Amigos leitores que por aqui já passaram

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Tem nada não, sou nordestino


Sou nordestino, rosto de barro, mão calejada de lida e esperança. Tenho pés encarnados de piçarra, venho da taipa, do piso queimado, do banho de açude, do avermelhado da tarde, da ponte encoberta de tudo que é mar. Sou nordestino, de corpo franzino, coração e tronco de menino, arteiro, artista, ator; nos meus ombros, sustento o peso do mundo que insiste em negar meu nome, minha cultura, meu lugar. É que esse mesmo mundo só é mundo porque Deus pôs no mundo alguém como eu, que pudesse levar esse mundo para todo canto, cantando e sorrindo, que meu canto é para o mundo que me nega amparo. Sou nordestino, orgulho da caatinga, faminto de justiça, sedento de amparo, amante da Lua, filho do Sol, minha cabeça só não é maior que meu coração. E rio, e choro, e mais rio, que até choro, porque só choro de rir, pois não existe como rir de chorar. Sou nordestino, xique-xique, grosso, rude, espinhento qual mandacuru florado. Peço ao povo brasileiro que me entenda como irmão, mas, se não entender, arre égua, sou nordestino, tem nada não!

Quase receita


Reinvente os passos. Afaste-se das indiferenças, das amizades estanques, dos amores impossíveis. Sonhe menos, realize mais. Não acredite em propagandas de final de ano. Em todos os dias de sua vida, enfeite uma árvore com prenúncios de paz e prosperidade. Ame incondicionalmente alguém com quem não se mantenha qualquer vínculo genético. Invada o dia seguinte. Transborde. Deseje algo de bom para os que estão pelas calçadas, à espera de um milagre. Desligue a tevê. Conheça melhor seus vizinhos. Decore menos, aprenda mais. Descubra um sabor exótico. Espere ansiosamente alguém. Decepcione-se. Aprenda. Viaje. Acaricie seus pais. Dê de comer ao cachorro. Exponha-se menos. Não se esconda por frases de terceiros, vídeos apócrifos, fotografias de aluguel. Aceite-se. Amanhã pode ser domingo, se quiser que seja. Pegue tudo que se conquistou, subtraia o que ainda falta conquistar. Falta pouco. Saia da frente do computador. Abrace. Encante-se com os fogos. Estique a mão para alcançá-los. Caminhe descalço à beira-mar. Vez em quando, retorne. Veja o que há de bom no passado e transforme em presente. Queira. Todo dia pode ser réveillon. Quanto ainda falta para a sua felicidade?

O povo que vaiou o sol




Cearense é bicho traquinas! Ô povo moleque! Pois não é que há exatos 70 anos resolveram mandar vaia no sol, só de mal, porque o tal do astro-rei encasquetou de atrapalhar um diazinho colonial de chuva. E é assim mesmo. É na base da vaia, essa marca registrada de nossa cearensidade, que, de alguma forma, lidamos com esse mundo esculhambado que nos cerca. O mundo precisa conhecer nossa vaia e, a partir dela, reconhecer nossa cultura, nossa força e nossa irreverência. Em qualquer lugar que seja desse mundaréu de Deus, se houver um cearense, haverá a boa e velha mangação. Mas é mangar dos outros e de si mesmo, é saber que não tem nem graça rir sozinho. E ainda temos muito por vaiar. Políticos safados, traficantes de espíritos, oportunistas de plantão, todos esses merecem sonoras vaias. È nessa boa molecagem que conseguimos mostrar que estamos atentos. Aliás, pode crer que é de vera, cearense vive com a bituca do olho arregalada. Olho no gato, olho no peixe. E se frescar muito, tome vaia!

sábado, 21 de janeiro de 2012

Tanto samba

* Por brincadeira, compus um sambinha. Quem quiser musicar, habilite-se.

        Tanto samba nesse amor!
        Essa noite sem luar!
        Quanta vida por seguir!
        Pouco tempo pra ficar.
       
        Já é hora de partir!
        Não dá mais pra suportar!
        Já tentei me iludir,
        mas pra que acreditar?


        Vejo o dia amanhecer!
        Sol nasceu dentro de mim!
        Na metade dessa dor,
        resolvi falar de amor
        pra poder te esquecer.

        Vai ser bem melhor assim,
        sem chorar desilusão!
        Ainda há muito pra sentir,
        vou poupar meu coração.

        Essa noite já passou!
        Brilha a relva por saber
        que meu tempo enfim chegou,
        mas bem longe de você!
       
        Vejo o dia amanhecer!
        Sol nasceu dentro de mim!
        Na metade dessa dor,
        resolvi falar de amor
        pra poder te esquecer.
       
         

       
       
        

rhythmos


       
          E onde haveria de estar,
          senão encoberto, acorrentado à dor alheia,
          um tanto deserto, um pouco mar.
       
          Ali hei de despejar
          a palavra há muito desterrada (quebrantamento),
          entre amargo e aprazível.

          De bicos e olhos para o céu,
          qual passarinhos sem sustento,
          sem asa e ramada,

          acolherão o movimento
          pendular, mesmo que assim não queiram,
          mudos como as dores e o tempo. 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Sobre fazer amor e amizades


                 Quero viver das amizades que mantenho: não as que, de tão tridimensionais, tornam-se insossas, mas as que sejam palpáveis, porque amigo é para tocar, cheirar, abraçar, empurrar ladeira abaixo, puxar pelo braço, esbofetear. 
             Fazer amizade é como fazer amor com alguém. O encontro furtivo, a estranha capacidade de compreender os sentimentos e as reações do outro, as inesperadas revelações, as discussões devastadoras, a  entrega total e absoluta, quase filial. Refiro-me, é claro, às amizades verdadeiramente imprescindíveis. Alguns encontros que a vida teima em nos proporcionar são descartáveis, mas esses não merecem lembrança. Ser amigo é mais que simples esbarrões pelas calçadas, sejam elas reais ou virtuais. É um nascedouro. Uma esperança de que, apesar de tudo, ainda existem pessoas que, mesmo tão diferentes, despertam-nos a nítida impressão de estarmos diante de um espelho. É nos amigos que nos reconhecemos em essência. Com eles, somos permissivos, desbocados, inteligentes, estúpidos demais. E o melhor é que, mesmo cometendo o pior dos despautérios, a amizade nos guia pelas perigosas trilhas do perdão. 
              Quantos amigos podemos ter na vida? Se não fossem os computadores, três ou quatro, no máximo. Amigos que frequentem nosso quintal. Esse era o termômetro que meu pai utilizava para mensurar o grau de afeição com outrem. Aos estranhos, a área. Aos conhecidos, a sala. Aos parentes, a cozinha. Aos amigos, o quintal. E não é para qualquer um que abrimos as portas do nosso quintal. Agora, para atingir o tão almejado posto de amigo, o camarada tem que merecer. Como fazer? Simples. Apresente-se. Esteja à disposição. O segredo de uma boa amizade é estar sempre disponível. Às vezes, os amigos celebram, mas, em outros momentos, simplesmente acompanham até a venda, assopram ciscos do olho, tiram formigas da gola da camisa. As grandes amizades se alimentam desses pequenos gestos. 
               Amigos são insubstituíveis. Entanto, há quem diga que ninguém o é. Tolice.  Não percamos tempo acreditando nisso. Ninguém há de me substituir por uma razão simples: sou único. Quem haveria de ser igual a mim, com os mesmos tratos e trejeitos? Assim são as amizades. Em dados momentos, afastam-se de tal maneira, que chegam a quase sumir no horizonte. Mas é impossível substituí-los. Onde eles estarão agora? Que importa! Basta que eles estejam no mundo, é só. Em qualquer lugar que seja, nossos amigos estão prontos para nos amparar, desde o primeiro, até o último degrau. Sem eles, embora o caminho fosse o mesmo, não conseguiríamos prosseguir. É que nós, sem eles, jamais seríamos os mesmos. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ANIVERSÁRIO



Ainda que os dias não houvesse
e que sequer um traço de neblina indicasse
tua presença morna, todas as manhãs, cândida!
Que enlouquecesse pela úlcera
sem incisão, apenas a dor latente da inexistência,
quase distração, falta de presença!
Mesmo sem o colo necessário,
a mão arteira de amigo prestes a dar bote na tristeza,
a imensa vontade de sê-lo, não por inveja,
mas por desejo de tê-lo em mim!
Que nada consentisse tamanha felicidade,
comemoraria tua existência, acalentado por saber
que um dia nasceste em minha vida
e deixaste sinal para que me reconhecessem;
trago na espádua a indelével cicatriz que me reúne a ti;
eis um ser em tua função, que me deste amizade em essência -
algo se manifesta e transborda:
meus dias são teu aniversário.















segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sobre a alvura dos desejos


          A vida, vez em quando, surpreende-nos com encontros inesperados, desejados ou não, mas sempre providenciais para avivar, ou despertar, a ideia de que não se pode esperar que tudo ocorra de forma literal e segura. É nesse olhar oculto que me amparo. Há tempos, tento garantir passagem pelos andaimes da palavra escrita, sem muito zelo, é verdade, porém com bastante esforço e dedicação. Sou pretensioso o suficiente para acreditar que consigo assombrar os leitores com frases disformes ou comparações que, de tão íngremes, torna-se praticamente impossível abrigar-se nelas. Então, do mesmo lugar de onde partem as metáforas, irrompe o acaso, esse vão que se abre e traga todas as expectativas humanas. 
          Sinto profunda admiração por aqueles que se resignam e se deixam levar pelas dores que a vida lhes oferece. Minha carne é parca demais para isso. Pouco afeito a sofrimentos, deixo que os momentos ditem as normas, pois o humano que ainda insiste em nós depende da satisfação dos desejos momentâneos, não os que são trabalhados ao longo da vida ou os que se derramam em propagandas de supermercado, mas o desejo que ocorre de súbito, na distração das horas; se assim agimos, sair de casa torna-se uma aventura, longe das atitudes ritualescas dos funcionários ou das inglórias investidas dos pregadores. 
          Os seres sobrevivem pela esperança de que, um dia, satisfarão suas necessidades intrínsecas, deixando de lado pudores tolos que apenas adiam, impedindo de encontrar a semovente fonte dos prazeres mais caros e, por isso mesmo, mais profanos.
          Se, em um dia em que tudo estivesse estático, sem vida, sobreviesse a intenção de convidar alguém para sair. Entanto, não quem mereça o título de alguém por pura indeterminação do sujeito, mas alguém que fizesse diferença por razão qualquer. E se, depois de uma longa e afetuosa conversa, um olhar antigo sobrepujasse um último reparo de formalidade. E se, dali por diante, os corpos espelhassem o alvor de sorrisos há muito íntimos demais. E se, pela brancura sem inocência posta em toques de ousadia, não houvesse mais necessidade de guarida em ironias e descasos que apenas dissimulariam a real intenção dos corpos. E se não fosse um erro, mas uma oração. 
          Quisera colher dos dias sonhos tão doirados quantos os sereníssimos cabelos do desejo. 
          Falta ao mundo a ousadia de sorrir durante os atos mais primitivos, a necessidade de ouvir obscenidades enquanto o amor segue livre, sem amarras, sem a garantia do dia seguinte, mas pleno de vitalidade, amparado pelo instante que fertiliza. 
          O desejo, pois, detém todas as cores. Assim sendo, vejo-o branco por ser a junção de tudo que habita o espectro. Ilusão ou não, o que importa é que, um dia, experimentamos. Satisfeitos, revitalizamos nossa humanidade na leve impressão de que hoje já não somos mais os mesmos; e, por mais que tentemos disfarçar, algum descompasso de gestos denunciará que, em algum momento, fomos escravos do desejo. 

domingo, 1 de janeiro de 2012

Escansão do mar


De tão pequeno (menino),
encantei-me com esse mar,
desacatando o destino
de nunca mais regressar.

Fiz que não mais me importava,
dei p'ra buscar outro cais,
mas o farol me guiava,
mesmo distante demais.

E o que dizer da viagem
que eu quase sempre neguei
com medo da paisagem
que, por engano, criei.

Agora me entrego à sina
de descobrir o que em mim
arde, derrama e fascina,
mesmo tão perto do fim.