivia do marido, que a tirou da família ainda moleca numa partilha de gado. De dia, era tratada como uma criada, com tudo pronto na hora certa. De noite o velho se chegava, fétido dos bichos. As crias não vingavam. Cinco sequer vieram ao mundo. Dois saíram cedo demais e viraram anjos. Olhou pela janela do ônibus e sentiu-se sobrevivente. Agora a mãe, tão próxima, traços delicados, tornava-se um remorso. Tempo demais sem dar notícias. Era tarde.
          Saiu da brenha para as terras do Sul com as roupas do corpo e uma escolha. Prostituiu-se em postos de gasolina, conheceu toda espécie de homens, até se agüentar como manicure em São Paulo. A vaidade era a única virtude que lhe restava. Os cabelos vinham na cintura, as unhas vermelho-sangue, o carmim, as lentes cor-de-mel. Por onde passasse, um assobio distante, uma piadinha. Olhando pela janela, a beleza refletida, o tempo cuspia-lhe a cara.
          - Quem vai descer na Passagem da Onça!
          Tanta exuberância atrapalhava os movimentos. O salto agulha, a insegurança nos passos, o olhar inquiridor dos passantes. Não trazia bagagem, só uma bolsa tiracolo. Apanhou uma moto-táxi, não tinha segurança do caminho.
          - O sítio de D. Felícia, por favor!
          Puxou o vestido, aprumou-se na moto e, aos poucos, começou a reconhecer a trilha. O açude do Traguçu, a cancela da fazenda dos Mota, a velha cacimba, agora desativada.
          - D. Felícia era mulher boa, decente, não merecia tanta solidão...
          - Com certeza!
          A porta do sobradinho era familiar. O chão de cimento queimado, o forno de pedra, os quadros em feitio oval. O quarto, o cheiro. Da janela, o mesmo vazio que a mãe sempre procurava. Sentou-se diante da penteadeira, os frascos vazios de perfumes, os gavetões emperrados, o espelho. O tercinho da mãe. Sempre se apegavam ao tercinho quando o velho Estênio dava de surrar quem estivesse na frente. Retocou a maquiagem, apanhou o terço e saiu.
         O vestido esvoaçava, o salto afundava na piçarra mole. Tinha chovido. Tirou os sapatos, jogou na ribanceira.
          - Pra que lado fica o cemitério, seu moço?
          - Depois do matadouro.
         Que ironia, um cemitério e um matadouro. Caim e Abel. Riu-se. Apertou o passo, o calor era insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu apontou o lugar. Felícia Neves de Araújo.
          Não havia mais nada a fazer. Apertou com força o terço. Esticou o pescoço. Ninguém no cemitério. Pouco a pouco foi se desfazendo. Tirou as unhas postiças, os cílios, limpou o batom. Enfiou a mão no vestido e sacou o enchimento do sutiã. Por fim, puxou a peruca e jogou no tempo.
          Da tiracolo, um revólver. O cano na boca, um disparo. Umas galinhas ciscando tomaram um susto. Continuaram a bicar a terra.



segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Rio de Janeiro continua indo

          - Vamos brincar de Rio de Janeiro?!
          - Vamos! Eu sou do BOPE!
          Eram meninos, dez ou doze anos, por aí. Crianças que, com tranqüilidade, simulavam brincadeiras de polícia e bandido. Uma simples e necessária traquinagem infantil, se não fosse pela forma como se referiam à travessura. Rio de Janeiro agora é sinônimo de guerra, como o Kansas City de antigamente. Acontece que, nos faroestes de tempos idos, o bangue-bangue pipocava em um universo tão fantasioso quanto o criado pela pueril imaginação dos curumins. Não havia, por exemplo, balas que se perdessem, pois os pistoleiros do velho oeste não desperdiçavam mira com tiros sem direção. Um apertar de gatilho e pronto, o adversário já era, sem sangue, mas com uma boa dose de contorcionismos faciais.
          No Rio, a coisa é bem diferente. A violência é escrachada, quase um deboche, uma afronta àqueles que duvidavam de tamanha insensatez. É aterrador ver a organização da bandidagem, que segue uma hierarquia estabelecida na base do quem mata mais. Ademais, a quantidade de entorpecentes faz indagar de onde viriam as toneladas de maconha, as milhares de pedras de craque, os quilos e quilos de cocaína. Quanto ao armamento, é difícil explicar a origem de tantas pistolas, fuzis, granadas e outros apetrechos bélicos de arrepiar o mais truculento dos skinheads. Agora que o enfrentamento policial está devolvendo os morros aos seus pacíficos moradores, resta saber o que fazer depois, quando tudo estiver calmo e as pessoas recomeçarem suas vidas no sobe-e-desce das ladeiras da favela.
          O fato é que ainda não bolaram um caveirão capaz de barrar o avanço das milícias do abandono social e do descaso político. Imaginemos um Rio de Janeiro sem traficantes, mas com milhares de pessoas sedentas de amparo e igualdade. No meio desse povo todo, algum garotinho, acuado pelos porcos devoradores de lixo e sonhos, assumirá a responsabilidade de sair das vielas da pobreza, nem que, para isso, tenha que criar uma nova droga ou um novo Comando Vermelho. A imprensa e os setores interessados mostram as favelas como locais pacificados. Entanto, não existe paz sem liberdade. E ser livre é usufruir plenamente da condição humana, longe dos monturos que absorvem esperanças. A impressão que dá é de uma limpeza de quintal, para que os rostos alvos do Leblon possam passear tranquilamente, sem esbarrar com o cheiro da pobreza ou com os estilhaços da indigência.
          Agir energicamente é necessário, até porque é assim que os bandidos costumam fazer. Porém, sem uma intervenção efetiva para que os moradores das comunidades recuperem a plena cidadania, outros Marcolas ou Fernandinhos Beira-mar não tardarão a surgir, talvez mais violentos e sanguinários, por se sentirem enganados por uma sociedade que se perde em moralismos estrábicos. Enquanto isso, vamos torcer para que os meninos do início da conversa achem outro tipo de brincadeira.

domingo, 28 de novembro de 2010

Reticências


          Você acredita em coisas predestinadas, traçadas meticulosamente antes de qualquer balbucio humano no planeta, ou mesmo antes de qualquer conceito de planeta que pudéssemos ter? Por certo, isso não é uma verdade universal. Entanto, permito-me corromper as algemas do tempo, das horas, e criar uma nova realidade, da qual eu faria parte se não fossem os tortuosos caminhos da existência. De qualquer forma, recriar a vida é a vantagem mais dolorosa do ato de escrever, portanto usufruo dela para fazer o que deveria ter feito, como estava previsto sei lá onde.
          Que tal flores, para começar? Um irrepreensível buquê de rosas vermelhas, no meio da noite. Talvez um pouco de chuva, não muita, apenas o suficiente para criar um clima noir. E o presente? Não se pode chegar ao aniversário de alguém sem presente, principalmente por se tratar de quem se trata. Que presente ela gostaria de receber? Não faço a mínima ideia. Quando convivíamos, não nos importávamos muito com pormenores materiais. Mas alguma coisa eu levaria, ainda que fosse um simples livro, que ela é afeita à leitura, como eu. Enfim, chegaria de surpresa, quando todos já estivessem postos à mesa e não houvesse mais expectativas de que mais alguém chegasse. Sorrateiro, em passos silentes, me aproximaria pela popa, solicitando a condescendência dos que me notassem. Ao pé do seu ouvido, com languidez, insistiria no clichê do “adivinha-quem-é?”. Por alguns segundos, correria por nossas veias uma sensação antiga, pois chegara o momento do terrível e inevitável reencontro. Um abraço seguiria, como quem retorna ao canto de origem e aconchega-se no colo materno, depositando ali todas as inseguranças e desejos. Então, no solo do seu abraço, sem desapegar-me de seu corpo, eu diria:
          - Há quanto tempo, não é mesmo?! Vim pelo teu aniversário, que nada nesta vida me privaria de te abraçar! Aliás, não me deixa partir. Dize uma palavra, uma que seja para me permitir acreditar. Pede, que eu fico. Não importa o que vives agora, pois sei que teu mundo é outro, as pessoas que te cercam agora são outras, com outros porvires, outras viagens. O que vale neste momento é que ainda és viva em mim. Aprendi, a duras penas, a desacreditar do amor, das sentimentalidades. Eis que tu chegaste, como quem naufraga e se abriga no peito de outrem, para deliberadamente corromper tudo que sempre defendi. Em ti, o que se entende por amor fala mais alto, irrompe violentamente, deixando no rosto uma cicatriz em forma de sorriso. Pode parecer impossível, mas amo-te da forma mais fecunda. É tarde, direis, e eu te respondo que sim. Todavia não importa. Não tenciono retribuições, apenas peço que escutes. Que linda estás com cabelos novos, mais madura, mais inteiriça. Que fazes da vida agora? Tudo bem, sei que não é mais da minha conta. Quero apenas que não te iludas com a ideia de que, em qualquer instante, eu tenha te esquecido. As circunstâncias do tempo não me permitiram continuar te amparando, mas te velei do meu jeito, como um faroleiro ciente de que, ao longe, vela pela segurança dos que navegam. Que fique, pois, muito claro: ainda não tomamos nossa última dose, ainda não houve um ponto final, ainda não encontrei quem me renovasse tanto. Vivo a vida em reticências. O que realmente importa é que, hoje, celebro a minha vida na tua, pois é teu aniversário. Tenho plena certeza de que em tua felicidade é possível erigir a minha. Posso te dar mais um abraço? Prometo não ser breve.
         E assim, com olhos e pensamentos enervados de sentimento, teríamos nosso encontro, marcado desde sempre em nossos genes. Em seguimento, com tudo já exposto, lançaria, pela enésima vez, um adeus com ar de até breve. Seguiria sem olhar para trás, mas com a certeza de que não seria a última conversa. Aliás, como aprendemos um dia, sempre é a penúltima. Eu não devia dizer, mas essa tal saudade bate que até assusta.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pedras, chumbos e revoltas

          De um lado, um homem branco, jovem, empresário bem-sucedido, atirador de chumbinhos, péssima mira (ou não...), orgulho dos pais, dos amigos e das incautas da meia-noite. De outro, um flanelinha, foragido da justiça, da família, da vida, intruso em qualquer lugar que não seja de asfalto, desacordado das drogas, repulsivo, escarnado pelos olhares de asco e ódio.
          O primeiro estudou nas melhores escolas, e lá, provavelmente, destacou-se por suas inofensivas brincadeiras, dessas de se escolher uma vítima, de preferência solitária e tíbia, e arquitetar uma brutal perseguição, com apelidos insistentes, agressões constantes, macerações morais de toda espécie. Por ser a alegria da turma do shopping, o garotinho do papai expandiu seus negócios, franqueando a violência, criando uma corrente de bestialidade jamais vista. Os muros escolares já não podiam conter seus instintos. Agora, em qualquer lugar, sem prévio aviso ou hora marcada, irrompia uma agressão gratuita contra quem se predispusesse a compartilhar o mesmo oxigênio do sobrinho preferido da titia que mora em Miami. As meninas o tinham como um vingador, um herói troiano, um mártir a arriscar a própria vida para levar o lixo do mundo para a reciclagem. Ora, diria ele em sua infinita pequenez, ninguém suporta estar em um barzinho, balbuciando anedotas sem sentido, e deparar com uma mãozinha trêmula, estendida miseravelmente à cata de um trocado ou, quem sabe, um resto de tira-gosto ainda sem dono; é de causar enjôo aquele povo torturado, maltrapilho, esquálido desde sempre, interrompendo a tranqüilidade do canteiro central com suas caras de fome que a miséria iguala; não se pode conviver com aquela mãe parideira, com setecentos filhos espraiados no calçadão, torta e manca, mal se levanta, com os moleques fazendo todo o trabalho sórdido, matando a fome com uns trocados e algumas brincadeiras. Ocorre que, um dia, com todo o futuro devidamente engatilhado, esse representante mais do que legítimo das grandes mansões, das gordas porcas de clubes recreativos, dos bigodes retilíneos borbulhados de champanha; esse exemplo maior de que o planeta já tem dono e são poucos os que possuem o passe livre para a liberdade social e financeira; esse pedaço de moleque travesso que, sem saber, estapeou a todos nós com suas atitudes aplaudidas desde cedo pela miopia familiar; é justamente esse indivíduo que, por um ato insano de galhofa ou justiça, empunhou uma espingarda de chumbinhos, apontou para um flanelinha, mirou e atirou. Seguiu-se a isso uma risada frouxa, acompanhada de uma débil sensação de poder.
          A outra personagem dessa história é breve demais para ser notado. Não há vestígios do pai. Cresceu assolado pelos tapumes que o cercavam, no favelal do sopé do morro. Quando pequeno, apanhava da mãe, que exigia dinheiro e impunha-lhe um expediente. Apanhava dos irmãos, que lhe tomavam o dinheiro do final do expediente. Apanhava dos estranhos, que lhe queriam tomar o dinheiro que já não havia. Apanhava dos nãos que recebia, das vistas enojadas, das crianças curiosas repreendidas por chegarem perto demais, dos guardas municipais cumpridores de seu mister, da polícia cidadã, das milícias, dos cães, da chuva e do sol. Aos quinze anos, debutou na marginalidade, presenteando a si próprio com o primeiro revólver. Viu que era fácil assustar os otários de tênis bonitos, de bons carros. Bastava se chegar. Só sacava do “berro” se fosse ameaçado, o que raramente acontecia. Um dia, um comparsa de esquinas e pequenos furtos chegou com a salvação de todas as fomes. Era uma pedra, branca, macilenta, uma pedra de fumar. E como se houvesse desvendado o segredo das pedras filosofais dos alquimistas de outrora, aquilo lhe vinha como a maior de todas as invenções, superior à criação da roda ou à manipulação do fogo. As coisas, então, começaram a fazer sentido. Ele era um caçador, uma fera instintivamente preparada para agir e matar a fome. Os outros eram presas, caminhando em bandos, indolentes, patéticas, nascidas para sucumbir. Assim seguiu, sem rumos ou expectativas, sem a mínima idéia do que fosse amor ou esperança. Com aquelas pedras providenciais, ia construindo seus castelos de penúria e sectarismo. Vez ou outra, tirava uns trocados pastoreando carros. Em uma dessas, manhãzinha aflorando, ao virar-se para atender o chamado de um estranho, sentiu uma lágrima adensada misturando-se à noda entranhada no rosto. Era a forra do mundo que ele barbaramente caçou durante toda a sua vida. Inutilmente sentou no meio-fio. Alguém riu disso tudo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mauro

          Pelo cair da tarde, ouvia-se o assobiado de Mauro, de pescoço estirado no rumo da ladeira do Croatá.
          - Bora!
          Depois de alguns assobios e resmungos, o cachorro saía dos matos, sacolejando os carrapichos. O curumim então principiava a caminhar de volta para o sítio, a enxada pesando no ombro.
          - Bora!
         Mauro era o mais novo de cinco irmãos. Criou-se na lida serrana, tangendo bicho pelas trilhas, caçando preá no mato. Quando se dava fé, lá estava ele trepado na jaqueira mais alta. Com o tempo, tornou-se rijo, calado. Para ganhar uns trocados, limpava os terrenos alheios. Olhava fixamente para o chão toda vez que cruzava com alguém pelas passagens. Melhor lidar com bicho que com gente. Trazia no cós a faquinha amolada, presente de Vô Xicute, que sangrou um lobisomem pelos lados da Passagem da Onça.
          Durante os festejos de Nossa Senhora das Dores, a cidade se enchia de gente de fora. As camionetes subiam e desciam, dando carona aos caminheiros. Os leilões no salão paroquial, a missa campal, os fogos de artifício espraiados no céu. Mauro arregalava o olho a cada pipoco.
          - Vai não, Mauro? A cidade tá uma belezura...
          - Vô não!
         De longe, as luzes da cidade guiavam as vistas. Sentado à beira da rodagem, Mauro admirava, no meio da escuridão, o movimento dos carros, os faróis altos riscando o breu na subida da ladeira. Ao lado, o cachorro, perplexo com todo aquele movimento.
         Diziam que aquele cachorro parecia com Mauro. Arredio, cismado com tudo. Por um pouco não cresceram juntos. E o bicho demorou a ganhar a confiança do menino, que enfim cedeu às insistências do cão. A partir daí, um tornou-se a sombra do outro. Desse um assobio, o cachorro brotava. Desse um latido, Mauro aparecia.
         Mauro já havia decidido voltar para o sítio, quando ouviu uma música alta, estridente. A primeira reação do curumim foi tapar os ouvidos. Era uma camionete grande, barulhenta, iluminada de ponta a ponta. Passou feito bala.
         O menino se esticou até não poder mais para acompanhar o rastro daquele monstro. Foi então que deu por falta do cão. Não deu tempo de assobiar. O bicho estava estirado no meio da rodagem, arfando. Mauro estancou diante do corpo amolecido do cachorro, a piçarra ainda mais avermelhada. Arrastou o bicho até a margem da estrada, e de lá até o sítio. Estava sem jeito. Mauro estirou o cão num tapete de palha de bananeira e entrou.
         Dias depois, pelas horas mais longas, Mauro cavava um terreno próximo do açude Careta. Até que ouviu por ali uma falação solta, animada. Encontrou um jeito de não ser visto e foi reparar o que se passava. A mesma camionete enfeitada. A mesma música estridente. Dois homens, duas mulheres e um menino. Gargalhavam com força.
         O pequeno que fazia parte do grupo afastou-se dos convivas, indo em direção ao mato. Era branco feito gomo de jaca. Mauro chegou mais perto, acocorou-se. Tirou a faca do cós e riscou a terra. Se soubesse as letras, teria dado um nome ao cachorro. Se soubesse, escreveria o nome na piçarra.



















terça-feira, 9 de novembro de 2010

          Sou filho único. Nasci sob essa condição. Vim ao mundo como que por piedade, depois de outras cinco gestações mal sucedidas. Um sobrevivente, alguém que forçou a entrada e fincou pé na existência, numa espécie de daqui-ninguém-me-tira. Ocorre que, passadas as glórias do nascimento, sobreveio o estigma do ser solitário. Irmãos, nunca os tive; amigos, sempre os de passagem; amores, apenas os efêmeros.
          Na convivência com a solidão, aprendi a ter com ela, apreciá-la, decifrá-la, dormi-la, acordá-la. Todavia a condição de especialista nessa área não me causa amparo, tampouco me dá a segurança necessária para fugir. Na verdade, tornou-se um visgo, como se a própria solidão, ciente de sua veia de maestrina, regesse meus passos, apontando a batuta, ditando o ritmo como devo aplainar a vida. O fato é que a conheço, e conhecê-la é uma forma de violentar-me, quase como quebrar mil espelhos para fugir de mim próprio, quando na verdade o que fiz foi espalhar-me em dezenas de milhares de pequenas imagens lancinantes, tão cortantes e sangrentas quanto meu corpo derramado sobre os estilhaços. Sendo assim, é preciso viver sem a consciência de que a solidão nos é inerente. Se apenas enxergamos, não existem olhos, que passam a existir no momento em que se toma consciência do mecanismo da visão. Mesmo agora, quem se propõe ler este texto fazia-o desprendido de qualquer técnica ocular superior. Ainda que durante a leitura os óculos sejam, vez ou outra, solicitados com a ponta do dedo, o que se tem é a consciência, mínima ainda, de que existem óculos. Mas os olhos estão lá, cumprindo seu papel, embora não os agradeçamos ou os reconheçamos como parte de uma mecânica íntima e latente. A solidão não nos é diferente, já que apenas está lá, aparentemente inerte, mas sempre produtiva. Basta que tomemos tento de sua existência para que de pronto notemos nossa íntima condição de solitários.
          Não pretendo ser pessimista. Fique claro que também não quero ser apologista de campanhas em prol do abraço coletivo. O que me vem é a pura vontade de incompreender. Dizem que não ter como compreender já nos basta como uma forma de compreensão. O que sei é que há um incômodo na solidão, e isso me tortura, conquanto todas as suas faces sejam, de alguma maneira, justas. Imaginemos o solitário poeta, embebido de estrelas, amante da madrugada boêmia, da mulher sem castas, do espório noturno das meretrizes. Seu enleio poético apazigua a solidão, que encolhe as asas por um tempo, como num sopro de vida no proscênio da morte.
          Já a solidão dos pensadores é torpe, pois ignoram o impacto, fingindo, em oposição ao poeta, não sentir dor, tomando tudo por patologia, pânico, abstinência ou coisas do gênero. Uma boa solidão é a da criança, por ser imagética e contemplativa, embora se conceba ali o pior dos retratos: a do menino sem amigos. Porém a criança nunca está completamente sozinha, uma vez que faz da pedra uma fortaleza, da espiga um confidente, da batata e dos palitos um animal de estimação. Não queiramos a solidão dos idosos, que se traveste de abandono, que anula todas as capacidades.
          Espantam-me os que negam a condição de solitários. Exercitam amizades, tornam-se o centro das atenções, impactam, clareiam, perdem-se na primeira curva, renegam-se, mas, quando desfeitos da noite, entregam-se pacificamente à solidão dos ponteiros e das coisas, convencendo-se de todas as inevitabilidades. Assumo que me custou crer na impossibilidade de não haver solidão. O que me sobra é o conforto do não-questionar. Se Ela existe, que seja sem desespero ou pressa. Que desenvolva sua tortura com pingos d´água, macerando-me a carne para que, a duras penas, me reconheça humano.

domingo, 31 de outubro de 2010

          Em tempos remotos, os índios comanches norte-americanos participavam de um ritual, no mínimo, curioso: para ingressar na idade adulta, o jovem comanche deveria se ausentar da tribo para caçar um búfalo. Para tanto, algumas regras deveriam ser observadas. Quanto maior o animal abatido, mais respeitado seria o recém-formado guerreiro; não se poderia usar qualquer tipo de arma, a não ser as mãos e o instinto de caçador; por fim, na noite anterior à partida, o índio aspirante a adulto deveria sentar à beira da fogueira e ouvir atentamente os conselhos dos anciãos da tribo. Portanto não se trata apenas de um ritual de passagem para a vida adulta, mas uma importante experiência de vida, cercada de aprendizagem e amadurecimento.
          Nestes tempos de fúrias e espasmos, celebramos rituais de passagem. É fato que não há necessidade de matar um búfalo, pois, além de ser politicamente incorreto, a maioria desses bichos já está enlatada em prateleiras de supermercado. Entretanto, o que nos vale até hoje são os conselhos que recebemos antes de partir em busca dos nossos búfalos. Sendo assim, para sobreviver às desventuras da vida, é necessário tomar certas providências.
          É preciso saber contar com as pessoas, mesmo que, no fim, tenhamos que nos magoar com elas. Amigos são imprescindíveis, pois são eles que nos atiram cordas quando caímos nos abismos; é deles que nos lembramos quando, em noites delirantes e chuvosas, não nos sentimos sós, mesmo estando sozinhos; é neles que nos espelhamos quando pensamos que a vida é repleta de portas que abrem e fecham.
          É necessário valorizar a família que temos. Agradeça em cada segundo de sua vida pelos seus pais, pois são eles a certeza de que jamais haverá abandono em sua vida. Entenda que não há nada mais gostoso do que as chatices da irmã, as babações da avó, as piadas do tio, os puxões de orelha dos padrinhos. Agora, é fundamental que se entenda isso o mais rápido possível, porque um dia eles não estarão mais por aqui. Descobrir a importância deles depois que eles partirem é a pior de todas as dores.
          É fundamental entender que precisamos de ambição. Sim, temos que ganhar dinheiro, construir coisas, destruir outras. Assim o mundo se movimenta. No entanto, de nada adianta comprar uma Ferrari, se não se tem para onde ir; de nada vale um celular de primeira linha, se não há com quem conversar; em nada nos favorece uma mansão de um quarteirão inteiro, se não há com quem dividir a mesa durante o café da manhã. O mundo hoje nos obriga a ser mecânicos nas atitudes, mas, antes de termos Orkuts, é preciso fazer amigos.
          É importante saber que o mundo, muitas vezes, é cruel conosco. Encontraremos pela frente figuras ruins, de má índole, que tentarão, a todo custo, nos fazer desacreditar das pessoas. Quando isso acontecer, lembre-se de que existem milhões de vozes no mundo que se revoltam contra as opressões, as tiranias, as desigualdades, as violências, as desesperanças. Que não nos calemos diante de uma injustiça, pois o que violenta não é o grito dos maus, senão o silêncio dos bons.
          Por fim, tenham sonhos, pois é neles que esboçamos a existência; amem e sejam amados e construam uma família e celebrem o Natal ao lado deles e entendam que os filhos são uma forma de imortalidade; construam coisas belas, escrevam poemas, pintem quadros, mostrem seu talento ao mundo, já que ainda é possível ter sensibilidade; envelheçam com saúde, preservem seu corpo, pois tudo que fazemos contra ele um dia nos será cobrado da forma mais dolorosa possível; voltem-se para o futuro, mas, de vez em quando, olhem para trás e jamais esqueçam de onde vieram, porque é no passado que encontramos as principais razões para crer no futuro.
          É dada a hora de partir. Sigamos à procura do búfalo mais forte. Mas, por um acaso dos caminhos, havendo percalços sem jeito, muito mais importante que as glórias da vitória é a experiência que a luta nos proporciona. Evoé! 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

          Eu não acredito no impossível. Sei que parece um contrassenso, afinal de contas sou professor e, nas horas aprazíveis, escritor de meia pataca. Entanto, não acredito! Sou descrente, por exemplo, de que, um dia, as maiorias e minorias étnicas deixarão de lado as rusgas econômico-religiosas e tomarão café da manhã de mãos dadas, sorrindo sorrisos pardos, brancos, vermelhos. Evidentemente isso jamais acontecerá. Quem suportaria uma bandeira onicolor, qual arco-íris a anunciar o nascedouro de um novo tempo de paz e serenidade, tremulando cheia de pompa e indolência no quintal de cada cidadão universal.
          Não, só pode ser brincadeira pensar que o homem teria a mínima capacidade de enfrentar seus próprios desconfortos para preservar um ninho de mafagafos em uma floresta tropical qualquer, de um paisinho subequatorial qualquer. Certamente é um tolo quem cogita que as pessoas possam ser boas por natureza a tal ponto de esticar as mãos ímprobas na intenção – hipócrita, por certo! – de saciar a fome de pão e justiça de algum menininho estofado de giárdias e desesperanças. Meu Deus, perdoai os que, ignotos que são, dizem-se crentes das boas escolhas cardiovasculares. Por certo, as calhas de roda cordianas são insossas como comida de enfermo. Que passa na cabeça dos tolos amantes quando se crêem eivados de reencontros e quimeras? Mereço eu, pois, um argumento sólido que me comprove, com direito a todos os pingos nos is e jotas, a veracidade das palavras doces dos poetas de esquinas e saudades. Ó céus e terras, passem logo e dêem lugar ao cadafalso do juízo, pois ainda há os que se dão o direito de apalpar ilusões, como quem acaricia em sonho o rosto adocicado de uma distante lembrança. Impossível.
        Se chegar ao esfarrapo de adotar impossibilidades como rota de vida, internem-me a ferros e camisa de força. Aliás, por cinismo, eu certamente alegarei insanidade e regurgitarei motivos sem nexo. Direi, por certo, que vale a pena esperar o momento certo, as horas boas, um tempo de inocência guardado especialmente para acalentar-nos a alma. Que não é para se afobar, que nada é pra já, como diz a canção que compuseram em nossa honra. Que nos é necessário bem mais que um simples rompimento para arrancar-nos a anestesia providencial que a certeza do reencontro nos oferece. Que tudo que se faz espera tornar-se-á abraço. Que as coisas que ficaram por ser ditas esperarão o consolo aflito das bocas imantadas. Que somos, portanto, criaturas de reencontro.
        Que loucura! Alguém leu isso tudo? Acho que variei, como diria meu velho e saudoso pai. Será esquizofrenia? Não sei. Talvez seja apenas saudade.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Entardecer

          Todas as tardes o velho Afonso se arrastava até a calçada. Na maioria das vezes contava com a ajuda de um dos netos para abancar por ali a cadeira de ferro, toda trabalhadinha com desenhos e curvas. Se não houvesse neto disponível, dava-se um jeito. O importante era que o seu vespertino ritual fosse rigorosamente cumprido. Costumava apoiar-se numa bengala de alumínio, cabo prateado dobrável, de quatro pontas, as mãos sobrepostas quase em vigília, os olhos fixos nos moventes. Todo aquele movimento distraía, mesmo sem muita novidade. Sempre os mesmos passantes, as mesmas pernas de final de expediente.
          Sem pressa, a tarde deixava de flamejar. No sossego das horas, os curumins apareciam, com suas vozes estridentes, num tropel desenfreado de brincadeiras e palavreados. O velho aprumava-se na cadeira, como num incômodo intestinal. Inquietava-se com a movimentação dos meninos. Batia repetidas vezes a bengala na calçada, apreensivo, renitente. A velhice era o pior de todos os cânceres. Os dedos longos lembravam cera derretida lançada sobre uma superfície lisa, formando linhas sem conexão. Cada articulação sua crepitava ou rangia ao menor movimento. Nas mãos formavam-se nódulos hirtos, nauseantes. Mas a carência de força física e a falta de firmeza nas pernas não afetavam tanto quanto a enturvação da memória. Ao perscrutar os vãos das antigas lembranças, comprimia a vista, como se, de longe, quisesse reconhecer algum ponto obscuro. Velho Afonso, dono de terras, engenhos, moendas, casa de purgar. As criadinhas, quando lhe vinham aplacar o fogo, ofereciam seios recém-formados, lábios dispostos, pernas trançadas.
          Lidiane chegava depois de um cheiro gostoso de leite de rosas. No findar de todas as preces do cair da tarde, ela costumava aparecer, rija, de ancas adensadas, volumes desafiadores. Passava o dia na contrição da lida doméstica da casa vizinha, posta em um casulo de temperos e lustrados. Mas, por rebeldia, como se apunhalasse qualquer um que por um instante duvidasse de sua laboriosa beleza, punha-se à calçada, assertiva, senhora de suas carnes. Os cabelos crespos, espiralados desde a raiz, volumosos como suas coxas de égua xucra, vinham ainda molhados, respingando a cada movimento de cabeça, as gotas escorrendo pelo colo, alojando-se providencialmente entre os seios, os poros aos poucos se dilatando para conservar o calor da pele. Lidiane era inteiriça de ponta a ponta, uma afronta à opacidade do velho Afonso, que apenas assistia àquele espetáculo de formas e odores com a impassibilidade de quem se dá ao patíbulo, exaurido de qualquer memória cutânea que lhe despertasse instintos. Esfregava com a ponta do dedo indicador a haste maciça da bengala, as entrecoxas de Lidiane, alternava-lhe carícias no púbis, deslizava delicadamente o dedo umedecido em volta da vulva, deixava-lhe tomar o controle, como nos tempos do senhor de terras e criadas.
         Lidiane aproximou-se, os cabelos encrespados atiçavam a face do velho.
         - Tudo bem, Seu Afonso?
        Aquele cheiro de mulher nova enervava-lhe os movimentos. Sentia mais uma vez as bênçãos da natureza humana, um jorro que lhe trazia uma esperança de enfermo diante da possibilidade da cura. Estar perto de Lidiane, roçar-lhe a pele, ainda que por ínfimos instantes, tudo remetia a uma época de glórias juvenis. Sobrevinham-lhe espasmos há muito esquecidos, como se concluísse um ciclo, uma resposta aos apelos daquela menina que, por milagre, fazia contrair todos os músculos ressentidos do velho. A sensação de euforia tomava conta de seus gestos. Traduzia-se nele a capacidade de amar uma última vez. O líquido morno escorria por suas pernas, encharcava a calça de brim, derramava-se pela calçada.
         - Tudo bem, Seu Afonso?!
         Lidiane gritou para que os de casa acudissem o velho.
         - Meu Deus, o Vô agora deu pra urinar nas calças...
        Apoiado no neto, o velho percebeu o olhar piedoso de Lidiane e esboçou uma contração na face que por muito pouco pareceria um sorriso.



domingo, 3 de outubro de 2010

Uma ex-aluna e hoje colega das Letras - Maria Eduarda - enviou-me algumas perguntas sobre os textos que publico neste famigerado blog. Decidi, pois, dividir as perguntas e as respostas com aqueles que por aqui passam. São excelentes perguntas. Espero que as respostas estejam à altura.



1) Você posta (no blog) com frequência. Posta à medida em que escreve, ou costuma publicar textos antigos? Faço essa pergunta porque vi que entre certos textos há uma diferença considerável de estilo e de como abordar algumas temáticas (inclusive recorrentes).


Há textos um tanto recentes, textos de gaveta e textos criados especialmente para o blog, talvez por conta disso se perceba certa diferença estilística e temática entre eles. Existem, ainda, diversos textos que não divulgo, por acreditar que talvez não sejam de fácil degustação. Devo dizer também que as variações estilísticas, mesmo em textos escritos pela mesma época, são decorrentes das experimentações que gosto de fazer. Utilizo o blog como uma espécie de termômetro no que tange à aceitação desses textos de experimentação.

2) A prevalência da prosa, em relação à poesia, no que diz respeito ao formato mesmo desses gêneros, é uma questão de preferência, ou tem a ver com o tempo disponível que você tem para escrever ? (Seus poemas deixam mais clara sua técnica. Nos textos em prosa vê-se a técnica também, mas parecem mais fluidos, naturais. É nesse ponto em que reside, a meu ver, a genialidade de um bom escritor: fazer parecer fácil e simples escrever bem. Considero você 'melhor' na prosa. É uma opinião muito particular, talvez você até goste mais de seus poemas, e talvez também eu tenha certa tendência a gostar mais de prosa, enfim.)


Creio que nem todos estejam aptos a interagir com a poesia, por isso prefiro publicar textos em prosa. Não obstante, a poesia é meu gênero predileto e já tenho um livro de poemas pronto, esperando apenas um prefaciante. Penso ser a poesia o ápice do fazer literário, portanto trato-a com bastante reverência, desde a versificação livre até a metrificação e a erudição vocabular, itens fundamentais para um bom poema. A prosa, tenho-a como um refúgio, um caminho sem farpas e espinhos, um atalho. Procuro em minhas crônicas e meus contos explorar a simplicidade na linguagem, o que, a meu ver, contrasta, às vezes, com a densidade temática de alguns textos. Não sou poeta, nem prosador, apenas escrevo.

3) Há temas bastante recorrentes em seus textos, como o tempo, a solidão, o receio, a traição. Não pode haver alguém absolutamente imparcial quanto à própria obra que escreveu, entretanto há níveis, digamos assim, de envolvimento entre autor e obra. Desculpe-me se estou sendo incômoda, é que sabendo que você fuma, bebe, já foi casado (ou ainda é) e tem um filho, sua obra é biográfica?

A expressão "obra biográfica" não se enquadra no que escrevo. Escrevo sobre os outros, o que certamente nos revela, uma vez que as atitudes individuais refletem-se no corpo social. Eu sou o que escrevo, na medida em que expresso neles minha visão de mundo, que pode ou não ser compreendida. O fato de eu fumar ou beber em nada influencia em meus textos. Para mim, fazer o que faço não é uma atitude destrutiva ou depressiva. Faço porque acho que devo fazer. As experiências adquiridas no decorrer da vida, as pequenas atitudes, as viagens, os amores impossíveis, as tramas da vida, tudo isso abastece o que escrevo, tanto na prosa como na poesia. Entanto, reitero: não há nada de autobiográfico em meus textos. Quanto à temática, gosto do que aflige o homem. A morte, a perversão, o tempo, as ausências, as angústias terrenas e etéreas, enfim, essas e outras são motivos recorrentes no que escrevo, porquanto o homem tomar consciência de suas limitações e fragilidades expõe aquilo que o ser guarda de mais íntimo. Na poesia, aproximo-me do lirismo, mas sem pretensões sentimentalescas. É isso.




domingo, 19 de setembro de 2010

         
          Em certo momento, cercado de vultos e estátuas de cera, admirei o cara de cavanhaque que, indolentemente, tirou a menina de óculos para dançar. Como se num terceiro dia da criação, o que fosse asfalto ou concreto rodopiava em desespero por acompanhar o casal em bailado. Fiquei atônito com tamanha coragem. Ninguém mais dançava até então. Depois deles, a estaticidade das coisas e da vida já não fazia mais sentido. Odiei-os, por certo. Odiei-os por não ser como eles, odiei-os por desacreditar dos ritmos, odiei-os por ser filho único, odiei-os por não ter bebido o suficiente, odiei-os por não haver mais cigarros no maço.
          Quando olhei para os lados, não mais encontrei a inércia com que tão bem me identificava. Apenas cadeiras desarmadas e algumas mentiras, sobras de mesas vazias. As avenidas tomaram-se de loucos, todos perdidos em movimentos frenéticos, um frenesi contagiante, espasmos, suores, as mesmas pessoas que outrora esperariam horas por um assento de bar, os mesmos que não dormiriam sem uma foda virtual e uns trocados de carícias. Que inveja do casal que iniciou isso tudo. Que inveja. Antes, gozaram como nunca, e viram que era bom, e determinaram o destino de toda uma leva de normalidades por um orgasmo, para que qualquer um pudesse experimentar os prazeres, os ditos impulsos desesperadores que um dia geraram as raças e as indiferenças. Por que não pensei nisso antes deles? Lá estavam eles, no alto de uma sinagoga, sem uma palavra que os fizesse arrepender, sem uma carícia forçada que os intimidasse, com sorrisos ancestrais e piscares semanais. Quantas pernas havia neles? Quantas tentações, telas e semicírculos de amizade? Uma moça pálida, óculos, desarranjada desde o ventre, professorinha a se perder na passeata dos desejos. Um cafajeste de cavanhaque, terno de linho riscado, riso por se desfazer, olho canino. Figuras sem o menor sentido, sem a mínima simetria, desfaziam daqueles que há muito morriam e renasciam a cada estocada. De onde tiravam tamanha perfeição?
          Sem a música, dançariam. Sem os holofotes, as betoneiras, as farpas, dançariam. Sem os consentimentos, as concessões, os alarmes, dançariam. Dançariam mesmo que os gritos e as fúrias rebentassem, e as janelas cerrassem suas grades para os suicídios, e as praças expulsassem as crianças de maquiagem escorrendo, e os relógios apiedassem-se das peles esfalfadas de sol. Apenas dançariam, não importando o regime, o comando, as vidas malpassadas, os porvires, dançariam. Que nada restasse senão um deserto de mãos espalmadas em súplicas surdas-mudas, eles dançariam, num entrelaçar de pernas a interromper o trajeto das balas arremessadas.
          Levantei-me, não para dançar, mas para admitir a fraqueza, que aquele a misturar-se com a menina de óculos poderia ser eu. Justo eu, um revolucionário de palavras lancinantes, entanto simplesmente de palavras, nada mais. Por sinceridade, não devo ser merecedor de tais esquinas ou traçados. Virei as costas para os que ali estavam. Por mim, morreriam ali mesmo. Antes de me jogar pelo batente, mirei as figuras que, mesmo criadas por mim, conferiam a si mesmas a independência necessária para negar a existência de seu criador. Apenas dançavam. Por um tempo, tornei-me a moça de óculos, vacilante e suntuosa. Depois, encarnei o dançarino cafajeste de cavanhaque breve. Os dois me devolviam aos tempos das ruas calçamentadas, com papai sentado na cadeira de balanço em ferro trabalhado. Os dançantes sabiam de minha existência, de minha inveja, por isso mesmo dançavam e ululavam. Morri pelo asfalto em algum quilômetro que nos distanciava. Ainda que não precisassem, dançariam, porque nunca foram dançarinos, apenas palavra soltas.













terça-feira, 14 de setembro de 2010

Têmpora

Fiz uma canção que, de tão antiga,

lembrava um arrastar de alpercatas

no cimento batido da varanda

rangida pela rede de tucum.


Pousei na lembrança um álibi vil

que remoçasse as horas e os retratos

espelhantes dos veios ancestrais

nas carcaças sobre o solo rachado.


De nada adiantou burilar cantos,

porque os dias penderam agoureiros

tramando redemoinhos nas faces.


Entrego-me, pois, às hostes espúrias

que agora cobram um breve silêncio:

anjos de palha conduzem à porta.

Expiação

As horas não me permitem chegar

aonde descansa teu alvo busto.

Creio-me limitado, que, por susto,

apio da saudade, ledo mar.


Tua ausência flui-me, errante pulsar

por que me eivo, sem histeria e custo,

nos toques, nas línguas, no sangue adusto,

em tudo que me compele a penar.


Devolve-me, ainda que por um passo,

a margem que me tornava ribeira

desaguante em teu colo, rosa cara.


Impinge-me mais uma vez teu aço

em brasa. Dá-me a paga derradeira

pela existência que, em ti, se fez rara.

Extemporânea

Às quatro, as horas pararam

no engalhamento das mãos,

arcanjos que me guiaram

pelo entrecruzar dos vãos.


Às quatro, o peso das coisas,

súbito, pôs-se a galope:

sua simples presença açoita

a mansidão do abandono.


Às quatro, fez-se vivente

no imaginário (uni)verso

eivada das indecências

derramadas sobre o tempo.


Às quatro, cravou a língua

nas ancas das solidão,

escarnando cada fímbria

dos ponteiros e dos nãos.


Às quatro, lúcida ou lúcifer,

enlanguesceu-se espantada,

que as ternas horas das núpcias

por tão pouco se findavam.


Às quatro, nas longas horas,

se não reparei seu grito

pelas noites belicosas,

é que fingi, por instinto.



Às quatro, restou-me a lápide

branda do porta-retrato –

imperfeição que não passa

pelo tempo, sempre às quatro.

Substância

a Morte, imagino-a dissimulada,

de tal sorte disfarçada

que se quer mito, não desordem.



Orvalhada, surge em gotas

imbeles

irradiando histeria e alívio.



nua e amarelecida, vilipendia

as moiras

das parcas horas humanas,

que o resíduo

dos primeiros passos está Nela.



a piçarra e a lama e o grito

dos comboieiros inaugurais

demarcam-Lhe

as têmporas breadas.



de archote, reclama assento

no que é posto

e reposto

a cada lavra,

a cada insenso,

a cada ímpeto de sobrevôo...

(quero-a assim

rara,

toante e livre,

lucerna alta

a fixar no arremedo

das faces

a necessária pecha

da finitude).

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ao poeta de lavras e hinos

                                                                                                       A Linhares Filho

Tuas cãs em feérica lida

a captar a essência das coisas

e dos seres,

tuas tímidas mãos na moldura verde

a coser vocações no etéreo

olhar dos que, por arrebatamento,

seguem pelos meandros de tua

madura topografia.

Tua nau ainda em desbravo

singra a vida em pulsante faina

que a Poesia, tabernáculo do Ser,

orienta,

em teu peito emerge, lavra e hino,

o grato torrão lavrense, Pasárgada

de rio, alazão e saudade.

Em teu engelhado toque,

inventas um tempo, insumo memorial

de um mundo que recuperas

e colhes.

És presença em Pessoa,

companheiro do alquimista,

de Trás-os-Montes a Lavras

vais em um cavalgamento.

Quando em inexato espaço,

tornas-te ente e preso

no mar ou sótão, no halo ou cio,

no velejar onírico de teu presente

jamais ausente de teu passado.

Transfiguras o simplório, o intelecto

em festa, e em tua modernidade

guias-te pelo farol dos que antes de ti

cumpriram tantas míticas jornadas.

Tua invocação poética, teu talmude,

tua erudição inflexiva, tua apreensão de mestre –

tudo-nada amalgama Ser e Coisa.

Se reinventares, se doares, se ensinares,

apenas se, Linhares.



* Sei que esse texto já foi exposto no blog,  mas resolvi reapresentar  porque estou muito contente pelo fato de esse poema estar presente no livro "No limiar do inverno", de Linhares Filho. Às vezes, as coisas valem a pena.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

          Como é árduo apostar na realização de um sonho! Melhor mesmo contentar-se com o sonho literal, aquele que, surreal e efêmero, só existe durante o sono. O pior é que sempre existe quem seja do contra, quem não goste de literalidades, quem não se permita guardar sonhos na gaveta. Esses são tolos, são os que se arriscam pela possibilidade, por vezes irrisória, de experimentar a divinal sensação de apalpar o etéreo. Não, é melhor permanecer quieto. Afinal, para que arriscar? Tudo bem que, um dia, alguém apontou para o horizonte e disse: É pra lá que eu vou! E foi. E encontrou o que buscava. Que tolice dar um passo adiante sem a certeza de um solo, de uma placa de advertência antes do oitão.
          Ah, esses sonhadores me tiram do sério! Sempre tão felizes, tão íntimos de tudo, tão retilíneos no que fazem... Sabe o que eles dizem: o medo é a razão dos perdedores. Alardeiam por aí que, se não houvesse o medo, não haveria amores impossíveis, políticos escroques, crianças famintas, guerras santas. Sinceramente, quem trocaria um acesso banda larga à internet por um passeio, sem amarras, por uma praça florida? Quem largaria o confortante abrigo de um Orkut por uma barulhenta e colorida festa de réveillon? Quem abriria mão da segurança européia de um MSN pelo frêmito das palavras certas, sussurradas na medida certa, pela pessoa certa?
          Um sonho pelo qual não se luta é uma igreja sem fé, dizem os sonhadores, e, pasmem, caros leitores, eles ainda são capazes de reinventar amizades, tecer firulas na chuva, caminhar descalços pela areia da praia. Parece até que não existe assalto, resfriado, traição...
          Mas uma gripe nunca arrefeceria o gosto pueril do sorvete; nada que houvesse decifraria o enigma esfíngico que percorre o mar até o horizonte; ninguém, por mais ressentido que fosse, teria alpendre seguro na solidão.
          Tenho inveja dos que sonham. É isso. No fundo, no fundo, é pura inveja. Viver não é preciso, sonhar é preciso. E realizar também. E confraternizar. Agir duas vezes antes de pensar, eis o segredo. Não ter receio. Basta entender que o necessário para a felicidade não está numa tela, numa garrafa, numa carteira, num passaporte... Está sim no vigor das mãos, na suavidade da voz e no conforto do colo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sobre revoltas e banhos de mar

          Que coisa louca essa correria desenfreada, esses relógios em erupção constante, esses olhos de asfalto esbugalhados sobre nossas cabeças. O espelho aponta-nos falhas irremediáveis, imprecisas, cegando-nos pela ação revitalizante dos cosméticos virtuais. Os jovens buscam, em despreparo, os veios da maturidade, confundindo liberdade de espírito com penteado da moda. Os velhos, que assim não o são, travestem-se de puerilidade, como se fosse possível guardar a juventude no guarda-roupa, junto ao remédio para hipertensão. O que falta a esses indivíduos de porcelana é um daqueles inesquecíveis tabefes da vida, dos que se marcam por remorsos ou arrependimento, dos que desorientam de tal maneira, que os caminhos clareiam e os tijolos se alinham.
          Tomemos uma atitude, criemos grupos de resistência, levantemos a bandeira de que a felicidade absoluta corre por nossas veias, sem a fealdade das telas-espelho, sem a fatalidade dos modismos com molho especial e picles. Afinal de contas, o que diabo é “picles”! Vamos às ruas, fuzis em punho, fechar lojas e abrir corações. Temos de seqüestrar um ônibus. Isso mesmo, seqüestrar! Marquemos um local estratégico, em um desses pontos movimentados da cidade, e esperemos o coletivo ideal, de preferência o que conduz ao trabalho, o que vem abarrotado de interrupções, entupido de torpor e apatia. Já no ônibus, um de nós vai até o motorista e instrui que ele siga por outra rota, previamente traçada. Os outros terão que aplacar o pavor dos passageiros. “Não queremos dinheiro, é só um sequestro!”. Nada como uma boa nota de sarcasmo. Obrigaremos o condutor a seguir até uma praia deserta, dessas de propaganda de cerveja, e lá, sem muita pressa, pediremos que cada passageiro observe atentamente o mar, ouça seu cálido convite, suas asas pensas sobre a areia, seu grito incolor de protesto. Hora de mergulhar. Todos, sem exceção. É preciso sentir a água morna, exorcizar os relógios, lembrar que, para atar os laços da divindade, tem-se que subir nos ombros uns dos outros.
          Aos poucos, as intempéries da existência dariam lugar a um gosto salobre de novas esperanças, e as pessoas teriam pelo mundo um estranhamento necessário, um apreço filial. Uma dolorosa reconciliação se processaria. O operário, que tantas vezes se confundiu com os andaimes, decidirá escrever na areia um poema há muito abandonado. A senhora presa às compras caminhará pela praia e, pela primeira vez, lembrará com carinho seu velho amor, já desaparecido. Os estudantes teleguiados construirão castelos que, de tão frágeis, serão confundidos com espelhos. O motorista conduzirá as leis do mundo e perceberá o dinamismo das aves e dos insetos que o rodeiam. O professor assumirá sua ignorância e exigirá do mar um tridente e os tritões. A prostituta em carne viva esquecerá, por cinco segundos, as dores alheias e se ocupará, depois de séculos, de suas próprias dores. O estelionatário de bela face rasgará o tempo e as promessas de vida fácil, restando-lhe apenas o conforto do sol e das nuvens encarneiradas. O homem sem rosto gravará seu nome em todas as árvores do manguezal.
          Depois disso tudo, retornaríamos aos guetos, não mais os mesmos. O ônibus, outrora carregado de exilados, agora traria as chaves para os tormentos do mundo. Os cordões umbilicais de concreto e piche se desfariam. Seria o princípio de uma revolução silenciosa, um tempo de coexistir sem receios ou covardias. Assim, em todos os pontos de ônibus, figuras insanas se armariam de consolações e rasgariam os ponteiros, que os germes da mudança proliferam e o sal das coisas nos condena à plenitude.




domingo, 15 de agosto de 2010

Lembranças e esquecimentos


          O mal de Alzheimer, ou doença de Alzheimer ou simplesmente Alzheimer é a forma mais comum de demência. Um sintoma primário é a perda de memória. Evidentemente, não é algo que se deseje a alguém. Entanto, se pudéssemos dosar essa patologia, rastrear seu desenvolvimento e usá-la em benefício próprio, que espetacular seria. Imaginemos um remédio, criado a partir dessa doença, para deletar de nossas cacholas apenas o necessário. Para não mais sofrer com aquela derrota monumental do time de coração, bastaria uma drágea. Para não mais recordar aquela malfadada angústia de não ter sido aprovado em um concurso, depois de anos de preparação, uns dois ou três comprimidinhos já seriam suficientes.
          Agora, para esquecer os arrebatamentos líricos que a vida nos reserva, seriam necessárias umas boas doses cavalares, mesmo assim sem muitas garantias de sucesso. É que existe uma diferença abismal entre o que esquecemos por pura falta de vitamina B1 e o que tentamos desesperadamente não mais lembrar. Minha memória, por exemplo, é rala, exaurida pela falta de tempo e pelo tabagismo inveterado. Costumo confundir-me entre números e palavreados, de sorte que, vez ou outra, me surgem verdadeiras páginas em branco na lata. Houve, certa feita, um encontro para o qual me preparei a vida inteira e ao qual deixei de comparecer, por entraves vários. Entenda-se que isso ocorreu não por esquecimento, mas sim pela vontade tola de apagar da mente o que desde sempre fincou raízes. O tempo do reencontro passou, mas ainda me pego imaginando o que teria dito naquele momento. Para começar, sentado à mesa do botequim de esquina, confessando à fumaça boa parte de meus arrependimentos, mataria o tempo a golpes de silêncio, até acreditar que os astros estariam todos em alinhamento. Sem muito alarde, iniciaria a palestra, sempre buscando os olhos atentos de quem ali estivesse pelo simples desejo de ouvir. As palavras seriam exatamente as que seguem:
          “O tempo nunca foi nosso aliado, não é mesmo? Sempre estivemos quando não deveríamos estar. Tenho algo a confessar: tentei esquecer. Atravessei os desertos da alma em busca de fontes que não te refletissem a face. Inútil. Aprendi que a maneira mais dolorosa de lembrar é tentar esquecer. Bom, isso não vem ao caso. O que pretendo é dizer que a fé não acabou, que sempre tive bons presságios com a tua presença. Tuas asas agora estão fortes, consolidadas, e o que esperar com isso, senão o voo inesperado até fugir de qualquer alcance. Ainda me alegro com o que me ensinaste, não por função, mas por vocação em minha vida. Um dia fui jardineiro firme, cuidadoso de teu jardim, eivado de incertezas daninhas que fiz questão de podar. Sei que hoje, no vão de tuas horas, pouco sobra espaço para fotografias cansadas. Somos instantâneos de vida, estáticos diante da impossibilidade de realizar, nem que por um átimo, aquilo que planejaríamos para a vida inteira, se não tivéssemos tamanha blindagem cardíaca. Porém, sei que nos comunicamos nos telegramas oníricos, nas entrelinhas dos textos, nas curvas melódicas das velhas canções. Passeamos entrelaçados? Lemos, a um só tempo, o mesmo conto? Sorrimos constrangidos em jantares familiares? Que importa! Fomos além. Desvendamo-nos, e isso é mais do que a maioria consegue em uma única existência. No mais, sei que tua lida é constante e vitoriosa, que teus passos ainda são frágeis e ininterruptos, que teus sonhos são maleáveis e certeiros. Se precisar, estou no farol, guiando-te. Não há ninguém que te queira mais próximo da praia, que a vida te reserva o mais seguro e promissor dos portos. Adeus.”
          Que algum desses abençoados cientistas, capazes de realizações beirantes do comportamento divino, leia atentamente este texto e crie o tal medicamento que nos favoreça com os benefícios do esquecimento. Se precisarem de algum voluntário, estarei à disposição.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Retrovisor


          Existe, em algum ponto obscuro da alma, uma espécie de mapa que, no tempo certo, nos guia em retorno a tudo que, um dia, nos deixou. Assim, como na intenção de resgatar um náufrago, às vezes é necessário refazer meticulosamente cada passo, reiterar rastros antigos, desmentir as horas, dar as costas para o futuro. E por onde começaríamos se fôssemos agraciados com a dádiva do retorno?
          Minha primeira parada seria pelas calçadas da infância. Nada é mais leve e desinteressado que o tempo de um menino. As brevidades dos sentimentos, os invencionismos das molecadas das ruas vizinhas, a turma juramentada pela ingênua arte de crer na eternidade. Cresci respirando a renovação das coisas, mesmo sem ter consciência disso. E se todas as dores fossem como as da infância, tudo seria mais fácil. O olho roxo, o joelho arrebentado, o calcanhar em carne viva. O chato é que na fase adulta as cicatrizes se tornam invisíveis e as feridas sangram só de lembrar que elas existem. O certo é que houve um tempo de descer ladeiras no carrinho de rolimã, riscando o asfalto recém-inaugurado, e de aventurar-se pelo sempre solícito pé de castanhola e dali espiar o quarto da misteriosa vizinha, desfilante em trajes íntimos pelos nossos sonhos mais ousados. Deve haver algum bom motivo para essa fase acabar assim, tão abruptamente, sem aviso prévio ou direito a ressarcimento.
          De passagem, reencontraria a malfadada adolescência. Foram anos difíceis, com algumas privações que, depois de tantas e tantas bordoadas, me fizeram entender que o interesse individual não é nada perto do anseio coletivo. O que tenho dessa época são achaques vários lançados contra a vida. Detestava os olhares de pena, muito piores que os de indiferença ou ojeriza. O mundo rompia sua casca. Já não mais havia o colorido das histórias em quadrinhos ou as alegrias de asfalto. Tudo enegreceu de repente. Os amigos de sempre permaneceram na infância e até hoje encontram lá casa e sombra. Optei por enfrentar as feras e os ponteiros. Passei a consultar o mundo pela lente nívea dos livros. As letras suavizavam as horas, faziam-me crer na condescendência do futuro, na indulgência das pessoas. Assim, desliguei-me do menino e contraí as enfermidades de todos que, como eu, sentiam a pele arder de ansiedades e incertezas. Da maneira mais difícil, percebi que a mãe de todas as revoluções é a necessidade.
          Já como adulto, muito mais desfiz do que realizei. Mal larguei as espinhas, me vi casado, pai de família, entupido de contas e responsabilidades. O pior é que, por essas horas, o tempo nos arrasta a um precipício de dúvidas e incompatibilidades, muito por tentar esganar sentimentos rompidos brutalmente na hora errada. Nessas veredas, perdi-me em olhos beatos, agarrei-me a cada segundo agonizante, antevi dívidas e soldos. Melhor parar. Vasculhar o passado é como perscrutar antigos álbuns e descobrir que nos melhores momentos não estávamos por perto. De tanto recordar as pessoas que amei e os caminhos por que trilhei, quase apaguei da memória o melhor de mim e perdi o chão que me favorece agora.

















quinta-feira, 29 de julho de 2010

Os finais jamais se apagam, porque não existe uma última linha. Sempre haverá algo por ser escrito, no tempo certo, pelas mãos certas.

PÉLAGO

meus dedos são pássaros indecisos

que se assustam a cada movimento,

que se enervam em gestos caridosos,

que se fartam com tão pouco alimento.



meus olhos são redes de arrasto ao mar,

que assim chega o que me comprime a vista,

água brotante à cata de espraiar,

grota de margem oculta, imprevista.



meus pés guiam-se por outras passadas:

silenciosos e dóceis entregam-se

à estranha alvura dos novos luares.



meu tempo, no teu, encontra morada;

por tuas quimeras as preces elevam-se;

em teu corpo edifico meus pilares.

terça-feira, 20 de julho de 2010

SONOLÊNCIA

Se, com o tempo, as palavras secassem,

mais por precaução que por amargura?

Se as vozes unas perdessem a alvura

e os corpos nunca mais se procurassem?



Se as imagens ressequidas perdessem,

sem aflição, o torpor da brandura?

Se a indolência me trouxesse a cura

e os ponteiros, em mim, alvorescessem?



Como haver encontro sem abandono?

Como, se em cada lavra há um retorno?

No tropel das lembranças, a resposta:



Entre alguns porta-retratos e o sono,

entre as horas cerradas e um contorno,

mais uma vez deixo a saudade exposta.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Não chega de saudade

          Vez em quando, perguntam-me por que sou tão cruel ao arremessar no limbo das crônicas o avesso do que esperam de um arlequim de escritor. Um questionamento retórico, por certo. Uma forma delicada, quase tíbia, de dizer que minhas palavras são torturantes. Sinceramente, não me incomodo com isso. O que subjaz ao texto não me é, de forma alguma, agônico. Admiro o poder destruidor da ironia e dele me sirvo quando há necessidade. Agora, não me venham corromper com a pecha de que não sei expressar outra coisa, senão rancores e insensibilidades. Apenas prefiro a ferida exposta, enquanto a maioria sai em desespero à cata de band-aids. Permitam-me, contudo, forjar um instante de contemplação ao que fere mais fundo e mais fecundo em qualquer ser humano: a saudade.
          Sentir falta de outrem, de coisas vividas ou desperdiçadas, de tempos repartidos ou perdidos, isso é inerente à condição humana. Somos criaturas eivadas de ausências. Cada átimo trilhado é uma certeza de que não retornaremos a ele, não da mesma forma como se nos apresentou da primeira vez que com ele deparamos. Explico: A rua por que passamos todos os dias não é a mesma, pela simples razão de que nós não somos os mesmos todos os dias. As coisas, as pessoas, o tempo, tudo é passível de mudança não por serem mutáveis na essência, mas sim porque tendemos a mudar o modo como enxergamos cada passo trilhado e retrilhado em nossas vidas. Mas o que isso tudo tem a ver com saudade?
          Ao contrário do que os arautos da pieguice apregoam, a saudade não é um estertor de dores e dissabores. Se a condição humana remete-nos, a todo instante, ao que não é mais tangível, palpável ou vivenciável, sentir saudade é presenciar a ausência. Temos as mãos calejadas de toda espécie de perdas. Sinto imensa falta da infância, por exemplo, quando a vida nos surpreendia sempre que nos atrevíamos a dar um passo em direção à maturidade. Recordo as empreitadas homéricas em busca das arraias que, por birra, teimavam em escanchar-se serenas no coqueiro do quintal. As lúdicas aventuras amorosas, sem compromisso, na porta do colégio. As saias rodadas das menininhas em botão. Os carrinhos de rolimã. Os ponteiros parando, admirados de tanta traquinagem.
         Arrisco dizer que, embora possível apenas na linguagem dos bêbados e poetas, também tenho saudade do que poderia ter sido. Se tivéssemos, naquela noite de lua e textos, aprendido a ler o que irrompia dos olhos. Se soubéssemos que cada mão espalmada na verdade representava o mais puro e indelével gesto de amor. Se entendêssemos que cada encontro marcado pelo acaso da procura poderia ser o último ofego. Se crêssemos que os sorrisos únicos, as palavras soltas, as línguas sedentas, tudo gestava um sentimento que, de tão incompreensível, tornar-se-ia a redenção de todas as farpas que nos foram arremessadas pela vida. Saudade, para mim, é um retrato desbotado do que se viveria intensamente, se não fôssemos covardes ao ponto de desacreditar que, nas carícias etéreas que compartilhávamos, havia mais do que corpos em sofreguidão. Éramos, pois, a prova inconteste de tudo que é universal e movente: remanescentes da mesma jornada, senhores das tenras palavras de aflição, detentores dos silêncios mais eloqüentes.
          Saudade é tudo que nos move ao passado, sem mágoa ou crises de histeria. É um baobá ancestral no qual gravamos nossos nomes e o de outros que, sem exigir nada em troca, ampararam-nos nas horas de desconforto. Assim, façamos da ausência um remanso, que muitos ainda nos farão o favor de chegar e partir. Sugiro que tranquemos nossas almas para evitar transtornos. Às vezes, é preciso agir assim para assegurar que nossas ausências jamais se ausentem de nós. Sem elas, sequer nos entenderíamos humanos. Sem elas, perderíamos a esperança de, um dia, voltarmos àquele velho baobá. Sem elas, não teríamos o cuidado de, ao fechar os olhos, verificar se tudo que perdemos ainda permanece onde deixamos.





sexta-feira, 9 de julho de 2010

HONRANDO DÍVIDAS

         Sem dívidas, não progredimos. Com essa máxima em punho, os capitalistas de plantão seguem firmes desde os primórdios das relações comerciais. Acontece que fui educado de uma forma diferente. Sou um desafeto das dívidas. Prefiro exercitar a tão espinhosa dádiva da paciência e esperar o momento certo de dar o bote. Trocando em miúdos, sou dos que optam por pagamento a vista, em qualquer situação. Entanto, a vida nos compele a dever, mesmo sem a obrigatoriedade de pagar. Lembrando as boas e indolentes aulas de Português, dever é verbo bitransitivo, ou seja, deve-se algo a alguém. Maldita sintaxe. Bastaria dever algo e pronto. O pior é dever a alguém. O que pretendo, pois, com tais divagações é tentar, pifiamente, honrar algumas dívidas.
          Aos meus diletos alunos, peço-lhes compreensão pelas vezes em que, mais por cansaço que por condescendência, suspirei em frente ao quadro branco e, num átimo de segundo, roguei aos céus a oportunidade de trilhar por outras veredas, menos serpenteantes. Ademais, não me senti culpado por pensar dessa forma. Outra coisa é que, por vezes, lancei ironias sobre quem não merecia. Disparei contra todos os contrastes, arrebentando sem propósito as coisas que me parecessem opacas demais, ao ponto de não refletir minha própria imagem. Por alguns momentos, usei a sala de aula por puro protesto, quase descaso, embora fizesse questão de que isso não se aclarasse. Não hei de jurar nunca mais agir assim, mas, pelos acintes desferidos, suplico perdão.
          Aos amigos presentes e ausentes, admiro-lhes a tolerância. Saibam que, se um dia a dor urgir e os tais fardos leves revelarem-se como realmente são, não poderão contar comigo. Entanto, não me tenham por mau caráter. É que amparar amizades exige compromisso, dedicação, desprendimento, ou seja, tudo aquilo que a vida fez questão de furtar, enquanto me pegava distraído pelos cantos. Confesso que sou daqueles que exigem demais de si e dos outros. Espero sempre que os outros me procurem, afinal são ou não são amigos? Se não ligo, é porque antes alguém pensou em me ligar e não o fez. Claro que, se todos pensassem dessa forma, não haveria motivos para tantas operadoras de telefonia, nem para grandes amizades. Ainda assim, cônscio das blasfêmias lançadas contra certas tolices sentimentais, sei que a amizade tolhe-nos preconceitos, permite-nos lembrar que, se estamos sozinhos no universo, existem constelações de indivíduos a gritar o contrário, empurrando-nos para fora da cama e fazendo-nos notar os benefícios quase psiquiátricos de uma boa conversa, uma cerveja gelada, um abraço verossímil. Amigos, pois, uni-vos em torno do nobre exercício da tolerância.
          Às impossíveis realizações, por desistência ou adiamento, não há o que dizer. Certos momentos já trazem em si todas as justificativas necessárias. Pensemos, portanto, que nunca existiu, em qualquer que seja a frente de batalha, um tropel tão fervoroso, uma trilha tão minuciosamente expugnada. Se não ofereci o fino trato, necessário às sentimentais empreitadas, abri-me por completo, deixei ser o que realmente sou, coisa rara em tempos de ocultamentos eletrônicos. Da maneira mais pueril, com olhar macerado de desejo, os toques em botão abrindo-se no alvorecer, os flagrantes arrepios no avistar, ao longe, a silhueta atemporal da figura amada, foi assim que me realizei nas impossibilidades. Destarte, apelo para a pena máxima, pois jamais mereci dedicação e decência. Mesmo assim, se do estreito cardíaco escorrer alguma misericórdia, favor não esquecer que, a despeito dos apelos, os amores partiram, mas deixaram a luz acesa. Em nome das boas intenções ecológicas, um dia voltarão para apagar. Nesse instante, em meio à escuridão, direi mentiras que, de tão necessárias, farão as verdades aqui derramadas parecerem sombras no jardim.

domingo, 4 de julho de 2010

EXTEMPORÂNEA

Às quatro, as horas pararam

no engalhamento das mãos –

arcanjos que me guiaram

pelo entrecruzar dos vãos.


Às quatro, o peso das coisas,

súbito, pôs-se a galope:

sua simples presença açoita

a mansidão do abandono.


Às quatro, fez-se vivente

no imaginário (uni)verso

eivada das indecências

derramadas sobre o tempo.


Às quatro, cravou a língua

nas ancas das solidão,

escarnando cada fímbria

dos ponteiros e dos nãos.


Às quatro, lúcida ou lúcifer,

enlanguesceu-se espantada,

que as ternas horas das núpcias

por tão pouco se findavam.


Às quatro, nas longas horas,

se não reparei seu grito

pelas noites belicosas,

é que fingi, por instinto.


Às quatro, restou-me a lápide

branda do porta-retrato –

imperfeição que não passa

pelo tempo, sempre às quatro.

sábado, 26 de junho de 2010

Os únicos

          O ano é 2016. Depois de inúmeros fracassos em supostas negociatas de paz, o inevitável apertar dos botões teve início. As potências bélicas mundiais dispararam centenas, milhares de bombas nucleares, numa queda de braço atômica que só terminou quando nada mais sobrou, nem soldados, nem civis, nem baratas. No planeta, em jus ao nome, restou apenas terra e pedras. Os mares secaram, os bichos foram pulverizados, os céus acinzentaram-se definitivamente. Estranhamente, dois sobreviventes, os únicos na imensidão morta, enquanto buscavam alguma razão para não acreditar, encontraram-se.
          - Você!
          - Eu!...
          - Não acredito...
          - Provavelmente eu também não acreditaria, se soubesse em quê...
          - É você!
          - Bom, disso eu já sabia. Agora, quem é você?
          - Não se lembra?
          - Pela pergunta que fiz, a resposta é óbvia, não acha?
          - Meu Deus, mas logo você...
          - Está me deixando curioso.
          - Você realmente não se lembra?
          - É o que parece...
          - Nós dois!... Nós nos conhecemos...
          - Melhor corrigir, você parece me conhecer, mas eu não me lembro de você.
          - É que nós já...
          - Já fomos casados?
          - Não!
          - Noivos? Namorados?
          - Não! Não!
          - Então?
          - Nós fomos amigos, ou melhor, mais que isso...
          - Mais que amigos, mas não namoramos ou casamos. Isso me parece estranho. Sinceramente, não creio que você seja da família. O que fizemos de tão marcante?
          - Nada. É que nós éramos importantes um para o outro.
          - Nem tanto, senão eu lembraria. Talvez eu tenha sido mais importante para você do que você para mim.
          - A verdade é que, um dia, eu amei você!
          - Amou? Mas como? Aprendi na vida que amor exige, no mínimo, companhia. Se você verdadeiramente me amasse, estaria do meu lado, mesmo no fim do mundo, mesmo diante de tamanho desespero, mesmo crendo que não haveria amanhã...
          - É que já faz dez anos...
          - Dizem por aí que quem ama espera. Viu o que dá esperar tanto! Não sobrou nada, nem uma árvore para gravar nossos nomes com um canivete.
          - Tinha medo do que sentia por você...
          - Medo? Do jeito que as coisas estão, medo é a única coisa que sobra. Mas não faz sentido ter receio de revelar algo tão raro quanto o amor. É verdade que pode parecer um tanto perigoso, afinal amar não é para quem não se arrisca. Quem vive uma vidinha regrada, cercada de horários, afazeres, agendamentos, esse nunca experimentou amar. Olhe ao seu redor. Só nos resta o caos. Talvez o amor seja o avesso disso.
          - Mas agora nos reencontramos...
          - Você me reencontrou, mas eu apenas encontrei você...
          - Agora podemos ficar juntos...
          - Não há mais razão para isso. Esperamos tempo demais. O mundo acabou. Não há mais poesia a ser comentada, nem lua que nos ampare, nem serra por visitar, nem relógios para quebrar, nem nada...
          - Quer dizer que...
          - Quer dizer que ainda nos restam as mãos, mas essas nunca seguiram unidas, como que por vergonha do que outros diriam.
          - E nós?
          - Façamos um trato: Caminharemos em direções opostas até desaparecermos no limbo. Se, daqui a dez anos, nos reencontrarmos, ficaremos juntos e refaremos nosso mundo.
          - Mas isso é impossível...
          - E assim não são todos os amores?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Este é um texto de um aluno (leia-se amigo), no qual ele expressa sua sentimentalidade em relação à amada. Pediu um espaço no blog para publicá-lo. Seja bem-vindo, meu caro Ruan.

         
         
          O encantamento, na sua nuance mascarada de perfeição, concebe uma ponte de ânsia sustentada por hastes de convicção em um futuro que transpõe a lógica dos mortais e torna-se mais presente ao passo que o tempo avança.
          Será fruto de um fascínio quase inocente ou existe uma ponte limitada para os corpos, e infinita para as almas, que preencha a amplitude que nos separa?
          Nesse momento, percebe-se que a diferença entre dois substantivos é um verbo; que a imaginação converte-se em realidade por meio do querer.
          Não quis o mundo, pois não me daria você. Mas quis você, uma vez que me daria o mundo. Mundo em que faço morada me sentindo cada vez mais seguro, realizado e principalmente feliz. Felicidade que se encontra na casa, na família, na vida e até na própria existência. No entanto, a minha encontra-se, também, Na morada.

Feliz Dia dos Namorados!

domingo, 30 de maio de 2010

VIOLÊNCIA

          De tempos em tempos, alguns parcos acontecimentos nos violentam conceitos arcaicos, desses que, de pura teimosia, mantemos acesos como uma forma velada de protesto ou, quem sabe, uma engenhosa maneira de maquiar limitações e covardias. Por certo, os mais estridentes urros de insegurança não são menos agressivos que o mais distante susto no olhar magro de uma criança. Somos limitados a tal ponto, que nos irritamos ao depararmos com um menino ossudo, saliente em todas as direções, esticando as vistas para o que temos de mais mesquinho, o coração. Se resguardamos as bolsas junto ao peito ou conferimos os bolsos a cada encontro indesejado com a miséria, fazemo-lo por um instinto enviesado instituído ancestralmente. Quando muito, apaziguamos nossa civilidade com esmolas. Sem afagos ou sorrisos. Esses de rua querem dinheiro. Carinho não enche barriga de ninguém. Ao ofertarmos cinco ou dez centavos a algum sem-nome que agride o refrigerado conforto de nossas máquinas, estamos, por certo, depositando alguns pontos nas milhagens que, um dia, serão suficientes para nos garantir hospedagem em um paradisíaco resort no céu.
          Quando ele chegou, o tempo, em todas as direções, acinzentava-se. Devia ter oito, talvez sete anos, menor do que qualquer coisa que se pudesse, num momento de desespero, considerar parâmetro de pequenez. De mãos débeis, foi-se chegando em gestos grossos, adultos, tirando do meio das costelas um revólver maior que seu braço. Como num susto, abancou-se no banco de trás, tateando com os olhos amarelecidos cada palmo do painel, dos bancos.
          - O que é isso?
          - Celular...
          - Desliga!
          Via-se que não era um amador. Ofegava compassadamente, como se calculasse cada passo, pois não estaria ali para perder tempo. Por um instante, acreditei ser capaz de tirar-lhe o revólver. Não sou assassino e, ainda que fosse, era apenas uma criança. Seguimos em frente, os olhos esbugalhados indicavam as direções. Pensei estar me levando a um lugar deserto, o que os programas policiais chamam ermo.
          - Dobra à direita, à direita...
          Dezenas de pessoas, cheiro de pipoca doce, maças caramelizadas. Meu Deus, era um parque de diversões. Ordenou com um quase sorriso que eu saísse do carro. Passou-me a idéia de que estaria lidando com uma precoce mente criminosa, que daria cabo de mim ali mesmo, no meio da multidão, dezenas de suspeitos, confusão instaurada, tempo de sobra para fugir, quem desconfiaria de um menino ossudo como aquele?
          - Bora, tio, me dá a mão e não esquece que eu tô com o berro!
          Seguimos assim, de mãos dadas. Ele me apontava o colorido das coisas, os brinquedos de piruetas nauseantes, as sinuosas acrobacias do palhaço que vendia algodões-doces. Queria ir na roda gigante.
          - Vamo, tio, é alto demais...
          No mundo, nunca houve sorriso tão cortante. Tudo era êxtase naqueles olhos rasgados, de tons castanho-claros. O vento amparava-lhe os movimentos. Levantava os braços, uivava. Numa dessas, deixou o revólver cair nos meus pés. O olhar morto do início retornou sem dó e o tempo novamente emagreceu.
          - Pega... deixa cair mais não...
          - Tá certo, tio...
          Passamos por quase todos os brinquedos, tirando o carrossel e as xícaras, que eram de criancinha. Comemos pipoca, rimos do melaço do algodão derramado na cara, mandamos ver num apetitoso sanduíche. As forças já no final, voltamos ao carro. Miramo-nos por alguns segundos. Teimou um abraço, mas não resistimos. Aninhou-se longamente em meus braços, já não me parecia tão magro, o revólver ainda estava lá. E correu para nunca mais.
          Seria melhor que tivesse me assaltado. Não doeria tanto.