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domingo, 29 de setembro de 2013

Oração à Maria


À mulher que me ensina, todos os dias, os caminhos do amor.

Guiai-me as horas, as horas plangentes,
as horas mortas, horas brancas, puntiformes,
as intermináveis horas deflagradas em minha direção,
as horas que não têm princípio nem hão de ter fim,
as horas que emergem de vossos olhares atentos.

Alertai-me, ó Mãe, das agruras deste mundo,
que direis uma só palavra para sobrevir o bafejo da criação
em vossas mãos de pétala, mãos de lavrar almas desafortunadas,
mãos que pingam em pingos ligeiros e impressentidos,
mãos de adivinho, de cura e protesto - aéreas. 

Permiti-me cumprir minha sina ao vosso lado,
sob a proteção de vossas asas, sereníssimas asas,
que sois dotada de asas, como pássaros ou anjos,
que sois, dos seres, a invenção, a matriz, não por acaso mãe,
maria, soberana, sóbria, madrigal. 

Estendei vossas bênçãos a quem por vossa presença clama
por reconhecer a divindade de vosso nome, 
a prosperidade de vossa estirpe, o emoldurado de vossos
olhos vitrais... Vinde, Rainha que temeis a apostasia,
rogai, docemente, por este que em vós habita.



O menino que catava nuvens



         Desde sempre, o pequeno perdia-se mirando o céu, imaginando formas nas nuvens. Tanta nuvem, que perfeição. Bicho, gente. Numa dessas, apareceu um tigre-de-bengala, presas gigantescas, perseguindo uma lebrinha inocente, pega-não-pega sem fim, e nunca se viram garras tão sanguinárias. Quando deu de montar no dragão algodoado, o céu transformou-se em tela de cinema. Já viu nuvem tão grande, de não se ter quase nada do azul, que preferiu nem arriscar forma qualquer. Tapete, parecia tapete, ou rabo de gato persa. 
            Finalzinho de tarde, vermelho de dar gosto, e ele lá, catando nuvens com um galho encantado de carrapateira. Mas, como por encanto, o céu virou clareira. Nuvem mesmo, só uma, miúda demais, disforme, mais parecia investigar quem de baixo insistia na vigília. O menino, um tanto chateado, jogou de lado o galho, que encanto já não tinha, esperançoso de um céu diferente no dia seguinte. 
            Demorou até a tardinha do outro dia espreguiçar-se nas horas. O céu estava com cheiro de nuvem. Correu o molequinho para o quintal, sem galho, sem nada, só a vontade de imaginar quais desenhos estariam ali suspensos. E nada. O céu não passava de uma imensidão azul, uma abóbada fria, um tecido sem pintura. Apenas uma nuvenzinha passeava por ali, despretensiosa, nanica, sem graça. Dessa vez, o menino demorou-se um pouco, tentou dar forma àquela nuvem. Cachorrinho poodle. Bicho-da-seda. Bobagens. Onde estavam os tigres e os dragões?  Tentaria novamente no outro dia. 
            Mais uma tarde de puro azulado no céu. O menino chegou a pensar que as nuvens deram de fazer greve. Menos ela, a nuvenzinha, que descrevia, como passeasse, seu caminho sem pressa. Nuvem besta. Pequena, teimosa. Esticando-se toda, até parecia um sorriso, desses de canto de boca. Nuvem preguiçosa. Se ao menos desse de ser mais ligeira, poderia ser a primeira bala disparada no campo de batalha. Nem isso. Se fosse um pouco maior, poderia ser jipe, dos de guerra. Mas era nuvem atarracada, baratinha albina. 
             Mais uma tarde, e o menino desabou para o quintal. Agora o céu já não mais espantava por seu deserto. Nuvens havia, e muitas, de todas as espécies. Ele alegrou-se. Mas, mirando a imensidão, deu por falta de algo. Correndo vista de ponta a ponta, viu que a nuvenzinha de todas as tardes não mais por ali estava. Nuvenzinha besta. Parecia barba de avô. Nuvenzinha que podia ter feito greve, como as suas companheiras, mas decidiu riscar céu, sem medo. E o menino, que por dias sentiu falta das grandes nuvens e seus mirabolantes desenhos, guardou o mistério da ausência de uma nuvenzinha sem forma. Outros dias, o menino estaria pelo quintal catando nuvens. Mas antes de qualquer coisa, como por hábito, perscrutaria o céu de ponta a ponta à procura daquela nuvenzinha, tão pequena perto das outras, tão besta. Tão maior agora do que o próprio firmamento. 

domingo, 22 de setembro de 2013

A propriedade do professor


Ao amigo Webster Lima, in memorian.

          Professores deveriam ser imortais. Em um mundo atribulado, resguardado pela frieza das máquinas, das impessoalidades, quem ainda é capaz de distribuir algum tipo de humanidade é o professor. Quebrem-se os aparelhos de telefonia móvel, interrompam-se as redes sociais, apaguem-se as luzes, mas nunca, nunca mesmo, silenciem um professor. Sequer a morte, despreparada, cega, injusta, nem mesmo Ela em sua sacrossanta labuta de reciclar almas pode limitar o alcance da voz de um professor. A despeito das maquinações, das desumanidades, da capitalização do conhecimento, a palavra de um mestre, na melhor acepção do termo, pereniza, não teme as estiagens dos que mercantilizam a educação. Ser educador é conhecer. Conhecer gente, conhecer caminhos, conhecer atalhos e saídas, conhecer-se, reconhecer. Ser educador é ser, nada mais, apenas ser, e, nessa perspectiva ontológica, deslocar-se de si para o outro, sem amarras que o impeçam de vasculhar, palmo a palmo, as necessidades de quem por ali se abanca à procura de entender o que quer que seja. Ser educador é mergulhar sem medo nas profundezas oceânicas das relações humanas, enquanto alguns, os que se dizem especialistas, apenas observam da praia. Ser educador é irritar-se com as mesquinharias, as quinquilharias dos que possuem no peito uma engrenagem ou um chip, ou pior, um cofre cheio de coisas vazias. Ser educador é admitir que se pode sobreviver sem as instituições, mas as instituições morrem sem a presença do professor. Ser educador é tatuar na retina do aluno as melhores expectativas possíveis de futuro, é embutir nele o germe da alegria, da esperança, é ralhar de vez em quando, na vontade de gritar que se ama, mas com a decência de pai que protege a cria, mesmo que, para isso, tenha que machucá-la um pouco. Ser educador é ter propriedade de fala e conhecimento e não ser propriedade. 
           As palavras que cá exponho não se devem entender como epitáfio ou revolta. São o que são, palavras. Direcionadas a quem necessita delas, a quem as compreende, a que as tem por verdade ou mentira. Por fim, ser professor é quase tudo, menos submeter-se. Ser professor é ser um subversivo, um comunista mesmo, um bolchevique guevariano da melhor estirpe.  Não há professor que não ame o que faz, uns menos, outros mais, uns mais exaltados, outros um tanto conformados, mas são formas diferentes do mais puro e necessário amor. Seja como for, depois de refletir um pouco, vejo que professores não morrem. Morrer é curva na estrada, já diria o poeta. Morrer é ser esquecido. Jamais esquecemos um bom professor. Jamais. 

domingo, 15 de setembro de 2013

Quadrilha para recordar



O que me compele:
não tua presença,
senão a lembrança,
vestida de afeto,
pois eras pequena,
assim sem caminho,
tão longe de tudo,
tão quase moleca;
às vezes, encanto,
em outras, desejo.
Algo me condena
ao ver o teu rosto
de novo irrompendo...
– De novo! De novo!
Não sei se de longe
te aprumo tocaia,
te empurro ao passar;
nem olho de lado,
faço por vingança,
fingindo um acaso.
Não posso mais nada,
somente esperar
se não no decênio
de que me falaste,
talvez num desastre,
quiçá tempestade,
chuva de granizo,
mandinga de tia,
unguento de feira,
um resto de mar.
Que faço? Te espero?
Te deixo passar?
Te castro, te engulo,
te aborto, te cuspo...
Qual nada, vacilo!
Se penso, desisto,
se intento, me amanso,
sou pouco demais
com tempo de menos.
Achei ter virtude,
pensei te encantar...
– Já era! Já era!
De tudo que faço,
de ontem, de hoje,
só fica o desejo,
mas esse é tão besta
que chego a te ver
casada comigo.

Ateus olhos




          No princípio, nada. As músicas, as mesmas.
          Crivado, assim o peito, de nãos,
          a oblíqua indecência das horas,
          a fúria, a fuga, a farda,
          maquinal o que me tornei,
          linha de produção desumana:
          o tilinto dos copos,
          a deflagração das fumaças,
          a puntiformidade das carnes alheias.
          Brutal, mais que, invasivo:
          as horas dias, os dias meses,
          os meses anos.
          Caiei-me à solitude, dilatei-lhe as pupilas,
          acolhi-a como se cão sedento,
          não existe mística na dor, quando de dor não passa.
          Fui sem ser, caminhei lonjura de tontear,
          senti fome de gente, de palavra que fosse,
          de palavra pintada,
          de palavra árvore,
          de palavra embrulho,
          de palavra fósforo aceso,
          de palavra xadrez,
          de palavra rosa.
          Quedei à margem de alçar voo desasado,
          bem que antes, minutíssimo antes,
          sobreveio o que distingue,
          olhos macios de mãe,
          embornais os olhos,
          que ali as coisas não se põem por mero caber,
          olhos latifundiários, extensão a perder de vista,
          lupanários os olhos de aboio,
          olhos pela hora do Angelus,
          ateus por pouco não, de crença, outrossim,
          se olhos não, haveriam de ser mãos,
          pés, ventres, seios,
          neles, em cada peça quebra-cabeças,
          a palavra cria forma
          tão próxima de ...dor
          que até rima.
       
       
         

domingo, 1 de setembro de 2013

o que sou agora...




          O que sou agora, senão a espera? de tempos outros, apequenado, sou traço servil em escrituras inconvenientes, comigo os pesos. Se trajo a pretidão das noites, não por modismos, há um rescaldo, enegrecimento do que proveio dos vãos secretos. Final de tardes, céus de carne, cada vivente a um sol, o mar clareia, tão pacífico. O mar, o mesmo dos primeiros olhos, estranharia se me viesse de dentro. De pequeno, desmentiria as horas, que seriam espontâneas e fartas, a despeito da carreira agalopada dos dias. Cinco ou seis cercavam-me de infância, sem a cobrança dos tantos que viriam. Os livros em ciranda amansavam a brabeza dos ponteiros, que me vêm como placas de advertência, alertando das curvas sinuantes. Meus ombros doem, se anunciassem as primeiras chuvas. Dia em que vim, chovia. E chovo ainda. Não mais por fora. Uso palavras até que sequem completamente. O sumo de algo está nelas. Colhê-las, desmanchá-las, morrê-las, acreditá-las, o tempo as desiste. E o acaso as resiste, assim como faz persistir as demandas. O homem, o que lida com os epitáfios, este não mais, a não ser na estranheza. Falta-me a intimidade das noites, o acalanto frouxo da palavra, mesmo dita por obrigação, preferível ao silêncio. Amo. Desniveladamente. Diversos amores. Maria, João. Um por tanto, outro por intenso. A um digo quase pouco; a outro, quase nada. Que hoje é de dizer, daí o motivo de palavras tão circulantes, sem forma, embora geométricas. De quanto tempo precisamos para principiar amor? vidas, meses, átimos?  e isso, em tropel invasor que me desafia a insônia, penetrando como facho de primeiro sol pelas frestas da alma; isso que tange sonoro pela anunciação de algo, em pele, morto e ressuscitado; isso que me nega os acasos e me compartilha futuros; não seria, pois, isso a mais urgente forma de amor? se digo, por razão vária, precisar de alguém, em indefinição, é que no livro de semas que inabilidosamente escrevo, a penas, todos os dias, um dos nomes que escolhi para o ente que amo foi esse, alguém, a essencialidade do que é ser, do que é sentir. Em páginas perdidas de calendário, sentimentalidades, se as atribuí forma e conteúdo, não as recebi em mesmo envelope, lacrado e perfumado. Lançar mão das palavras sem tê-las de volta, árvore que se derruba sem a contrapartida da semente, é o que me contém. E se a palavra acabar, não por carência das vinhas, mas por desleixo de quem deixara de adubar o solo? de tantas tessituras, a que me fala é a mesma que invade os olhos-de-abismo do enigma que escolhi decifrar. Escrevo agora, e por tempos a fio, a quatro mãos, duas das quais invisíveis. O que sou agora, senão desejo? se quero ser dessas mãos de vento, há de se abrir, a golpes ferozes, trilha em mata densa. E que me seja mais que bom-dia, que me seja mais que um filho no ventre do futuro. Que me seja indecente e leal, contador de causos antigos e inventador de coisas que cheguem da porta da frente, mimetizador de destinos e desfibrilador de sonhos. Os ossos estalam, vez em quando. Uma secreção amarronzada acompanha o pigarro. O dia em que, impelido, dei-me à sina do reencontro, comi manga verde com sal e infância, passeei descalço em praia de falésias e céu avermelhado, ouvi a primeira palavra de meu filho, palito-sem-paliteiro. O que sou agora? a todos os instantes em que aprendo a lida de amar, chamo-lhes felicidade. Sou, certa forma, feliz. Melhor estar. Agora sou.