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quinta-feira, 29 de abril de 2010

A árvore

No cedo de sempre, manhãzinha nublada, desatordoou-se com um tapa de água fria e um café meio amargo. Sem quebrar o costumeiro, aprumou-se na camisa, engomou o cabelo, mirou por um instante o próprio reflexo no vidro espelhado do boxe.
Caía uma chuvinha irritante, dessas de enregelar os nervos. O trânsito, para variar, caótico. Todas as buzinas do mundo, em uníssono, berrando. A chuva aumentava, e a condução, talvez por isso mesmo, dera de estancar. Desceu do ônibus inconformado com o atraso. Era dia de reunião, o famoso balanço trimestral, e aqueles tinham sido meses de boas vendas, ultrapassara de longe as metas para o período. Sentia o cheiro de gerência. Mas estava atrasado. Parados, os carros se aglomeravam no asfalto. A chuva há muito lhe deixara a camisa ensopada. O corpo pesava e os olhos intumesciam.
Abancou-se debaixo de uma marquise. Os pés incomodavam. Descalçou-se de não suportar o inchaço dos dedos. Aos poucos, percebia as pernas enrijecendo, amarronzando-se das lamas espirradas pelos passantes. Tentou em vão mover-se, voltar para casa. O corpo não mais lhe atendia. Os joelhos perderam a dobradura. Estava teso, grosso. Os dedos dos pés começaram a dilatar, seguindo um movimento tal, que cada extremidade corria em uma direção, penetrando no asfalto, procurando um resto de natureza sob o betume. As pernas não mais existiam, amalgamadas em um mesmo tronco, que agora sustentava o que havia sobrado de sua humanidade.
Aos poucos, os braços petrificavam-se, elevando-se em direção à chuva. As mãos tomavam dimensões absurdas, enlargueciam e espichavam, enquanto seu tronco deformava-se, agigantando-se de forma colossal. Os dedos, de cujas pontas alargadas brotavam pequenos apêndices, iam longe, buscando furar as nuvens que separavam a cidade e o céu. O rosto foi desaparecendo em meio a densas folhagens que irrompiam das orelhas, do nariz e dos olhos. Os passantes gritavam de pavor, entoavam cânticos armagedônicos, sentiam-se perdidos diante da metamorfose que presenciavam. Um homem, no meio de tantos, transformara-se em uma gigantesca árvore.
As autoridades foram contatadas. Não havia no asfalto espaço para quem quisesse se mover. Centenas de olhares perplexos caminhavam em direção à copa da árvore. Entre admirados e descrentes, alguns espectadores sentavam nas grossas raízes que rasgavam o asfalto. As crianças penduravam-se nos cipós pendidos dos galhos. Pequenas flores brancas desciam em floco e cobriam a multidão. Chuva não mais havia, nem asfalto ou concreto. O céu dera lugar a um esplêndido verdor, que não parava de se estender pelas esquinas, lojas e repartições. A visão do povaréu ia se acostumando ao orvalho que cintilava em cada folha, quais milhões de olhinhos enternecidos a oferecer o derradeiro perdão. Os que se recostavam na árvore eram absorvidos por elas, assim novos galhos surgiam. Os que miravam de longe grunhiam levemente, sem medo e sem atrasos.

domingo, 25 de abril de 2010

Coração, para que te quero?

         Não sei amar. Talvez pelo fato de ser unigênito. Sequer aprendi a compartilhar amor ou mesmo jamais me permiti recebê-lo. É que para amar é necessário idealizar. Os românticos, pois, que me perdoem, mas nunca fui de maquiar realidades, por mais duras ou indecentes que fossem. Penso não ser possível que um corpo, com todas as extremidades, meniscos, capilares e outras cositas mais, apenas um reles e impreciso corpo, possa, no aproximar de outro corpo, despender reações que não sejam inerentes tão-somente à alquimia do sexo. Tudo que se convencionou chamar amor não passa de uma bem forjada estratégia de dominação, uma espécie de lobotomia emocional que nos torna vazios, vaidosos e venais.
          Desde que inventaram o amor, criou-se uma indústria de sentimentalidades, cercada de poemas com rimas adocicadas, canções com estribilhos fáceis, flores de caule domesticado. Amar aquece a economia. Os namorados, levados por impulsos pueris, presenteiam-se quase que todos os meses, ao menos no primeiro ano de namoro, pois nos demais a coisa naturalmente arrefece – em tempos de mobilidade digital, basta um ano para que todos os mistérios do e-mail e do corpo da pessoa amada sejam desvendados, o que evidentemente faz tudo perder a graça. Se já casados, os mimos tendem a ficar mais caros. Os inesquecíveis ursinhos de pelúcia dão lugar a jóias, jantares em restaurantes requintados ou viagens mirabolantes. Lembrando que, muitas vezes, a balança comercial agradece a uma figura essencial para consolidar o crescimento do PIB de qualquer nação: a outra. O presente da amante é sempre mais pomposo do que o endereçado à esposa. Pelo exposto, resta-nos concluir que o amor é a mais criativa e devastadora invenção dos capitalistas.
           Amar indubitavelmente nos torna egoístas. Exigimos do outro a total e absoluta submissão. Qualquer movimento do outro tem que ser em prol da nossa felicidade. E ai daquele que se rebelar e tentar, democraticamente, reivindicar direitos, atenções, afetos. Os insurgentes logo ficam sujeitos a penas desumanas: horas e horas de desabafos e lágrimas, acompanhadas de um bem servido prato de discussão de relação; metralhadoras de acusações lhes são apontadas, e o sinal para os disparos é o famigerado “Você não gosta mais de mim!”. As milícias que se preparam para combater a autocracia do amor logo são dizimadas, já que é impossível escapar-lhe à ubiquidade. É que em todos os lugares, em qualquer que seja o grupo, existe um espião infiltrado, pronto para dar a vida pela preservação do sistema romântico vigente. Um dia, levantaram a bandeira do amor livre, mas esqueceram que, ao libertá-lo, todos os que dele dependiam findaram escravizados. O amor é Hitler.
            Amar pressupõe ainda um toque de crueldade. Imaginemos um homem, que chamaremos de Sr. X, e uma mulher, que trataremos mui carinhosamente por Sra. Y. Eles se encontram de forma casual, mas pensam ser artimanha do destino. Ambos adoram leitura, não agüentam cebola, comem pizza sem maionese e não bebem coca-cola. Pura coincidência. Entanto, crêem-se nascidos um para o outro. Com o tempo, a proximidade entre eles é tal, que chegam a falar em vidas passadas, já que a única explicação para tanta cumplicidade só pode estar no fato de que, em outras encarnações, tenham sido irmãos, amantes ou pão com manteiga. Claro que isso tudo faz parte de um processo extremamente complexo de dominação. Depois de todas as crendices depositadas, começam os desgastes. Passam a perceber que, se ficarem juntos, a amizade sincera que os une estará comprometida para sempre. Tolice, uma vez que, ao menos na teoria, seria impossível amar sem amizade. Assim, optam por continuarem amigos, mas sem descartar a possibilidade de um lindo relacionamento um dia. Só que, nesse meio tempo, Sra. Y realiza experimentações. O pior é que o pobre Sr. X presencia tudo aquilo, suportando bravamente a dor de ver a suposta amada nos braços de outros. Por fim, depois de idas e vindas, decepções e concepções, chegam à conclusão de que é muito mais cômodo nunca mais se verem. Amor é perda de tempo.
           Por amar demais, muitos cegaram antes do tempo. Outros tantos, à procura da perfeição amorosa, abriram mão de ascensão profissional e mental. Alguns choraram por não concretizar o amor. A maioria chorou depois de concretizá-lo. Nesse caso, chora melhor quem chora primeiro. Para amar, não é necessário coração. Estômago e fígado são muito mais úteis nessa hora.





quinta-feira, 15 de abril de 2010

Bastasse escrever um poema lírico
dos amores pousados nos telhados
Bastassem os olhos pelas venezianas,
descolorir as horas, suster a saudade.
Bastasse a bússola do sorriso
no desabrocho de alguma delicadeza.
Bastasse o impressentido da palavra,
lastro do que se foi e não passa.
Bastasse a recriação das horas audíveis:
cada átimo enferruja os gemidos.
Bastasse uma vez mais o face-a-face
e a promessa – um antigo retrato da memória.
Bastasse uma sonata definitiva,
um desejo que se imiscui e alastra.
Bastasse um sutil encalhe, a tempo,
pelas intempéries da face.
Bastasse esse vão aberto no peito
margeando o campo e uma rosa breve.
(Que asas asseguram a canção nos telhados?).
os homens não me abrem suas portas,
as casas sim.

muros caiados e um grito antigo
arremessado das calhas

as grandes janelas, molduras em alpendre,
incitam o novelo

corredores escorrem pela taipa,
a escada é-nos derramada e o desvario

espectros ovais dos quadros
verticalizam rangeres e nostalgia

um engenho nos espanta impressões
um remorso nos empenha milagres

Lá fora, não há homens ou mulheres

domingo, 11 de abril de 2010

HAITI

não me bastam rimas,
sequer o gosto dos licores, os jenipapos
ou o sulco das faces espremidas nos pedaços
de sótão, arremedos do passado.

ferve-me o desaprumo,
desbrotante, impressentido, aviltado,
que a faina dos meus é coisa estranha,
que a terra que piso é sepultada.

absorto, sobrevém-me o espasmo,
negras faces soterradas de miséria,
asco espasmódico, braços carcomidos,
gleba infame de monturos e malogro.

a imagem do pequeno me entorpece,
face escarnada, retina arrependida
de ter que mirar o risco que limita o mar,
cotejo das coisas que, ao longe, são onicolores.

SONETO DO AMOR ANDRAJOSO

Quando, em tudo, espanto não mais havia
e as faces modorrentas se engelhavam,
a flor sem zelo de que me falavam
irrompe estúpida, por picardia.

Era torpe, decerto, e fugidia,
antítese de todos que a miravam,
alimentada pelos que a negavam,
descrente do tempo, apenas sorria.

Porém nesse sorriso exasperado,
cercado de delicada amargura,
mas eivado de uma turva esperança,

mirei, em mim, o que se fez sagrado:
na indecência daquela criatura
colho o sol, sem medo, feito criança!