Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Itinerário habitual




Tempo, se o contive, restaram-me alguns relógios
e calendários ancestrais.
Passos, sobrevivi-os em poucos pares de sapato
por um caminho encoberto.
Amigos, não os recordo, apenas fotos enfarruscadas
ou nomes oblíquos em algoritmos.
Sabores, permito-me o gosto das coisas ultrapassadas
e os caprichos da jocosidade.
Amores, rest in peace  nas reminiscências
ou na antiga caderneta de memórias.
Espelho, já não me submeto a suas vontades
nem me conduzo pela sedução do momento fixado.
Palavras, que as noites insones revivam os caracteres
impressos a seco.

sábado, 24 de novembro de 2012

Síntese



Quantos anos? Quem sabe?
Quantas horas sinuosas, movediças;
Quantas faces quebradiças,
Quantos pontos emergindo do que é passível de ser!
Quanta aptidão para sentir...
Quantos se encontrarão pelos prolongamentos do que se oprime?
Quanta simulação!
Quanta síntese de mim em ti.







domingo, 18 de novembro de 2012

Um corpo vestido de asfalto


         Por uma viela escura, recém-asfaltada, sentaram para descansar. Ele, desenhado por uma bermuda e mais nada, ossos manchados, as canelas como dois tocos fincados na calçada; dobrava-se sobre si mesmo, contorcia-se para buscar uma posição que deixasse as costas menos queixosas da parede áspera. Ela, escondida sob o lençol encardido, catava algo das unhas dos pés; passava os dedos pelos cabelos engrenhados e lavava-os com saliva, cultivando o que sobrou da vaidade de fêmea.
          Mais algumas latas ou garrafas, e encheriam o carrinho. 
       Não havia palavra entre eles. Passavam os dias na lida de catadores, dividindo lixo com outros de mesma sorte. Sequer se conheciam. Encontravam-se por acaso, separavam-se e, como premeditassem, novamente se tinham lado a lado. 
         Com o tempo, firmaram uma silenciosa parceria. Enquanto ele puxava a carroça, cabia a ela investigar o lixo, catar latinhas pelos bares, selecionar o que poderia ou não servir. Por necessidade, desenvolveram formas peculiares de comunicação, entre gesticulações e grunhidos. Aprenderam, pois, como identificar as necessidades que se permutavam entre eles, embora a fome e o cansaço quase sempre sobreviessem concomitantes, o que tornava a convivência mais penosa.   
          O asfalto novo fervia, chegando a estalar vez em quando. Ele até cochilou por alguns minutos, mas o hálito fétido de um esgoto próximo despertou-o repentinamente. Com os olhos semicerrados ainda, não compreendeu o vulto que se erguia à sua frente. Esfregou as mãos com força no rosto, como se precisasse urgentemente acordar de um sono profundo. O que sucedeu dali por diante não se explicaria pelo vazio que o oprimia desde molecote, tampouco pela torpor de uma vida de miséria e lixo. A mulher com quem involuntariamente se propusera dividir os desassossegos agora aparecia nua e extasiada, como em um transe ou algum tipo de paranoia. 
         Parecia convidá-lo para rodar e sentir o escaldo na palma dos pés em contato com o betume. Ele preferiu não esboçar reação, não cria no que os olhos ainda riscados de remelas teimavam em revelar. Uma criatura esquálida pulando e contorcendo-se, abrindo e fechando a boca vorazmente, sacudindo com força os braços, que rebentavam com fragor nas costas ossudas, produzindo um som como o de um chicote; pressionava a si própria contra as paredes, curvava-se de maneira a enfiar a cabeça entre as pernas. Em meio a tantos movimentos lancinantes, o que se podia fazer a não ser esperar o pior. Ele pensou em dar-lhe na cabeça com uma pedra, mas desistiu. Esperaria mais um pouco, o tempo que fosse preciso, não faria mal a ela, não sem motivo; tudo que via era uma mulher em seu estado mais bruto, sem amarras, desfrutando de tudo que lhe fora negado. O que via era consentimento, nada além disso.
          Como cansasse, estancou de repente, estirando-se no asfalto. Emitia sons delicados, a lembrar o ronronar de um gato. Mesmo no chão, fazia movimentos sinuosos, talvez para testar os instintos do companheiro, que até então se contentava em observar. Foi quando ela parou definitivamente. Havia movimento em seu peito, mas os arroubos cessaram.
           Ele resolveu averiguar. Caminhou devagar. O corpo magro, cor da noite sem estrelas, estirado no asfalto escuro e reluzente, induzia-o a um pensamento lascivo. Os olhos dela fechados, pálpebras ajuntadas com firmeza, como se sofresse; curvou-se sobre ela, apanhou-a nos braços e trouxe-a para a calçada. Achou-a morna. Em seguida, cobriu-a e vigiou. Até o sol despontar, velou o sono da única companheira que tivera na vida. Quando ela despertou, seguiram a catar lixo, sem dizer palavra, sem desvelo e sem cansaço.
             
       
          

indecente língua, coloquializadamente 
multilinguística,
anacoluto pela falência dos órgãos
fonadores; ai sintaticoração,
bate algo ou em alguém, 
transitiva idade de sofrer em vão,
adverbializando o que não é circunstante,
blagues, blogs, busto inundado
de clichês abundantes,
unipessoalidade de cada um,
ambiguidade dependurada
nos seios oblíquos, sujeitos reflexivos
e belicosos, dística analepse:
fêmea em frenesi, frêmito furioso
de ferocidade;
ainda alcanço teu aliterar!