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domingo, 30 de maio de 2010

VIOLÊNCIA

          De tempos em tempos, alguns parcos acontecimentos nos violentam conceitos arcaicos, desses que, de pura teimosia, mantemos acesos como uma forma velada de protesto ou, quem sabe, uma engenhosa maneira de maquiar limitações e covardias. Por certo, os mais estridentes urros de insegurança não são menos agressivos que o mais distante susto no olhar magro de uma criança. Somos limitados a tal ponto, que nos irritamos ao depararmos com um menino ossudo, saliente em todas as direções, esticando as vistas para o que temos de mais mesquinho, o coração. Se resguardamos as bolsas junto ao peito ou conferimos os bolsos a cada encontro indesejado com a miséria, fazemo-lo por um instinto enviesado instituído ancestralmente. Quando muito, apaziguamos nossa civilidade com esmolas. Sem afagos ou sorrisos. Esses de rua querem dinheiro. Carinho não enche barriga de ninguém. Ao ofertarmos cinco ou dez centavos a algum sem-nome que agride o refrigerado conforto de nossas máquinas, estamos, por certo, depositando alguns pontos nas milhagens que, um dia, serão suficientes para nos garantir hospedagem em um paradisíaco resort no céu.
          Quando ele chegou, o tempo, em todas as direções, acinzentava-se. Devia ter oito, talvez sete anos, menor do que qualquer coisa que se pudesse, num momento de desespero, considerar parâmetro de pequenez. De mãos débeis, foi-se chegando em gestos grossos, adultos, tirando do meio das costelas um revólver maior que seu braço. Como num susto, abancou-se no banco de trás, tateando com os olhos amarelecidos cada palmo do painel, dos bancos.
          - O que é isso?
          - Celular...
          - Desliga!
          Via-se que não era um amador. Ofegava compassadamente, como se calculasse cada passo, pois não estaria ali para perder tempo. Por um instante, acreditei ser capaz de tirar-lhe o revólver. Não sou assassino e, ainda que fosse, era apenas uma criança. Seguimos em frente, os olhos esbugalhados indicavam as direções. Pensei estar me levando a um lugar deserto, o que os programas policiais chamam ermo.
          - Dobra à direita, à direita...
          Dezenas de pessoas, cheiro de pipoca doce, maças caramelizadas. Meu Deus, era um parque de diversões. Ordenou com um quase sorriso que eu saísse do carro. Passou-me a idéia de que estaria lidando com uma precoce mente criminosa, que daria cabo de mim ali mesmo, no meio da multidão, dezenas de suspeitos, confusão instaurada, tempo de sobra para fugir, quem desconfiaria de um menino ossudo como aquele?
          - Bora, tio, me dá a mão e não esquece que eu tô com o berro!
          Seguimos assim, de mãos dadas. Ele me apontava o colorido das coisas, os brinquedos de piruetas nauseantes, as sinuosas acrobacias do palhaço que vendia algodões-doces. Queria ir na roda gigante.
          - Vamo, tio, é alto demais...
          No mundo, nunca houve sorriso tão cortante. Tudo era êxtase naqueles olhos rasgados, de tons castanho-claros. O vento amparava-lhe os movimentos. Levantava os braços, uivava. Numa dessas, deixou o revólver cair nos meus pés. O olhar morto do início retornou sem dó e o tempo novamente emagreceu.
          - Pega... deixa cair mais não...
          - Tá certo, tio...
          Passamos por quase todos os brinquedos, tirando o carrossel e as xícaras, que eram de criancinha. Comemos pipoca, rimos do melaço do algodão derramado na cara, mandamos ver num apetitoso sanduíche. As forças já no final, voltamos ao carro. Miramo-nos por alguns segundos. Teimou um abraço, mas não resistimos. Aninhou-se longamente em meus braços, já não me parecia tão magro, o revólver ainda estava lá. E correu para nunca mais.
          Seria melhor que tivesse me assaltado. Não doeria tanto.

sábado, 29 de maio de 2010

Menino-palito-sem-paliteiro

                                                                    
                                                                               A João, meu filho.




Era água tanta, que alguns, em desatino,

chegavam a arrancar as próprias asas

porque lhes servissem de embarcação.

Menino-palito liga para chuva?

Admirava-se dos clarões,

das estrondosas estripulias dos trovões.

Tocou nele a mão materna, e descobriu as plumas do mundo;

dedos tão pingo-de-chuva

a cobrir-lhe o parco tronco:

a chuva e o colo faziam resguardo.



Menino-palito fez a chuva rasgar a janela,

sentiu sem nunca ter sentido,

os pingos perfuravam-lhe a face

e gargalhou com vontade.

O que assustou foi quando, no céu,

abriu-se um vão,

rompendo uma fiada azul:

tudo tem seu tempo de ir e vir.

Chorou sem que ninguém notasse.

É que gente também chove.

contrafluxo

brinquei inocente

de cor e brasão

nas brasas contidas

de teu coração



sumiste na mão

cerrada no tempo

a rosa dos ventos

secou de repente



me fiz astrolábio

em nau capitã

tangendo os unguentos

à cata de chã



ardi sem promessa

descri ter instinto

sem recuperar

teu olho retinto



mirei bom caminho

em tenra escalada

ruidosa mudez

bailante do nada



de tanto escapar-te

e muito fingir-te

me fiz unigênito

sem ora ou porvir



agi temporão

galhos ressequidos

hastes apontadas

no espasmo de um grito