O movimento na barbearia estava fraco. Se houvesse o que fazer, não faria tanto esforço para ler o jornal de ontem. Comprimir os olhos, que os óculos não ajudam, lentes gastas como todo o resto do salão. Mês de agosto, sem vida, sem movimento, à exceção da ventania e do pólen.
Quantas notícias nos jornais. Acidentes, mortes. Jesus tenha piedade. Fechar mais cedo, a igreja estaria lá, sempre cheia, alaridos fervorosos. Preparar-se para baixar as portas, o dia acabou, talvez o próprio negócio, outras oportunidades surgiriam, quem sustentou por tantos anos a lida de barbeiro, moedas e crises, promessas e mais promessas, santos e políticos, por certo quem passou por tudo isso haveria de chegar a outro lugar sem muitos arranhões.
A tarde é quase no fim. Apagar as luzes, desligar o rádio, economizar, se não se ganha, que não se perca. As lâminas, as tesouras, o pente de osso herdado do pai, o verdadeiro dono de tudo aquilo, quantos anos desde sua morte. Velho teimoso, precisava ensinar o ofício que trouxera do avô, dos tios, dos primos, todos barbeiros, o filho não poderia deixar de cumprir a sina. E ninguém à porta, ninguém para contar as novidades, sequer o telefone público, tão solicitado em tempos de bom comércio, o telefone mudo, como tudo que se apanhava pelo mês de agosto, dias de mudez absoluta, nada de féria.
Para baixar as portas, um vulto.
- Ainda dá tempo para mais uma barba, filho?
- Sim senhor, fique à vontade. Sente-se aqui...
Barba de quantos dias? De quantos meses? Cheiro familiar de suor e terra. A camisa encardida, semiaberta, grisalho e desgrenhado, arfante como no meio de uma crise asmática, como fugisse.
Preparar a navalha, a espuma, agir com cautela, um freguês é um freguês, voltaria, recomendaria. A cadeira reclinada, a toalha para não manchar a camisa, se bem que nódoa alguma se notaria naqueles trapos, já tão salpicados do tempo, um fartum.
Prosear para amansar o bicho, dizer do pai.
- O senhor vem do serviço?
Pescoço de veias salientes. Rijo como uma tora, percorrer com cuidado os contornos do queixo, as faces, o maxilar, navalha infernal, cega.
- Venho.
- O senhor trabalha com quê?
- Caminhão.
- Vida dura essa de caminhoneiro.
- Hum, hum!
- Ainda pega a estrada hoje?
- Pego, mas é pra visitar um parentes.
- Então, o senhor não é daqui?
- Sou de Serra Mansa.
- Papai era de Serra Mansa!
- Quem é seu pai?
- Já é falecido. Seu Chico Pereira, dos Pereira da Serra Mansa, do Sítio Curió.
- Hum, hum!
- E o senhor, como se chama?
- Antônio. José Antônio de Limeira. Dos Limeira do sopé da serra.
O pai fora cobrar uma dívida dos Limeira, baralho era a perdição do velho, mas tinha sido uma mão de sorte, era dinheiro para alavancar a barbearia, mas o que levou nos couros foi bala, três à queima-roupa, um tal de Antônio dos Limeira, um cangaceiro, um selvagem, um animal que merecia ser sangrado como qualquer outro. E não seria o mesmo ou haveria de existir mais de um Antônio de Limeira, na mesma serra sem lei? Nome comum esse de Antônio. Depois do acontecido, ninguém mais soube o paradeiro do tal Antônio. E não estaria ali, derreado, jugular à mostra, numa providência que só mesmo nas passagens bíblicas se vê igual? E se fosse Salomé a empunhar a navalha, ou Jezabel, ou Herodes?
O bicho suado, a navalha estacionada sobre uma veia do pescoço. Isso é suor de culpa. Ligar o ventilador.
- Então o senhor conheceu meu pai...
- Penso que sim, mas cabeça de velho falha de vez em quando.
- Ele era barbeiro, como eu. Morreu porque inventou de cobrar uma dívida. Foi no sopé da serra. O senhor deve ter tomado conhecimento. Talvez seja de seu tempo.
- Não me lembro, mal me criei e fugi daquelas bandas.
- Eu era um menino ainda, uns dezessete pra dezoito. Já estou pelos quarenta. Ainda bem que o velho teve tempo de me ensinar alguma coisa, aprendi a barbear com ele.
Olhos abertos, como se procurasse algo no teto da barbearia, e a navalha estancada no pescoço, bastasse um movimento, as coisas voltariam ao lugar, pois quem deve é aqui que se paga, a mãe passou anos esperando a justiça dos homens e de Deus. Quem sabe o próprio Jesus não tenha desenhado esse momento, premeditado esse encontro, pois só a perfeição divina seria capaz de tão astuto enredamento, o assassino à disposição da navalha, um puxão e o bicho sangra feito porco, um puxão e o equilíbrio que só a vingança pode trazer. Mas Antônio tem demais, só de primo haveria uns dez. Seria assim também com os Limeira.
- Barbeiro é profissão boa, gente pacata, de confiança, não tem que carregar culpa de nada.
- É verdade.
Terminada a tosa. Serviço é bem feito, dizer do pai. Sem espuma, sem barba, sem loção. Navalha sobre o balcão.
- Quanto foi, meu filho?
- Dez contos.
- Tome quinze pela conversa.
Recompôs-se e saiu, barba feita, quinze contos, uma gorjeta por não ter feito justiça, um agrado a um covarde, uma vergonha para um homem, que o pai não esteja vendo isso. E haveria culpa? E se não fosse o dito assassino? E ainda que fosse, como matar sem saber matar. Criou-se como barbeiro, não como jagunço. Quinze contos. As únicas patacas do dia. Baixar as portas, poupar energia e água, se não se ganha, melhor não gastar, dizer do pai, que Deus o guarde em bom repouso.