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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Feliz Ano Novo


          Noite de reveillon. Centenas de pessoas reunidas à beira-mar. Principia-se uma estridente contagem regressiva anunciante do ano novo.
          10. Um homem distante, renitente, desnudado pelo clarão dos fogos, gira em êxtase, desencontrando seus pares, sacolejando a garrafa de sidra, asprejando com o mundo vermelho e cinza que o comprimia, retomando as dores, o câncer, a quimioterapia, fugira do hospital por algumas horas, o senhor não pode beber, faça o que fizer mas nada de bebida, tolice, o mundo gira, os fogos inebriam, a vida desliza pela garganta suavemente, tem sabor de maçã, tem gosto de irmã, a mãe preocupada, e quando não foi?, os abraços, quem o abraçaria, está só, há muito o tempo o abandonou, eis o desafio, fazer as pazes com os ponteiros, danem-se, o mundo é uma girândola, a música, tons e mais tons, tudo se torna rápido demais, ele cai, e sorri, sorri por tudo que ainda sofreria, sorri pelo que resta, ninguém perceberia sua presença.
            9. A pequena perdera-se dos pais. Um instante para alguns cumprimentos, e a menina simplesmente desapareceu naquele mar branco de gente e areia. A pobrinha chorava. Pela primeira vez, experimentava o abandono. Não sabia o que fazer, estava pálida, derramava-se em desespero. Ninguém a percebia. O barulho ensurdecedor dos fogos abafava-lhe o choro. O vestidinho branco servia-lhe de amparo. Encolhia-se toda dentro dele. Estava só, perdida em um mundo de hienas gritando e rodopiando. O céu, quase sempre hospitaleiro para ela, recheava-se de luzes que hipnotizavam a multidão. Quem a notaria debaixo de tantas cores e formas? Ela chorava cada vez mais alto, tentando chamar a atenção de alguém. Em vão. Os fogos. A música alta. Os gritos. Ela preferiu silenciar. Acocorou-se. Mirou o mar. Que breu. Um homem com uma garrafa de sidra caiu ao seu lado. Todos celebravam. Apenas ela, uma chispa em meio ao fogaréu, teimava em sofrer. Decidiu esperar tudo acabar. Prendeu o choro e mirou as cores que distorciam o céu. Aquilo não seria para sempre.
            8. A primeira vez que passavam juntos um reveillon. Abraçavam-se com volúpia. Os dedos marcavam a pele. O cheiro forte dos perfumes, a camisa encharcada de suor, os clarões. Quero dizer algo muito importante. O hálito morno no ouvido. Você me ama? A resposta veio com os olhos e um gesto. Ficaria comigo, enfrentaria tudo? Novo gesto. Estou grávida. Melhor não ter ouvido. Exigiu confirmação com um ríspido movimento de cabeça. Estou grávida. De repente, não havia mais fogos estalando. O tempo de celebrar havia acabado. Não esboçou reação. Deixou-se estático, enquanto ela descobria o valor do silêncio. 
          7. O cãozinho desabou na carreira. O barulho dos fogos, das gentes entorpecidas, tudo era ensurdecedor, zunindo nos ouvidos do bicho, desafinando-lhe os sentidos. Se pudesse falar, certamente esbravejaria contra aquele mundo torpe de humanos sem direção. Tantas pernas por desviar, tantos pisões. Corria sem rumo, fugindo da iniquidade daqueles seres. Disparou pela avenida, sem notar a moto que o espalharia pelo asfalto. Mais um cão morto. O motoqueiro parou por um segundo para avaliar o cadáver, mas logo o clarão dos fogos chamou-lhe a atenção. Que noite linda, pensou. 
           6. Um homem delirava, teimava em mergulhar, queria chegar mais perto das cores, dos clarões. A família o desencorajava. Homem feito, deixe fazer. Mas ele bebeu, bebeu muito. Que seja, ficamos de olho. Ele foi, sob o olhar protetor dos seus. A água enregelava os ossos. Os fogos estavam próximos, esticou-se para apanhá-los. Descuidou-se. A família já não o encontrava em meio à escuridão das águas. Um dos irmãos tentou mergulhar. Escuro demais. Basta um para procurar. Vez em quando, um clarão. Nenhum movimento na água. Ele deve estar bem.
           5. A contagem proseguia. Um jovem, de rosto encoberto pelos cabelos lisos, destoava. Dentre tantos que festejavam em trajes tradicionais, ele surgiu de preto, como um oásis diante dos olhos cansados do mundo. Pôs-se estrategicamente diante do palco. Sacou de um revólver e deu dois tiros para cima. Nada. Todos em êxtase por causa dos fogos. Ele gritou. Enfiou o cano da arma na boca e disparou. Poucos notaram.
           4. O velho criava coragem para dizer a todos que iria fazer uma viagem. Sozinho. Não suportava mais o asilo, apesar de ser bem tratado. Sentia falta da liberdade. Vinha-lhe à memória os tempos do exército, as viagens, as condecorações, os aplausos orgulhosos dos filhos ainda molecotes. Sentia-se um fardo, algo a ser descartado. Não queria morrer assim. Papai, não beba, o senhor tem que ir cedo para casa. Casa? O que faz de um lugar qualquer nossa casa? Faltava-lhe o amparo familiar. Todos gostavam dele, mas sua presença aborrecia de alguma forma. Sentia-se uma espécie de cartão de visitas da morte. Ninguém quer um velho estorvado dentro de casa. Achou por bem não contar sobre a tal viagem. Apenas faria. Sorriu para todos. Deixou que a música e os fogos penetrassem seus ossos.
          3. Amigas de infância, inseparáveis, cúmplices. Dividiam os mais íntimos segredos. O primeiro beijo, a transa furtiva na festa, as brigas com as rivais da escola. Os fogos avermelhavam-se. Um abraço longo selou o compromisso de amizade eterna entre as duas. Uma delas tomou a iniciativa de um beijo. A outra esquivou-se enojada. Que foi? Melhor procurar meus pais, devem estar preocupados. E saiu, limpando dos lábios o gosto da amiga.
          2. O mestre de cerimônia mirava aquele mundo de gente. Não mais suportava tamanha mediocridade. Queria estar em casa, tomando conta de seus cachorros. Estava ali por obrigação. Precisava do dinheiro. Era um pessimista. Tanta celebração para nada. Mais fome, mais miséria, mais violência. É isso que comemoram? Pensou em dizer tudo isso no microfone. O dinheiro é bom. Melhor dar prosseguimento à contagem.
          1. Uma ligação. Não se ouve nada. Ele já estava fora de casa há um mês. Deixou a mulher grávida. O trabalho o obrigava a fazê-lo. Procurou um lugar mais calmo. Nada. Muito barulho, em todos os lugares. Correu para detrás do palco. Menos gente. Conseguiu ouvir alguma coisa. Sua mulher. Que tem ela? Sua mulher. A ligação interromia-se a todo instante. Que tem ela, pelo amor de Deus? Sua mulher deu à luz. Um menino. Sua cara. Ele não se conteve. Gritou. Pela primeira vez, sentiu a alegria de um ano novo.
           E quem ali estava chorou, sorriu e cantou. Era tempo celebrar a chegada de um novo ano.

domingo, 25 de dezembro de 2011

TRÁGICA ANEDOTA NATALINA


        Véspera de Natal. Sinal fechado. Trânsito caótico. Uma mulher no conforto de seu automóvel foi abordada por um menino. O olho do pequeno estirou-se. Nada de mais, senão pelo fato de o garotinho andrajoso arfar e latir, simulando um cão.
         - Que gracinha de cachorrinho! 
         - Moça, me dá um trocado de Natal?
         - Claro! Pegue...
         O menino já mirava outro carro, quando a mulher, sem resistir à curiosidade, indagou:
         - Por que a imitação de cachorro?
         - A moça tem cachorro?
         - Sim.
         - Quantas vezes ele come por dia?
         - Três.
         - E quando ele fica doente?
         - Levo ao veterinário imediatamente.
         - Ele dorme na rua?
         - Não, dorme em um colchãozinho térmico.
         - Quantas vezes a moça já bateu nele?
         - Nunca.
         - E a moça ainda pergunta por que eu quero ser cachorro!
       O menino sai correndo à cata de outro carro. Arfava e latia como nunca se viu. Satisfeita a curiosidade, a mulher cumpre seu destino. Toda criança, pensa ela, devia imitar cachorrinho. Fica bem mais fácil ganhar trocado. E ela se vê inundada pelo espírito de Natal.