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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Todos os muros

Chegara da escola pela última vez. Da menina, restava apenas uma vaga indecisão, uma lembrança hostil dos primeiros passos, das antigas calçadas, das cadeiras de balanço em ferro trabalhado. Trancada no quarto, agonizou, sedenta para romper o casulo que sempre a acompanhara, como um casco de lesma que era obrigada a arrastar. O peso quase nulo de seu corpo confundia sua expressão de dor com a de fome, uma incontrolável leveza tomava conta de todas as suas tempestades, e o espelho, sempre em solene espera, passou a cercá-la, tragando-a para um mundo esverdeado de veias ressaltadas, galopantes, entupidas de um ódio que, longe de todas as medidas, lhe abria os olhos. Via-se nela um torpe compromisso com todas as aflições, e ali, ensangüentada, enfiava-se definitivamente em um labirinto de sombras. O rosto, de tão alvo, escondia-lhe o melhor, descartava qualquer inútil tentativa de sorrir diante de convidados que, por segurança, jamais pisaram girassóis na praça. Ocultava em curtos lances de piedade um intento cruel. Pegou a tesoura de costura e tosou os pêlos, estocando com força, mutilando-se n’alma, vendo escorrer de sua face a ledice e as veredas com que sonhava, mesmo convencida a desejar apenas aquilo que lhe viesse ao alcance do toque. De cabelos curtos, sua carne amorenada dava lugar a poças de lama e a mudez peculiar de todas as horas arrefeceu de tal modo, que cuspiu na própria imagem e fez ecoar, pela primeira vez, um grito que a devolveu ao derradeiro instante de um parto, quando a luz e o frio do mundo nos revelam a indignidade de estar vivo e nos aproximam, sem fatalidades, daquilo que, por falta de lucidez, aprendemos a chamar de morte. Desceu à sala e estava nua, como em todos os momentos de sua vida, mas agora parecia saber como enfrentar o olhar acusador das figuras que a cercavam com solenidade, numa desesperada certeza de que com ela morreriam as mazelas dos que se escondiam não de tempestades, mas dos primeiros raios de sol de uma bela manhã de domingo. Se ela os curava, muito mais forte era a vontade de vê-los no chão, pedindo perdão por tudo que deixaram de esperar ou dizer ou realizar.
Naquela tarde de maio, depois de tornar-se um ser hermeticamente recluso, de jogar no quintal as últimas mechas de menina esbranquiçada, buscou algo que a nutrisse, e isso não viria se insistisse em permanecer naquele quarto. Tornou-se uma estrábica, que a verdade irrompia como um aleijão, mas o alívio sobrevinha por nunca mais, em tempo algum, deixar-se cegar pelas lonjuras. No meio de uma movimentada avenida, esperou com paciência de adulto o momento certo de precipitar-se. Em súbito, um caminhão cegonha brotou do asfalto. Sem asas que lhe amparassem, flutuou até o tempo em que subia nos ombros do pai para ver o que havia além dos muros do quintal. Não compreendia por que tinha tanta vontade de cruzar aqueles muros. Muito mais que cruzá-los, era preciso ser um desses muros, para que, um dia, alguém tivesse vontade de atravessá-la e, para isso, buscasse ombros paternos que ressurgissem quando, nas brandas horas, se precisasse de alguma tímida recordação.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Piolho de cobra

Quase todos os dias, exceto domingos e feriados, atravessava a rodovia, arrastando os fiapos de perna, para almoçar na casa da irmã. O trajeto não era longo, uns dez metros, se muito; mas arrastar-se no asfalto em brasa, rasgando as palmas das mãos, deixava-o em carne viva, e ainda lhe rendera o apelido de piolho de cobra.
Bebia como desesperado e contava histórias da época em que passava correndo por entre os carros. Nas tantas bebedeiras, fisgou do passado os tempos em que, saindo da escola, deu de correr, e correu como nunca, descalço pelo asfalto, pelas piçarras, pelas pedras do calçamento da praça da matriz. Por mais que se permitisse parar, não continha o ímpeto de atravessar cada vez mais avenidas e praças e calçadas, sem olhar para trás, na certeza de que ninguém o alcançaria. Seu nome espalhou-se por toda a região – era o menino que corria sem motivo, um milagre, um desocupado, mas certamente alguém sem medo de desafiar o próprio corpo.
Nas correrias, subiu quase todas as serras das cercanias; as gentes das praças por onde passava aplaudiam, todos encantados com o feito do menino pé-de-vento, que não parava de correr, nem para comer ou dormir. Muitos tentavam segui-lo, esticando o passo para não perdê-lo de vista; entanto, os mais resistentes não passavam mais de um dia em romaria, vez que, sabendo que o seguiam, apertava o passo, em vermelhidão, moído de sangue, sem unhas. Quando não houve mais para onde ir, decidiu voltar, andando, que os pés já não respondiam.
Depois do feito, as pernas deixaram de responder. Foram afinando, dando saliência aos joelhos, encolhendo, até que se tornaram flácidas, amareladas. Passou então a rastejar pelo mundo, sempre com trajeto marcado, indo de um lado a outro da avenida para almoçar na casa da irmã. Aprendeu a viver assim, usando os braços para arrastar o corpo seco, de costelas à mostra e pernas que mais lembram tentáculos.
Sempre que bebe, atravessa a rodovia sem dar noção às máquinas que por ali passam, rasgando o tempo. De nada adianta, todos os carros e caminhões param para ver piolho de cobra. Alguns jogam moedas, que costuma juntar para ter com as mulheres do baixio.

Irônicas

À criança, será propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade.

A filha, depois de muito matutar, sugere à mãe:
- Mamãe, pinta um quadro!
- Então, o que quer que eu pinte? – devolveu a mãe, em sorriso, entre interesse e sonolência.
- Uma mulher de olhos azuis e barriga verde!
- Ora, meu amor, não existe mulher assim, de barriga verde! – e a mãe deu de sorrir da ingenuidade da menina.
- Mas não é uma mulher, mãe, é uma pintura! – e a menina, sem perceber, reinventou todas as formas de arte.


Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral.

Veio o primeiro, cabeça rala, braços secos, marcados de surras, carregados de nãos. Foi até ao meio da faixa de pedestres e, atento ao semáforo, curvou-se, apoiado nos próprios joelhos. Eis que surge o outro, de sorriso largo, quase uma afronta, uma revolução, em carreira curta, saltando para as costas do primeiro moleque.
Criaturas unidas – o de baixo, mais velho, estende-se em mendigação; o de cima, pequeno ainda, esquece a vida, que o avião voa baixo, de ver as rodas de pouso, impossível não se admirar.



Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe.


Chovia em desespero. E menino liga para chuva? Qual nada, apenas admirava-se das estrondosas estripulias dos trovões, que mais tarde se tornariam bons confidentes. Passou horas na incubadora, deu trabalho à enfermeira, voltou ao ventre umas cem vezes. Em tempo, sobreveio o afago materno, e ele descobriu o mundo. Como mãos tão pingo-de-chuva podiam acolher a ponto de esquecer a friagem, de fazer brotar o mesmo cheiro do ventre, de sentir no toque de suas asas o peso de todas as esperanças? Assim se lhe apresentava aquela mulher, sozinha como ele, também recém-saída de uma incubadora.
A tempestade e o colo eram uma coisa só. O menino fez a chuva rasgar a janela e os pingos perfuravam-lhe a face. Gargalhou com vontade, que os preguinhos, assim era a chuva, faziam-lhe cócegas.
Os cuidados da mão materna eram tantos, que ele mal conseguia roçar na parede molhada, por onde escorria um olho-d’água. Assustou-se ao ver no céu um buraco do qual não caía água. Rompia um rastro luminoso, seguido de uma imensidão azul que não lhe fazia bem. E viu que a chuva tem seu tempo de ir e vir – nem tudo que é bom é azul. Por certo, tudo seria azul, bom ou mau. E sentiu falta da chuva. E pela primeira vez chorou, sem que ninguém notasse. E entendeu que gente também chove.


Desde o nascimento, toda criança terá direito a um nome e a uma nacionalidade.

Duas repórteres, já no final do expediente, decidem alertar a sociedade para a situação precária dos meninos de rua.
- Ali tem dois, três, um monte...
- Dá um bom caldo, matéria pra veiculação nacional.
Aproximam-se calmamente de um dos meninos. Desinteressados, os pobrinhos continuam a soprar as garrafas plásticas.
- Como vai?
- ...
- Como é seu nome?
- ...
- Você pode conversar comigo?
- É pra televisão, moça?
- É sim! Vai ficar famoso!
- Que é isso, moça...
- Você não tem nome?
- Tem não.
- Você tem pai ou mãe?
- Tem não.
- Você sabe o nome do nosso país?
- Sei...Fortaleza!
- E o nome da cidade?
- Sei não.

sábado, 15 de agosto de 2009

A meu pai, ainda presente...



Cansei de ter lembranças, e quanto mais fujo desses tormentos, mais afundo no movediço das recordações, muitas vezes inúteis, outras tantas dolorosas. Em outros tempos, sou menino a esperar o pai, final de tarde: o que para todos é derradeiro para mim é alvorada. Pontualíssimo, discreto, sorridente, trazendo o envelope humilde e amarelo debaixo do braço. Três batidas no sapato, como num balé rotineiro, antes de entrar em casa. Teu pai chegou, diz mamãe, sempre apreensiva com o jantar. Olhamos juntos em todas as direções, sabemo-nos longínquos, eqüidistantes, antípodas de nossas almas, mas ligados de alguma forma, abrigados pelo mais banal dos gestos, pela mais inconstante sensação de imortalidade.
Entre os detalhes de seu ritual diário, recordo o arrastar das chinelas, a calça cinza de bainha solta, o rádio de pilha sempre ao pé do ouvido, as notícias simplórias da labuta, transformadas habilmente na mais gloriosa das epopéias, de invejar Odisseu ou qualquer um de mesmo naipe. Se alguma vez chorou, ninguém soube. Mesmo a doença que o perseguia desde moço, só vim a descobrir quando já não fazia diferença. Entendi com isso que toda coragem é vil, vazia, não passa de uma dura forma de administrar os medos. Assim fez, timidamente, contando cada passo, na incerteza da próxima esquina, num caminhar breve a percorrer estreitos cinqüenta e cinco anos.
Quantas vezes proseamos sobre quase tudo que se permite entre pai e filho. Que falta fazem as nossas conversas, nas sextas-feiras em que o mundo esvaziava, e na área de casa, o ventinho bom de que tanto gostávamos, as pernas estendidas, as cadeiras de ferro trabalhado pintadas e repintadas milhares de vezes a quatro mãos entrelaçadas. No quando das datas festivas, o esperado presente, sempre dois, um do mundo, outro da vida. Cada brinquedo vinha acompanhado de um livro, ambos embrulhados no mesmo papel colorido, para que não houvesse distinção, para que não cobiçasse apenas o que as propagandas de tevê ordenavam. Dessa forma, conheci as letras, e com elas tracei um íntimo pacto, uma justa obrigação com aquele que se tornara senhor de todos os mundos que a meninice me trazia.
Fizemos tudo que podíamos ter feito: jogamos futebol sem saber, comemos jaca mole nas andanças pela serra, dormimos em casa de taipa pelas bandas do Sítio Comum, onde nasceu e se criou, meio do mato, pisando manga madura nos caminhos que levavam ao açude do Careta ou ao banho no Jitó. Na serra grande, menino que era, sentia tremer os ossos das histórias de visagem que contavam na boquinha da noite. Lembro a do assobiador, alma penada que seguia os passantes pelas veredas, soltando um uivo fino até o cidadão parar e deixar alguma prenda que acalmasse o vulto.
Não nos despedimos, não nos tocamos, não conversamos sobre política e futebol, não nos enfrentamos, tudo ficou por ser feito. Ao chegar em casa, em um vinte e três de maio, o rádio desligado, os sapatos ladeados sem a lama da rua, as cadeiras de ferro recém-pintadas postas gentilmente num canto de sala. Faltaram os pacotes coloridos, esses mesmos que me garantiram brinquedos e livros, e, por uma vez que fosse, acalentar seu grisalho mundo, para devolver o sorriso que sempre lhe coube tão bem.

Libertinagem

- Atrapalho?
- Não, pode entrar... fique à vontade!
- Então, como faz?
- Paga antes.
Apartamento 204. O corredor dava para uma janela, mais nada. Dos quartos, vozes, choros arrastados de crianças, um programa de tevê. A imundície das coisas, o corrimão enferrujado, os azulejos riscados, números, palavrões, desgovernou-se por um tempo, mesmo assim decidiu tocar a campainha.
O prédio ficava em uma avenida movimentada. Deixou o carro longe, reparou as lojas, ninguém conhecido, o peso dos quarteirões, as gentes nas calçadas, o mendigo não lhe estendeu a mão, a inquisição dos olhos. Passou do local, perdeu-se entre os números, percebeu o erro, deu meia volta, parou em frente. Tateou os bolsos, não achou os cigarros, deu-se por vencido, excitou-se, um bar perto, cigarros, uma dose, de volta ao ponto, prédio alto, 204, sem portaria, qualquer um entraria, uma pocilga.
Perseguido por um calor insuportável, parou numa banca de revistas, pediu uma água mineral, o jornal do dia. Nos classificados, empregos, apartamentos, acompanhantes, uma barbaridade, cobrar por sexo, tantas mulheres, uma delas, morena, casada, liberal, não deve ser verdade, uma mulher casada, fazer o que o marido não faz, e se não faz deve ter seus motivos, ao menos deviam conversar, não vem ao caso, o que diz no anúncio é que a mulher é casada, um vulcão na cama, carente, ferida, vingativa. O carro estava um forno, mulher casada, ligar não custa, três toques, deveria estar ocupada, voz doce, chamativa, suspirava, parecia estar com alguém, o calor aumentava, ouviu dela uma intimação, tinha que saber quem era.
Antes do costumeiro, juntou o necessário e saiu, que já não cabia na casa. Se algo o protegia, muito mais que isso era o mundo que o cercava, enjoativo, insosso, de jogar uma pedra no abismo para saber a profundidade e nada, nem um sussurro que o fizesse renegar o que está escrito, descer da cruz, constituir família, morrer de velho. A dimensão de todas as coisas desfazia nele a mínima possibilidade de crença, que todos os homens, em maior ou menor grau, são essencialmente maus, retalhados, e é nesses retalhos que se resguardam, mostram-se limpos quando estão desgraçados de berço. Desde menino acostumara-se à traição, à crueldade das mentes lancinantes dos pequenos – ainda que não fosse um incapaz, um inválido, pousava-lhe um aleijão, um temeroso estigma de fraqueza que percorria seu íntimo, atribuindo-lhe uma honestidade que facilmente se confundia com fraqueza. Precisava ser tão ruim quanto o seu tempo, tão intenso quanto tudo que lhe doía, mas a ele faltava o cacoete dos que de cedo rompem com o mundo e decidem ser juízes de todas as coisas. Descobrira isso tardiamente, e as horas o abandonavam, e as pessoas há muito queridas esfacelavam-se. No carro, segurando com firmeza o volante, decidiu que era tempo de fazer alguma coisa por si mesmo.

asas e lixo

Os meninos curvavam-se para colher latas no monturo. Os outros eram cegos, olhar branco, e com voracidade engoliam os restos de um cão, um pequinês. A ninhada seguia, fingia que as latas eram um tipo de arma: espocavam tiros de mentira, caiam uns sobre os outros como se morressem, para em seguida ressurgirem mais fortes e com revólveres mais potentes.
- Toma, ladrão...
O pobre cão não tinha a mesma sorte. Morrera de vera, sem a misericórdia de um faz de conta. Sem perceberem, um estranho ritual aplicava-se àquela brincadeira, e toda a bestialidade do baixio, fétido de fome e escarro e excrementos, dava lugar a uma espécie de renascimento. Ao pino do sol, os moleques, já desarmados das latas, começaram a grunhir, encolhidos, espojando-se no lixão, contorcendo-se como se buscassem sair de um casulo imaginário. Em súbito, o mais novo, de costelas salientes, sentiu a pele romper, fazendo surgir um par de membros alados. Os colegas aos poucos passaram pela mesma metamorfose. Todos eles agora tinham asas. Entreolharam-se com espanto, mas logo deram conta do que podiam fazer. Um deles, o de cabelos verdes, passou a sacudir as asas com força, erguendo com facilidade seu corpo sem peso, alçando um vôo raso pelo lixão. Vendo que aquilo era bom, os pivetes seguiram a orientação, e o céu agonizado escureceu de meninos alados a quebrar o silêncio dos que se alimentavam das carnes do cão pequinês.
- Vai, galinha...
Tomaram o rumo da cidade de asfalto, e brincaram de esconder nas sacadas dos altos edifícios. Os passantes das avenidas não criam na cena. Uns buscavam paus e pedras para proteção, outros erguiam câmeras para registrar o ocorrido. Os meninos alados, sentindo o medo das pessoas, voaram baixo para roubar-lhes os pertences, e invadiram casas, lojas, levaram o que puderam. Saltaram para dentro de um restaurante, que a fome apertava, e de lá só saíram quando nada mais havia para devorar. Um deles, o de asas tortas, recomendou cautela, que não se mata a fome do mundo num susto. Os outros acataram. Assim, retornaram ao lixão, onde os cegos ainda farejavam em desespero algum outro cadáver de cão.
Pousaram leves no topo das árvores e de lá observaram o balido dos que tinham fome e não sabiam voar. Sem culpa, dormiram tranqüilos, na certeza de que não mais viveriam no lixo. Um deles, o de olhos amarelados, sonhou com um imenso campo de margaridas. Os demais sentiam o sangue rasgando a garganta.

Restos de tempo


Num dos calçadões mais movimentados, uma pessoa estanca. Todo um fluxo de gentes, todo o comércio local, todas as pressas, nada impele a vontade súbita de parar no meio do movimento, entre pacotes e compromissos inadiáveis – um gesto involuntário, inusitado, que não se espera que aconteça durante a sonâmbula coreografia dos milhares que se espremem nas calçadas de um centro de cidade no horário comercial. Entanto, aquele ser ousa fazê-lo, desafia o ritmo frenético do quase meio-dia, descarregando seu olhar sobre os estranhos, reconhecendo-os, amando-os, devolvendo a eles o paradoxo necessário, numa afronta heróica, um compromisso com os que, no íntimo, ousariam o mesmo, se não estivessem mortos.
Do outro lado, um garoto de traços impressentidos, escolhido entre os milhares, corpo azulado da quentura, delineia-se pelo olhar do outro, que àquela altura se entrega à doçura do menino, de mesma alma tentacular. O reflexo dos óculos, a cada breve insinuação, clareia o rosto do pequeno, estatelado no mesmo ângulo de calçada, admirando a atitude daquele que, por indolência, desencadeara o mais preciso de todos os processos de desumanização. Uma vez mais experimenta o carinho estatutário dos minutos que precedem a concepção. A sensação de zelo, nutrida pelo olhar de um ser posto imóvel a observá-lo, trazia-o de volta a uma espécie de ventre, instante morno de uma euforia única, enquanto se sabe ou se quer observado, redesenhado pelas vistas atentas de, até pouco tempo, um simples passante, um insano que havia encontrado um mecanismo singelo para a mais abominável das afrontas, um ser que simplesmente decide, menos por anarquia que por imprecisão, mudar o destino de todos os homens.
Na calçada, uma revolução segue – de um lado, um ser alheio às indiferenças torna-se par de todas as coisas; de outro, um garoto resguarda as dores dos que por ali se esbarram. Assim, ser e coisa se fundem, e a lama respinga no rosto do menino, sempre de gestos filiais, desses que se reconhecem por instinto, sem amabilidades nem dramas. A calçada percorre-lhe o corpo, e as pessoas passam por ele, atravessam-lhe a carne, desfazem-no em milhares de passos que, no ir e vir, se tornam movediços. Por certo, não haveria motivos para outro contato, que não o da cumplicidade, o da revelação – princípio de todos os gozos. No temporão das horas, a certeza de que, em outro lugar, com outros igualmente estranhos entre si, a mesma prece se instalava, dividindo o mundo, interrompendo tudo que foi estabelecido para dar ao homem o necessário.
Em súbito, o telefone celular vibra no bolso.
- Alô!
- Pai?
- Diga, filho!
- Não esquece o gibi que prometeu!
- Pode deixar, já comprei...
- Já está vindo?
- Agora.
- Então, até já.
O garoto já não está mais lá. Em tempo, a mansidão das seis horas.

Texto para a visita da Morte...

Noite alta. Chuva fina de enregelar qualquer tentativa de sono, cigarro para fumar entupindo a sala de remorso, uísque pelos seus dois dedos de vontade. A isso, junte-se o desejo de dizer coisa com coisa, de espernear nas verdades alheias. Presto, um momento niilista e surreal, a despeito dos que se metem a físicos.
Num cruzar de pernas ou no meio alívio de um suspiro, chegou-se, indiscreta como em todos os tempos, irreconhecível por evitar carícias vazias. Branca, trajando um véu tênue, fitou-me com transparência, como se enxergasse as dores do mundo em meus olhos. Com um leve balançar de cabeça, tornou-se dona de tudo que eu tinha. Sentou-se, que a cadeira, àquela altura, já lhe pertencia. Fitou-me com aflição, dedos entrelaçados, pousados estrategicamente junto ao queixo. Olhos atentos, sublinhados, riscados de serenidade, num quase carinho que me fazia rir, tal o paradoxo.
- Que passa?
O cigarro acabara. O tempo, que sempre se negava, corria para trás – não reporto ao relógio, há muito derretido, mas à sensação de que os ossos enrijeciam, os cabelos retornavam ao saudoso posto, os dentes reembranqueciam, as coisas estranhamente tornavam-se mais simples, sem pagas ou cobranças.
- O de sempre.
Mostrou-me os dentes, esfregou o nariz, tateou o criado-mudo à cata de um cigarro, que em afronta pousou na boca, como se dali jamais houvesse despregado. Esticou as sobrancelhas, esperando de mim o gesto involuntário do sacar o fogo, coisa que só fumante profissional entende.
- Eis.
- Grata.
- Que pretende?
- Visita.
- Breve?
Riu. Seu ramo não lida com brevidades. De tanto chegar, não me causava espanto, ao contrário, dava-me sono. Temia por não temê-la, por sentir, de alguma forma, o calor de sua intimidade, que insurgia contra aquilo que a mim impunha um ar de soberba ou solenidade. Sequer seu corpo frio, cuja essência erguia-se histórica, acrescentava algo àquele momento. Mesmo sua pele enrugada, encaroçando as paredes, fazendo escorrer na poltrona um fétido odor esverdeado, tecendo pelo olhar o frêmito de todos os que, por ingenuidade, tentaram fugir dela, mesmo isso não me tirava a certeza de que, diante de mim, aquele ser feérico ancestralizava-se.
- Chegou a hora?
- Chegou a hora.
- Chegou...
Assim, às três da manhã, cumpri minha sina, entrelaçado àquela que, ainda no ventre, apadrinhou-me.
- Posso ao menos beijar meu filho?
Riu. Nunca compreendera sentimentalidades. Amara uma única vez, mas foi obrigada a desacreditar, atraiçoada pelo próprio ofício.
- Não? Ao menos posso terminar o cigarro?
Há muito o cigarro não existia. Ela nunca me interrompeu, não seria agora. Acendi o toco, duas ou três baforadas, e fim. Senti-me só pela última vez.
- Pronto?
- Pronto.
- Para onde vamos?

As três imagens


Os braços amolecidos da pequena escorriam, e uma cegueira involuntária aplacava a ira da mãe. O primeiro desejo foi o de rasgar as cortinas, atear fogo. No entanto, apenas baixou a vista em direção à poltrona no canto do quarto. Simulou uma última conversa com a filha, que tinha agora quinze anos. Recomendou-lhe cautela, pediu que não voltasse tarde, franziu a testa ao ouvir da menina que já não era mais criança para tantos cuidados. A lâmpada acendia e apagava. Selecionou algum ponto obscuro entre os ponteiros do relógio, encontrando as horas em um movimento leve. Os dedos da menina, tão parecidos com os do pai.
As enfermeiras marchavam no corredor. Se casasse, seria em julho. Aproveitar as férias, mais tempo para a lua-de-mel. Um dia antes do casamento, descobrira a gravidez. Existia entre elas, mãe e filha, uma tênue partitura, desgastada por certo, mas ainda precisa, aprumada. Como toda mãe, amava de forma indelicada. Destemperava-se ao menor sinal de intimidade por não saber o caminho – nem mesmo se buscasse em outras eras, nem se reouvesse as páginas do antigo álbum, saberia como lidar com aquele nariz gelado roçando-lhe a face. Era menina de novo. No telhado, escrevia o diário. Domingo, quase não resisti quando Carlinhos chegou ao catecismo, estava uma coisa, nem me atrevi a sentar perto dele, muita gente, muita mesmo. O pai é que insistia para saber o que tanto a menina escrevia. Um insensível. Quem revelaria segredos tão íntimos ao próprio pai? Torceu o corpo em direção à mesa de cabeceira. Cartões de melhoras, restos de comida. Um belo quarto, afora as rachaduras no gesso do teto. O médico finalmente chegou.
A mãe permaneceu presa ao ventre da filha, num movimento agônico de retorno. Atravessou o corpo frio da menina, sentiu os tumores, a medula, o cérebro. A viscosidade enojava. Rugosos, sólidos, quebraria o espelho e a vidraria da janela. Belo quarto, com vista para o parque botânico, estaria lá a filha, remoçando todas as idades, apelidando as pessoas que passavam, gostava disso, não via maldade, ou, se via, era branda, comedida, de criança. Outra enfermeira, avermelhada e seca, trouxe-lhe um copo de água com açúcar. Os sedativos faziam sua parte. A última cena foi a da filha, seis anos, carregada para longe. Contraía a mão, o corpo da pequena amolecera de repente. Gritou que socorressem, mas em vão, esquecera de quebrar os espelhos do quarto, a menina seria capaz, agora a mãe, em último caso, apenas empurraria os cacos para debaixo da cama.