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domingo, 11 de agosto de 2013

Sobre passarinhos e escaladas



         Dias desses, numa tarde de cair vermelho, figurinha pequena, desamparada por sua pequenez, mirava da forma mais antiga um pardalzinho equilibrista em um cai-num-cai elegante, dependurado no fio de energia elétrica. Quem imagina o que o pequeno sonhador pensava: se na fragilidade grácil daquela criatura ou se na liberdade descompromissada do passarinho que, por não ter ninguém que o alertasse dos encantadores perigos da vida, saltitava sem medo sobre o fio de alta tensão. O que se via era um garoto, o menor entre os seus, farolando as peripécias do pardal, imitando os movimentos do bichinho, sacudindo com certa ternura os braços magriços. E o menino voava, e caminhava leve sobre os fios elétricos, e cantarolava uma canção afinadíssima, e todos os pardais do mundo o reverenciariam. A gênese da felicidade. 
       Para ser feliz, tem-se que permanecer em alerta, estar atento aos detalhes. Cada traço a delinear as horas é motivo bastante de crença na vida. Viver, em sua mais pulsante plenitude, é que move os seres, e o que lateja em cada um são as despercebidas alegrias, essas que preenchem paulatinamente o tempo, aprimorando desejos e lembranças. É que somos trágicos, necessitamos de drama e atrelamos a felicidade a momentos de inigualável grandeza, o que naturalmente nos oculta pormenores. Se se escala a montanha, encantam o topo, a bandeirola fincada, o gigantismo das paisagem ao longe, em cartão-postal. Mas, no meio da escalada, uma pedrinha maldita dá de soltar-se e obriga o alpinista a reinventar instintos até conseguir, entre sorte e perícia, retornar à calmaria inicial. Anos e anos se passam, até que o escalador, agora aposentado, em um último passeio pelo que vivera, recorda a dita aventura. A paisagem de proteção de tela, a enormidade do paredão de pedra, a coragem de se chegar ao ápice, nada tem a mesma nitidez do que a pedrinha que o fizera escorregar. Uma pedrinha solta, maior que a própria montanha. Esta o fizera crer na chegada; aquela trouxera a importância de se respeitar o passo. 
         No final, apenas sobram essas pedrinhas, invisíveis por sua discrição, mas persistentes na memória. Há tempos deixei de lado as pedras e os pardais que trazem consigo a essência da felicidade. Preciso, então, retomar planos, desamarrar cadarços. Exatamente agora, vejo-me em outros tempos, sexta-feira, final de expediente, calças arregaçadas, a água do mar ainda morna correndo pelos pés descalços. E uma paz higienizava o espírito. Meu filho, ao meu lado, encalacrado no computador, risada arteira de menino, tagarelando novidades sobre qualquer assunto. É felicidade em sua raiz mais bruta. 
          A canção certa, quase terapêutica, tocada no rádio, sintonizada pelo puro acaso, faz-me sorrir. A cara enjoada de meu menino pouco antes do banho, faz-me sorrir. O instante em que se percebe o aluno aprender, pelos sinais naturais de seus olhos, faz-me sorrir. A ligação inesperada de um amigo há muito escondido pela rotina, faz-me sorrir. As palavras encaixadas em perfeito mosaico, fazem-me sorrir. O tempo que não passa ou a dor que passa, às vezes, fazem-me sorrir.
          Parece que alguns passarinhos ainda me encantam. Agora, não se pode ter receio ou vergonha de imitá-los, batendo asas que ali sempre estiveram, porque, para voar, antes é necessário acreditar no voo. Se é simples, não sei, e é até melhor que não seja. Ser feliz talvez seja simples questão de sorrir. Sozinho ou não, sobrevivendo ou não, acreditando ou não. Penso que retomarei o hábito de passear na praia ao final do expediente. Há riscos, por certo. Mas a felicidade quer de nós uma contrapartida. Ser feliz, pela própria subversão do ato, exige coragem.  

Um comentário:

  1. Silval, seus textos são sempre muito inspiradores. De uma simplicidade encantadora. E são sempre muito reveladores. Verdadeiros. Inteiros. Cheios de alma, e sem dúvidas são feitos com amor.

    Rose, sua fã. :)

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