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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Carta à Maria, por seu aniversário.




          Amor,

       Nasço contigo. Passaram os dias em águas tão mansas, tão demasiadamente leves, como dedos de mãe, que me distancio a contragosto e, assim mesmo, alcanço teu cheiro de maracujá. As ruas emolduradas de gentes famintas levam teu nome; por teus olhos, entre ternura e espanto, levantam-se os meios-fios com cartazes e palavras de ordem, que tens a trena da mudança. Tua delicadeza caligráfica ergue-se em letras navalhantes, circuncidando a alma escandalosa dos políticos. Não há discurso, por mais torpe, que em ti não encontre aprumo. 
        Os anos nos abraçam e nos confortam, como se estivéssemos em coma, sem movimento qualquer, sem voz que fosse, apenas a faculdade da audição, o suficiente para manter viva a esperança de um novo começo. Por teus passos, descobri a razão das lendas que encantam, dos mitos sobre os quais se erige o germe do sonho. Nasceste assim, feito sonho. Vieste ao mundo pelo acaso dos encontros e nunca deixaste de regar tuas raízes, nunca afiaste suficientemente o fio do rancor; ainda que sem tempo, ou mesmo razão, não julgaste os atos levianos que sucederiam por correr em tuas veias sangue alheio. Em ti, resguarda-se a sina da compreensão. Por isso mesmo, estreitaste os laços genéticos com atitudes de extrema maturidade, com desproporcional obstinação por orgulhar os entes queridos, com eximia habilidade de mãe, ainda que tão menina quanto os que em ti depositavam olhos lactentes. Aos poucos, teus braços rijos transformaram-se em colunas jônicas a sustentarem os templos onde os teus, cegos ainda, rogavam a um deus desconhecido. Tua face, encantatória e venusta, passou a chamar a atenção dos viventes. Entanto, é em teus gestos de profunda nobreza que os dias se desenham. Apesar da perfeição íntima de tuas carnes, buscaste no rigor da simplicidade os motivos de teus passos. Assim, passaste a ser responsável por tudo que te é caro e, a um só tempo, doloroso. Se não tiveste livros novos, mantiveste a vontade de aprender; se não recebeste o primeiro abraço, conservaste a importância de defender os teus; se não foste presenteada com a melhor máquina, jamais viste o mundo de forma maquinal; se sofreste pelas mãos dos que te prometeram amor, procuraste motivos e não culpas; se o passado te obscurece, lançaste luzes sobre o futuro; se as mãos cerravam-se em tua direção, criaste, por isso, uma nova maneira de cumprimentar; se poucos te guardaram amizade, provaste a eles que não estavam sós; se o tempo empacou, quebraste relógios; se espelhos não havia, descobriste a beleza nas poças d'água, após a chuva; se duvidaram de tua força, aprimoraste tua erudição de mestra. 
           Morena, de traços modernistas, trouxeste contigo o destino de todas as brasileiras. Saíste de tua terra com a mala entupida de dúvidas. Pela janela do ônibus, descobriste uma cidade movediça, eivada de solidão. Tua alma de sertaneja tremeu por um instante. Em teu nome, cultivaste o amparo necessário. Maria. Maria de todas as formas que se poderiam conceber. Maria da Aurora. Maria do Desterro. Maria das Dores. Maria dos Prazeres. Maria dos Remédios. Maria da Esperança. Maria de Deus. Nesse nome, que cinge o destino de tuas ancestrais, percebeste os motivos vários de teu novo destino. No proscênio dessas horas desgovernadas, entrei em tua vida, feito texto antigo que se perde, por descuido, na gaveta da cômoda. Quando notaste o lugar sem vida que te aguardava, ornaste as esquinas com flores russenses, com peixes coloridos; azulaste o céu e estrelaste a noite. Aos poucos, o mundo tornou-se mais familiar. A partir daí, já sem medo, sem tantas dores, propuseste um pacto à vida: virias a ser a primeira, não por vaidade, mas por compreenderes que, assim ocorrendo, poderias amenizar os caminhos dos teus. Choraste porque os grandes choram. Sofreste porque é doloroso plantar em solo arisco. Temeste porque é preciso respeitar o mar antes de singrá-lo. Até hoje, depois de tamanhas batalhas, na sua maioria vitoriosas, trazes a grandeza da fé. 
            Em teu aniversário, Maria, desejo-te banhos de chuva no quintal de casa, manga verde com sal, noites em sonhos macios. Desejo-te palavras de alento, ruas sem sinais vermelhos, coletivos sempre vagos com lugar à janela. Desejo-te um abraço silencioso de mãe, um conselho certeiro de pai, um olhar remoçante de irmão. Desejo-te a hora precisa da amizade, o elogio despretensioso dos mestres, o pelo suave de tua cadelinha Pit. Desejo-te a batida desesperada de um coração surpreendido, a lágrima incontida em um instante de certeza, a cheiro morno do café de tua avó Maria. Desejo-te outra viagem inesquecível, o vinho tinto suave em meio à cerração de Guaramiranga, um banho de mar à noite. Desejo-te um poema de Adélia Prado, uma foto com Lenine, um dedo de prosa com Lula . Desejo-te uma casa de paredes ensolaradas e muitas janelas, uma varanda voltada para o oriente, uma cadeira preguiçosa posta à calçada no final da tarde de domingo. Desejo-te surpresas mil por parte de teus amigos, o contato inesperado de alguém querido há muito distante, as estórias cor-de-infância de teu avô. Desejo-te a seiva mais doce, a praça mais iluminada, o conforto mais insistente. Desejo-te um dez com louvor, o abrigo dos anjos da guarda, a proteção de todas as santas ditas Marias. Desejo-te um mundo sem trevas e fomes, faces sem cores, madrigais sem rimas obrigatórias. Desejo-te muito mais tempo. Desejo-te vida em vapor pleno. Quando não mais por aqui eu estiver, continuarei desejando-te. 
              Feliz aniversário, minha vida. 


segunda-feira, 14 de abril de 2014



          O alento desmedido da aurora tecia as horas, conspurcando-lhes a genuinidade. Todas as manhãs assim seguiam, irresolutas, com o amargor do anteontem; a piçarra estendia-se ao correr das vistas A claridade ofendia as retinas, que se esbranquiçavam em manchas algodoadas. Os pés nus do caboclo e o leito rachado do açude do Careta davam-se como amantes antigos. Os bichos e os homens sustinham-se nos ossos. A terra era sem forma e vazia. E houve luz. Maria do Amparo, filha do artesão dos pífanos, cuidava de buscar água no barreiro. Maria Caçula atiçava o fogo, que era ofício seu dar gosto ao feijão. Água e sal. Botava olho também nas três curuminhas mofinas que teimaram em vingar na salmoura do tempo. Maria de Jesus, a mais velha, cambitos finos, mirrava-se no terraço - de tão magra, não tinha sombra;  Maria Mercês, nem grande, nem pequena, olho espantado do sopro abafadiço que corria no terreiro (hálito do coisa ruim!); Maria dos Anjos, arruinada por uma doença que a impossibilitava de andar e falar, escaveirada. De não mais caber vivente, o sítio, de nome Comum, ainda guardava em sua taipa a velha Maria Mocinha, arguta e senhora dos interesses alheios. A comida escasseava. Lá vinham os baldes com lentidão, debitados nos braços de Amparo, a mais rija das Marias, descabimento de força.


continua...