Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 25 de outubro de 2009

O bordado pelo avesso

A viagem prosseguia morna e o tempo se esticava. Olhar pela janela dava uma aflição. A paisagem estorricada, a sequidão dos riachos, os arremedos de bichos a farejar qualquer esboço de pasto. O sol das quase três horas derretia-lhe a maquiagem. Faltavam ainda uns bons quilômetros. Retocava os lábios, os lados do rosto, queria parecer bem. Poucas poltronas ocupadas, um silêncio de dar dormência.
Quinze anos sem dar notícias. Um suspiro, uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu então voltar, rever a casa materna, engolir as mágoas. Empurrava os seios com força, arrumava-se na poltrona, cruzava as pernas, sacudia os cabelos.
A vermelhidão das horas riscava o horizonte. A modorra lhe trazia o velho pai. Seu Estênio, olhar grosso, sobrancelhas grudadas. Sobreveio o dia em que parou a lida para improvisar um penteado numa espiga de milho. Apanhou para a vida toda. O pai, dizem, morreu de desgosto, quando, no caminho da cacimba, flagrou os dois primos. De nada adiantou bater, xingar, amarrar no pé da cama. Quando é para se soltar, não tem quem segure. O velho não resistiu. Adoeceu, prostrou-se e dias depois morreu.
Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, de alguma forma entendia, mesmo calada, consentindo com o olhar distante, perdida no terreiro, tangendo as galinhas. Vivia do marido, que a tirou da família ainda moleca, numa partilha de gado. De dia, era tratada como uma criada, com tudo pronto na hora certa. De noite, o velho se chegava, fétido dos bichos, e a embuchava. As crias não vingavam. Cinco sequer vieram ao mundo. Dois saíram cedo demais e viraram anjos. Olhando pela janela, sentia-se sobrevivente. Agora a mãe, próxima, traços delicados, tornava-se um remorso. Tempo demais sem dar notícias. Era tarde.
Saiu da brenha para as terras do Sul com as roupas do corpo e uma escolha. Prostituiu-se em postos de gasolina, conheceu toda espécie de homens, até se agüentar como manicure em São Paulo. A vaidade era a única virtude que lhe restava. Os cabelos vinham na cintura, as unhas vermelho-sangue, o carmim, as lentes cor-de-mel. Por onde passasse, um assobio distante, uma piadinha. Olhando pela janela, a beleza refletida, o tempo cuspia-lhe a cara.
- Quem vai descer na Passagem da Onça!
Tanta exuberância atrapalhava os movimentos. O salto agulha, a insegurança nos passos, o olhar inquiridor dos passantes. Não trazia bagagem, só uma bolsa tiracolo. Apanhou uma moto-táxi, não tinha segurança do caminho.
- O sítio de D. Felícia, por favor!
Puxou o vestido, aprumou-se na moto e, aos poucos, começou a reconhecer a trilha. O açude do Traguçu, a cancela da fazenda dos Mota, a velha cacimba, agora desativada.
- D. Felícia era mulher boa, decente, não merecia tanta solidão...
- Com certeza!
A porta do sobradinho era familiar. O chão de cimento queimado, o forno de pedra, os quadros em feitio oval. O quarto, o cheiro. Da janela, o mesmo vazio que a mãe sempre procurava. Sentou-se diante da penteadeira, os frascos vazios de perfumes, os gavetões emperrados, o espelho. O tercinho da mãe. Sempre se apegava ao tercinho, quando o velho Estênio dava de surrar quem estivesse na frente. Retocou a maquiagem, apanhou o terço e saiu.
O vestido esvoaçava, o salto afundava na piçarra mole. Tinha chovido. Tirou os sapatos, jogou na ribanceira.
- Pra que lado fica o cemitério, seu moço?
- Depois do matadouro.
Que ironia, um cemitério e um matadouro. Caim e Abel. Riu-se. Apertou o passo, o calor era insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu apontou o lugar. Felícia Neves de Araújo.
Não havia mais nada a fazer. Apertou com força o terço. Esticou o pescoço. Ninguém no cemitério. Pouco a pouco foi se desfazendo. Tirou as unhas postiças, os cílios, limpou o batom. Enfiou a mão no vestido e sacou o enchimento do sutiã. Por fim, puxou a peruca e jogou no tempo.
Da tiracolo, um revólver. O cano na boca, um disparo. Umas galinhas ciscando tomaram um susto. Continuaram a bicar a terra.

Perdão

Na véspera da ordenação, resolveram comemorar. Átila esquivava-se, não achava necessário ostentar, mas a insistência dos amigos foi mais forte.
Preparou-se à exaustão para o grande dia em que se tornaria sacerdote, conhecia os afazeres religiosos melhor do que os padres com quem convivia no seminário carmelitano. As provações por que tinha de passar já não o atormentavam, tudo era consumado em seus pensamentos, um sonho, desde que era acólito, ainda molecote, e levava puxões de orelha do padre Álvaro. Sabia que as vestes do mundo não mais lhe cabiam. Era tempo de concelebrar, e para isso tinha os amigos, os mesmo que na infância caçoavam. Lembrava com nitidez os tempos em que o chamavam “boneca de padre”. Agora nada mais importava, senão o dia seguinte, em que se entregaria a uma vida de serviços à igreja e a Deus.
Aceitou o convite. Mal não haveria. Uma confraternização apenas. Os três que organizaram a despedida eram irmãos. Átila veio depois, conheceu-os de brincar no meio da rua, de correr atrás das menininhas. Combinaram então de encontrar-se às oito e meia na frente da matriz, que já estava toda enfeitada para os festejos de Nossa Senhora das Dores, padroeira do distrito. Pela primeira vez um fruto da terra se ordenaria padre, um orgulho para todos, principalmente para D. Nila, mãe de Átila, mulher que a duras penas conseguiu dar estudo e juízo ao filho.
D. Nila nunca foi de prender menino em casa, mas com Átila foi diferente. Era o caçula. Além dele, mais quatro. Todos se perderam na bebida, mas o último a mãe conseguiu segurar, pôs cabresto. Depois da morte do marido, D. Nila perdeu o prumo, ficou doente, teve de ser internada, e confiou a criação do filho mais novo ao pároco da época. Sempre fora mulher de igreja, daquelas de contribuir em todos os eventos, de não faltar a uma novena, de se confessar a cada mês, de ajudar nos preparativos de todas as festividades santas. O padre devia favores a ela, daí aceitar cuidar do menino.
Com oito anos, Átila era o acólito mais jovem e mostrava vocação para o serviço, via-se que fazia com gosto, com dedicação. Assim cresceu no meio dos padres, freqüentando a escola episcopal, estudando com afinco os textos sagrados, afinando o vocabulário. Aos treze anos, era de citar frases em latim, de comentar as epístolas, de puxar ladainhas e terços. Até os erros dos aspirantes a padre, que à noite pulavam a janela do quarto e iam ter com as mocinhas no mato, não o fizeram perder o vislumbre da vida sacerdotal. Certa vez, numa noite chuvosa, a porta de um dos aposentos entreaberta, flagrou um padre, pelos seus sessenta anos, e um seminarista, um dos mais jovens, fazendo coisas estranhas. Voltou correndo para o quarto, trancou-se e ali, em prantos, rogou perdão para as almas de todos os pecadores. A vocação amadureceu. Com dezoito anos, mal saía do seminário. Mesmo nas férias, preferia ficar, preparar liturgias, organizar sacrários, desempoeirar as prateleiras da biblioteca.
Os amigos de Átila preferiram os caminhos do mundo. Viviam de farras, não trabalhavam, sustentados pelos pais, que já haviam decidido entregar o destino dos filhos nas mãos de Deus. Quando pequenos, arrumavam briga com outros meninos, avançando no primeiro que olhasse torto para qualquer um deles. Com Átila não foi diferente, mas entre eles, sem explicação aparente, nasceu uma simpatia. Passaram a querer que Átila andasse com eles, protegiam-no como se fizesse parte da família. Com os acontecimentos, acabaram por se distanciar, mas ainda o tinham em grande estima, tanto que, sem muito porquê, decidiram fazer uma espécie de despedida da vida mundana, um bota-fora para o colega que no dia seguinte se tornaria padre.
Na hora marcada, Átila chegou. A matriz estava um primor, toda iluminada para a celebração da padroeira, preparada para a chegada do bispo e para o grande momento da ordenação. Os irmãos ainda não tinham chegado. Os que passavam faziam questão de cumprimentar o quase novo padre.
- Deus abençoe você, meu filho! Deus abençoe!
- Amém! – respondia.
Átila já estava para ir embora, quando os três apareceram.
- Então, para onde vamos?
- Para a barragem. – respondeu um deles.
- Que tem lá?
- Nada, só nós. – e riram.
Rumaram em direção à barragem. Havia um barzinho, que não funcionava àquela hora, mas, por uma combinação prévia com o dono, um rapazinho ficara de prontidão para cuidar das carnes e das bebidas.
- É aqui.
Sentaram, pediram uns copos e sugeriram um brinde ao mais novo pároco da região.
- Não sei se devo.
- Deve sim! Não fizemos isso tudo à toa! Agora que está aqui, brinde conosco.
Átila pensou não haver mal em um copo de cerveja.
A conversa animou-se de tal maneira, que as bebidas desciam como se o copo não secasse. Os quatro já não se agüentavam, riam de tudo, contavam do passado, das vezes em que levavam carreiras dos meninos mais velhos porque levantavam as saias das meninas na praça.
A carne assada servida como tira-gosto começava a entalar. Átila não previa beber tanto, não era de seu costume, embora não fosse a primeira vez. Àquela altura, os irmãos contavam suas histórias, e o aspirante a padre apenas ouvia, rindo, mesmo sem saber por quê.
- ...E agora vai virar padreco.
- Não fale assim! – retrucou Átila.
- É verdade o que dizem sobre os padres? – indagou um deles.
- E o que dizem?
- Você sabe!
Os três irmãos esticavam-se nas cadeiras.
- Dizem que não são santos...
- Ninguém é santo, a não ser que mereça...
- Não é isso!
- E o que é então?
- Dizem que padre gosta de fazer safadeza.
As gargalhadas estouravam.
- Safadeza?
- Vai dizer que não sabe!
- Sabe o quê?
- Você morou com os padres...
- E daí?
- Sabe que tem safadeza.
Por um breve momento, a cena do velho padre e do seminarista tomou conta dos pensamentos de Átila.
- Melhor ir embora.
- Que foi? Não agüenta a verdade?
- A sua verdade, irmão.
- Você não é nosso irmão!
- Somos todos irmãos...
- Vai dizer que você nunca foi boneca de padre.
Os três cantarolaram no ritmo de uma marcha nupcial.
- Boneca de padre! Boneca de padre!
Um dos irmãos passou as mãos pelas costas de Átila, descendo até a cintura. A cantoria não cessava, o apelido da infância, o velho padre e o seminarista. Átila passou a mão numa das facas que estava sobre a mesa, apertou-a com força e cravou-a no pescoço do que o acariciava.
- Meu Deus!
Os outros dois não sabiam como reagir, apenas tentavam estancar o sangue que jorrava do pescoço do irmão.
Átila correu em direção ao banheiro. Ali, uma corda. Subiu no sanitário, jogou a corda por sobre um caibro, amarrou as pontas no pescoço e matou-se, não sem antes rogar perdão pelos pecados do mundo.



Rastros

A manhã despontava, e o menino Caçula já descia o alto, tangendo os bichos, vindo do Jitó, puxando pelo cabresto a teima do jumento, grajaús carregados de manga coité. A molecada do sítio Ladeira Grande, às ordens de D. Ambrósia, enfileirada no alpendre, cabelos lambidos, blusas perdidas, o pé da barriga à mostra. Dia de visita, uma primalhada do Sul, gente de outros hábitos, meneios de cidade, difícil de agrado.
Caçula, assim era conhecido, foi o último a se arrumar, o rosto ainda riscado da noda das mangas. O povo chegou às sete. Apenas um deles parecia familiar, os demais tateavam as coisas e as pessoas, os sorrisos soltos, falas estridentes de forasteiro. Bastou um sopro, ficaram de casa. Os mais velhos tomaram conta das cadeiras do alpendre. Os meninos amontoaram-se no terreiro, vendo de longe, esbugalhados, curiosos.
- Traz café, Nana! – gritou Ambrósia.
O povo do sítio era amarronzado, diferente dos visitantes, anêmicos, uma brancura de dar dó. Ambrósia, sempre solícita, de instante em instante oferecia alguma coisa, elogiava os cabelos lisos dos pequenos da trupe de estrangeiros.
- Tão loirinho! Branquinho, meu Deus! – derramava-se.
Entre os chegantes, um menino, de nome Ariel, olhos cor-de-fumo, cabelos escorridos. Os pequenos do sítio puseram-lhe o apelido cabelo-de-macarrão. Caçula, a essa altura, tinha se despido da camisa e começava a separar as mangas. Era rude, entroncado, olhos e nariz esticados. Apalpava com ligeireza as frutas, expulsava o mosquitaral.
- Çula...ô Çula, cadê as manga?
As melhores foram para as visitas. Caçula separou uma três para chupar na ribanceira do engenho. Os capotes ciscavam pelo terreiro. Vez em quando as camionetes, carregadas de gente da Feira, riscavam a piçarra, a poeira cobria o cimo.
Ariel se chegava, catando palhas, vistoriando os pés de jaca.
- Não tem medo de cair? É alto!
Caçula, sem mirar o outro, a boca entupida de casca de manga, respondeu com a cabeça.
- Como subiu aí?
Apontou com um gesto de queixo a pedraria que dava para o alto da ribanceira. Continuou a chupar as mangas, enquanto o outro se metia a subir. No alto, Ariel despercebeu-se da presença de Caçula, mirou até onde pôde o estirão de terras, admirou-se da imensidão do sertão e das nuvens deitadas no azulado dos serrotes.
- Dá pra chegar até aquela nuvem? – apontou sem esperar resposta.
Caçula escondia-se por detrás dos joelhos ossudos, cercado de mosquitos, o focinho amarelado da meladeira das mangas.
- Qual?
- Aquela...que parece um tapete. Lá em casa tem um tapete parecido com ela.
Os dois no cume da ribanceira mal falavam. Entre eles havia um abismo tão cavado quanto o da Pedra dos Índios. Caçula era um curumim arredio, bicho de andar descalço pelas veredas, de subir na jaqueira com faca no cós, que as jacas de vez costumam ser as do topo. Desde meninote, costumou-se com a lida de serrano, acordando antes do sol, tangendo o gadinho até a beira do açude do Careta. A insistente presença de Ariel o acuava, como se lhe pusesse em cercado, qual as reses do curral. Um menino de brancura igual à dos coroinhas do padre Sebastião de certo não saberia amansar um jumento brabo, arregaria da primeira coiçada. Os olhos de Caçula não desgrudavam do outro, que já se mostrava incomodado com os mosquitos, gemia, estapeava-se. Se vira moleque tão frágil, não se lembrava, a não ser os meninos do prefeito, que em época de campanha levava a família toda para os palanques. Esses não contavam, eram vistos de longe, figuras desfocadas. Ariel era diferente, de uma alvura próxima, um olhar curioso, uma quase agressão a todos os instintos de Caçula.
- Vem comer alguma coisa, Ariel! – gritaram do sobrado.
O menino desceu numa rapidez de baladeira. Sequer escorregou. Caçula quase sorriu.
À tardinha, os curumins do sítio costumavam se juntar para o banho na bica do Jitó. Caçula já esticava na frente.
- Çula!...ô Çula, leva o Ariel contigo, que ele quer conhecer o Jitó!
E o menino aproximou-se, tenso, medroso do que poderia encontrar no meio do caminho. Caçula farejava o medo do outro, mas seguia calado, riscando o terreiro com um galho de Juá.
A vereda estreitava a cada ladeira, e o mato rompia os cercados. Caçula pegava do chão umas manguitas, cheirava, jogava com força até estourar nos troncos grossos das antigas jaqueiras. Ariel repetia o gesto, mirava o mesmo ponto. Os dois ali, sem palestra, sem maiores intimidades, dividiam o caminho e as brincadeiras. Caçula percebia o esforço do outro, ensinava o melhor lugar para pôr os pés, alertava para as cobras, esticava o dedo para o chiado das cigarras. Ariel firmava-se a cada passo, e a rudeza daquele mundo invadia-lhe os pensamentos, atiçando a vontade de descobrir.
Os dois chegaram à bica sedentos de um banho. Deitaram as roupas em uma pedra e caíram na água, que enrijecia os ossos de tanto frio. Caçula demorava no mergulho, prendia a respiração por um bom tempo, depois emergia, fitando com olhar traquina o colega, como se o desafiasse. Ariel arriscava uma ou outra mergulhada breve, que a asma e o frio não o deixavam à vontade.
Ariel correu para a margem, agarrou-se com a toalha que trouxera, reclamou do frio. Caçula permaneceu na água, mirando o moleque trêmulo, esbranquiçado como as imagens de porcelana da sala de ex-votos da igreja. Como figura tão frágil, tão necessitada de alguém que o ampare, pode sobreviver neste mundo? Ao menos perdesse o olhar de anjo, de peça sacra; ao menos engrossasse as carnes. As gotas escorriam-lhe pelo corpo, em rastros parecidos com os veios das árvores.
Caçula sentia as palmas das mãos engelhadas, calosas. Chegou a sentir pena do outro. Saiu da água e sentou-se ao lado de Ariel, que lhe ofereceu um espaço na toalha. O curumim da serra nunca havia sentido tanta maciez. Nos seus doze anos, despidos, cobertos pelo alvor do instante, entreolharam-se e riram-se, até o vento apagar os rastros.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

apartamento 305

as mesmas horas...o ar-condicionado do carro incomoda, recém-instalado, uma novidade, o jornal no banco do passageiro, alguma notícia sem importância para os minutos, o relógio no painel, ontem as crianças no colégio encenavam uma peça, dom Quixote, os dois pequenos em papéis secundários, os moinhos, sorrio, não lembro de ter lido, mas os moinhos são conhecidos, sonhos, gigantes, são conhecidos, na próxima esquina à direita, uma algaroba, boa sombra, o número, 305, uma loja de animais, coelhos, nunca gostei de coelhos, o portão, o velho espremido numa cadeira de palha, dorme, o espasmo, sono profundo, sonho, o relojoeiro, a lente obtusa, disforme, o olho do relojoeiro é acusador, a escada, passo, lento, o azulejo esverdeado, algo na parede, a música, mas chegou o carnaval e ela não desfilou, as falhas lembram reticências, a criança de sempre chora, a televisão, tudo vem do mesmo lugar, ecos, riscos obscenos, convites para um encontro às escuras, telefones, primeiro andar, vultos, um casal, o olho mágico, alguém sabe, de tudo se sabe um pouco, aperto o passo, segundo andar, latidos, o último jogo de escadas, 305, sua a palma da mão, a campainha, de novo, outra vez, barulho de chaves, a porta semi-aberta, só um instante.

apt. 305

a puta breve, olhar sobrecarregado, ressaqueado, seca no falar, reticente, exigia o soldo, batia com a unha exagerada do indicador na penteadeira, deixa aqui o dinheiro, primeiro o dinheiro, do lado de um porta-retrato, dois jovens se beijando, foto de revista, e no canto uma três-por-quatro de criança, da idade de minha filha mais nova, sua filha?...não se espera resposta, pegou o dinheiro, ia banhar-se, Luana, o nome dado por ela na última vez, essas mulheres se ocultam por trás de nomes pomposos, Luana, não tem cara de Luana, tem cara de maria alguma coisa, francisca sei lá de quê, marcas arroxeadas no corpo, um cheiro de sol saía da toalha, não vai se banhar?, ou se banha ou nada feito, assim é mais real, o chuveiro era um cano, uma bica, a água vinha de repente, um chicote, fria, indecentemente fria, dói nos ossos, rio, não se espera reação, se incomoda que fume?, não se espera que incomode, não sou de fumar, me dá um, fumamos juntos, não sou de fumar, isso eu não ensino, riu, você é tão sério, só um pouco, tem cara de safado, longe de mim, tem que ser safado para estar aqui, sou não, tem cara, e você?, que tem?, é safada?, faço o que posso, rimos, a conversa segue por quatro ou cinco tragos, o cigarro acabou, dá vontade de fumar outro, vamos começar, como você se chama, Larissa, mudou o nome, não tem cara de Larissa, tenho cara de quê?, maria alguma coisa, como sabe?, não sei, quer um filme, uma música?, uma música, gosta dessa?, pode ser, não gostei, pode ser, gosta de quê?, deslizava as unhas pelo braço, qualquer coisa, por isso está aqui, por quê?, porque gosta de qualquer coisa, não é bem assim, você é casado, não, não diria nunca a ela, tem cara de casado, não era safado?, por isso mesmo, se fosse casada meu marido não ia buscar nada fora de casa, a garotinha da foto, minha filha, já gostei de um homem, não foi pra durar, não, as unhas nas minhas costas, e você?, que tem?, já se apaixonou?, íntimo demais para uma puta, todo mundo já se apaixonou, e hoje?, prefiro beber, rio, por quê?, amar é tão bom, beber é melhor, não acho, quer uma bebida?, quero, tem cerveja, serve, beber pra quê?, beber e amar são coisas muito parecidas, não acho, ambos entorpecem, ambos fazem dizer coisas que não seriam ditas em estado normal, ambos causam euforia e tristeza, ambos nos jogam num mundo irreal, se é assim por que prefere beber?, beber tem uma grande vantagem, qual?, no dia seguinte se está curado, você é engraçado, as unhas abrem a toalha, acaricia-me o sexo, você é inteligente, que faz da vida?, trabalho com informática, sabia que era estudado, como pode saber?, fala de um jeito esquisito, como?, fala de professor, não é pra tanto, uma vez um professor saiu comigo, divertido, era de me comparar com mulheres de livros, de falar poesia, de beber vinho, casado, quase me deixei levar, apaixonou-se?, quase, que faltou?, eu não quis, nisso não se manda, eu mando, não seja tão fria consigo mesma, é meu jeito de me defender, pra que se defender do que é bom?, não é bom depender de alguém, falo de amor, falar assim não combina com quem prefere beber, você é bem esperta, também sou estudada, é formada?, terminei o segundo grau, pretende continuar?, vou fazer faculdade de estilismo, bem sua cara.
Continua...

Táxi

Toda a claridade do meio-dia pendia sobre o pára-brisa. Corria a mão pela testa de quando em quando, muito por sinal de enfado do que para resolver a quentura. A senhora repuxava a roupa do filho, grudava-o no encosto, impacientava-se com o calor que fazia. Mal se distraía a mirar a janela, lá ia o fedelho escorregando pelo banco, como vasculhasse algo, como sentisse falta do safanão da mãe ao esticar-lhe a blusa. Foi assim três ou quatro vezes, enquanto no rádio davam a notícia de um tal empresário que havia cometido suicídio.
Palestrava com todo tipo de passageiro, mas não me sentia à vontade para comentar o que fosse com aquela dona. Poderia aproveitar a deixa, um homem que se mata é sempre razão para um bom prato de filosofia. Ademais, havia o calor, os buracos das ruas, a eleição próxima. Contudo, o olho trágico da mulher, rasgado na direção da janela, repelia qualquer intromissão. Só o filho ainda lhe arrancava algum movimento.
A reação veio num repentino sinal de pare, esticando a mão e apontando um homem que saía de uma revenda de carros. Segurou-me firme no ombro para que parasse o táxi sem que ele percebesse. A senhora esticou os olhos, quase com a face encostada na minha – sentia-lhe o hálito, estava ofegante, chegava a bufar. O menino aquietou-se, entretendo-se com as pessoas da calçada. Sugeri buzinar, descer do carro, o calor me roía os nervos, mas o não veio rápido.
- Vou só nesse bar comprar algo gelado, que o calor é grande! A senhora quer alguma coisa? O menino quer?
Outro não. Sequer indagou o filho, que a essa altura já tomava ares de sono. Desci do carro. Do dito bar, percebi a senhora ainda imóvel, mirando o outro. Só assim, de longe, pude realmente notar que não era uma mulher feia, via-se que se cuidava, tinha postura. Deu vontade de levar um refrigerante para ela, mas tive receio de que isso a denunciasse ao homem que esperava na calçada, encostado em um carro. O filho já dormira a essa altura. O homem fumava um cigarro, era lento nos gestos, não aparentava mal-estar, não se escondia, até cumprimentava um ou outro conhecido.
Aquilo só podia ser coisa de mulher enganada, dessas que desconfiam do menor sinal de mudança no comportamento do marido. Deveriam ser casados. Ali, enfurnada num táxi, no pico do meio-dia, espionando homem, com o filho a tira-colo, só podiam ser casados. Imagino o que não teria feito a boa peça da calçada. Traição. Não tem outra desculpa para uma situação dessas. Cheguei a ter pena daquela senhora, mas quem é que conhece as pessoas. Sabe-se lá se não é uma desvairada, que prefere um casamento medíocre, que luta até o esgotamento para manter o que já não se sustenta. Talvez queira apenas confirmar os próprios devaneios. Talvez o marido nunca a tenha traído, e é esse o dilema que aquela senhora experimentava: se foi traída, perde pela vergonha de ser trocada, mas ganha pela intuição certeira de mulher; se não, perde por se achar paranóica, mas ganha por ter um marido direito. De uma forma ou de outra, a sensação é terrível.

Continua...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Desisti de buscar veredas incompreensíveis, de rasgar bestialidades em prol de ideologias de shopping, de enfrentar, a cada dia, o leão da discórdia, de reinventar instantes, como se o que houvesse para viver fosse, necessariamente, uma continuidade. Vivemos de interrupções. Desisti de pensar, de procurar vampiros, de assustar criancinhas, de demolir esculturas clássicas, de espionar o quintal do vizinho. Não tenho mais vizinhos nem quintais. Desisti de apelidar os outros, de sorrir sorrisos vãos em sinal de cordialidade, de engolir palavrões por ofício, de vomitar poemas por segundas intenções. Desisti de arremessar insultos contra todos os que crêem em sentimentalidades, de refrescar a moleira nos olhares que, por serem íntimos, são impenetráveis. Desisti de perfurar poços artesianos, de mirar a calçada pelas persianas, de ter bichos de estimação, de refugar desejos, de ouvir, à meia-noite, alguma canção de Bob Marley. Desisti de correr atrás de solicitudes, de escalar colinas áridas, de gritar em grutas, de revelar, por torpeza, nos cálidos momentos de embriaguez, decadências e fragilidades, das que nos fazem perder as máscaras sob as máscaras sob as máscaras... Desisti de pagar por um amor cronometrado, de viver a expensas de leprosos e cegos, de aprender truques novos, de negar velhas experiências, de cerrar a alma para tudo que arrefece esperanças, de teorizar sobre o vácuo, de irromper de asfaltos, de amar sem ser amado. Desistir de ler as cartas amareladas, de ter de volta a tão bem-vinda paciência, de emocionar manequins, de ver lágrimas escorrendo no rosto de porcelana dos que se julgam inocentes, enquanto condenam a humanidade ao desterro. Desisti de ver televisão, de perder tempo racionalizando o incômodo crepúsculo do domingo, de ir à igreja, de ter fé em qualquer porta que se me abra. Desisti de procurar em muros e fachadas a sofrível carinha do tenha-um-bom-dia, de participar de folguedos e reisados, de desfechar escrúpulos nos tolos momentos desejosos, de dominar asperezas, de resgatar impossibilidades, de alienar os mais moços, de parir o futuro. Desisti de manter as aparências, de insistir em decências, de angariar simpatias, de ser o primogênito do mundo, de cobrar esterilidade, de balbuciar jingles publicitários, de escrever sem pensar no outro, de ser as coisas, de coisificar o ser. Desistir de felicitar por casamentos, de emprestar alianças, de encarar finais felizes, de mecanizar Drummond, de desartificializar Spielberg, de ironizar Bush, de esfriar Clarice. Desisti de responder mensagens apócrifas, de fotografar infelizes, de implorar abraços, de sussurrar paquidermes, de abrigar gostos antigos, de revisar linhas retas, de esclarecer fantasias, de aparecer de repente, de fomentar receios, de esconder botijas, de esfacelar artérias, de morrer. Desisti de retaliar frugalidades, de desrespeitar os dogmáticos, de invejar estrangeiros, de envelhecer por remorso, de remoer aflições, de culpar o espelho, de fumar por terapia, de ceder no primeiro blefe, de buscar o que não me busca. Desisti de tentar, de tramar seqüestros, de parafrasear lingüistas, de lamber macerações, de perscrutar juventudes, de perecer inocente.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Ao poeta de lavras e hinos

Ao mestre Linhares Filho

Tuas cãs em feérica lida
a captar a essência das coisas
e dos seres,
tuas tímidas mãos na moldura verde
a coser vocações no etéreo
olhar dos que, por arrebatamento,
seguem pelos meandros de tua
madura topografia.
Tua nau ainda em desbravo
singra a vida em pulsante faina
que a Poesia, tabernáculo do Ser,
orienta,
em teu peito emerge, lavra e hino,
o grato torrão lavrense, Pasárgada
de rio, alazão e saudade.
Em teu engelhado toque,
inventas um tempo, insumo memorial
de um mundo que recuperas
e colhes.
És presença em Pessoa,
companheiro do alquimista,
de Trás-os-Montes a Lavras
vais em um cavalgamento.
Quando em inexato espaço,
tornas-te ente e preso
no mar ou sótão, no halo ou cio,
no velejar onírico de teu presente
jamais ausente de teu passado.
Transfiguras o simplório, o intelecto
em festa, e em tua modernidade
guias-te pelo farol dos que antes de ti
cumpriram tantas míticas jornadas.
Tua invocação poética, teu talmude,
tua erudição inflexiva, tua apreensão de mestre –
tudo-nada amalgama Ser e Coisa.
Se reinventares, se doares, se ensinares,
apenas se, Linhares.


P.S.: Esse poema fiz em homenagem ao poeta Linhares Filho. Segundo o próprio, será publicado em seu próximo livro. Às vezes, gosto de brincar de ser poeta.

Crônica a bem da solidão


          Alguns se queixam da solidão, como se não houvesse cabimento ficar sozinho neste mundo, entanto todo ser humano deveria ter, vez ou outra, alguma necessidade de isolamento. É que não sabemos estar sozinhos, não temos experiência ou tarimba suficientes para escapar das angústias criadas não pela solidão, mas pela asfixia da ausência ou da sensação de abandono.
       Na verdade, desde que inevitavelmente somos despejados do tão seguro ventre materno, estamos impelidos a perceber que não vamos ficar sozinhos no mundo – isso sem mencionar os gêmeos, que se veem acompanhados desde a fecundação do óvulo. Primeiramente, o colo materno nos induz a acreditar que nunca teremos a oportunidade de olhar para o lado sem que haja uma mão estendida, sempre disposta a colaborar com nossas peraltices. Depois os irmãos, os amigos, os colegas – sim, temos que distinguir bem coleguismo e amizade – os namorados, os amores, os cônjuges, todos esses chegam com faixas e cartazes que nos lembram todos os dias que jamais ficaremos sozinhos nesta existência.
         Certa feita, numa tarde chuvosa, estava eu a contemplar a chuva, sem paranoia, sem culpa ou remorso, apenas em atitude de admiração, sentado mansamente na área de casa. Quando olhei para o lado, qual não foi minha surpresa ao ver meu filho, sentadinho, com olhar entre desconfiado e preocupado. Perguntei a ele o que fazia ali. A resposta não podia ser mais instigante.“Não queria te ver sozinho, papai!”. Lindo, tocante, sobretudo por ter vindo de uma criança de nove anos. Mas eu queria ficar sozinho. O que quero dizer é que solidão não é doença ou prenúncio de suicídio; ao contrário, pode ser apenas um momento de silêncio, tão raro em tempos de paredões de som ou carros com potência sonora capaz de encabular o mais estridente trovão.
          Qualquer forma de desfavorecer a solidão não passa de puro despeito, ou medo, ou ignorância mesmo. Os que gostam de apreciar a arte, por exemplo, sabem dar valor a um bom e produtivo momento consigo mesmo. Por mais que se vá ao teatro ou ao cinema com um grupo de amigos, se o objetivo é mesmo considerar o espetáculo ou curtir o filme, assim que as luzes apagam e tudo principia, a relação que se tem entre quem vê e o que é visto é de solidão pura, tanto que sequer lembramos que há alguém ao nosso lado enquanto o drama nos prende, nos encaminha a reflexões e a belezas. Será que existe coisa melhor do que ler um bom texto, tentar decifrá-lo, mergulhar nele, resgatá-lo e trazê-lo para nós – sempre entendi a leitura como uma espécie de desapropriação, como quem retoma a posse de um terreno de ocupação. Ler é bom, mas muita gente não gosta. O motivo é simples: ler exige solidão. Se não sabemos como agir quando estamos sozinhos, jamais seremos bons leitores.
              De tanto buscarmos companhia, esquecemos as maravilhas e vantagens da doce e nobre solidão, a mesma que acalentou centenas de poetas, acompanhou outros tantos profetas em peregrinações pelos desertos da alma, encantou pintores para fazer brotar do branco a mais íntima beleza...Sem a solidão, não haveria arte, nem estrelas – só miramos estrelas quando estamos sozinhos – nem soluções para os corações estraçalhados, nem autoconfiança, nem conversas diante do espelho. Se estamos sozinhos, alvíssaras, é tempo de repensar as coisas ou de coisificar o pensamento. Lancemos, pois, mil vivas à solidão. Sem ela, por certo, jamais teria escrito tal texto.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

As outras do recomeço

Jacinta preparou tudo com muito zelo. Era aniversário do marido e nada podia dar errado. Muito mais do que uma festa, uma reaproximação. O casamento já não fluía como antes. As discussões sucessivas, pelos motivos mais banais, afastaram os dois, as coisas poderiam mudar.
Contratara um cantor especializado em aniversários, com amplo repertório de músicas das décadas de cinqüenta e sessenta, as preferidas do marido. Pensara, com cautelosa antecedência, em todos que poderiam comparecer ao evento. Amigos íntimos do casal ou tão-somente conhecidos, o importante era que os jardins do bufê abarrotassem de gente. Também estavam nos planos uma boa quantidade de bebidas, de todas as marcas e para todos os paladares, da cerveja ao uísque.
Tudo deveria ser uma grande surpresa, mas o marido, sempre atento, apertou um dos empregados da casa até extrair a revelação sobre a festa. Agiu com naturalidade depois disso. Saiu como de costume, despedindo-se da mulher com a formalidade de sempre. No caminho para o trabalho, veio-lhe a idéia de parar numa barbearia, polir o rosto, mas achou por bem cumprir a rotina, deixando a barba para o sábado. No final do expediente, recebeu o telefonema da mulher, que o aguardava num endereço estranho. O carro havia enguiçado, precisava de auxílio. O marido atentou para a boa mentirosa com quem se casara. Sorriu levemente, encerrou o dia e tocou para o tal lugar.
Encontrou a mulher enfeitada demais para quem estava no prego. Fez que nada sabia, perguntou pelo carro. Puxando-o pelo braço, sorridente como há muito não se via, a esposa levou-o até uma esquina próxima, onde uma faixa de feliz aniversário encimava a entrada de um luxuoso bufê. Os convidados, para mais de cem, levantaram das mesas e aplaudiram o aniversariante. Seguiu-se uma interminável fila de cumprimentos, que só não se tornavam mais enfadonhos porque o marido aproveitava a ocasião para tomar umas dosezinhas de uísque. Passadas as formalidades, Jacinta aproveitou o microfone para erguer um brinde ao marido, com sonoros desejos de saúde e felicidade vindos de cada mesa. Propuseram uma dança, que o marido recusou, alegando não ter bebido o suficiente para tanto.
A festa prosseguiu. Os garçons não paravam de servir bebida. Das mesas, estouravam gargalhadas, seguidas de demorados apertos de mão. Jacinta sentou-se para descansar, satisfeita por ver o marido se divertindo, passando de mesa em mesa, conversando, rindo, bebendo.
A noite corria leve, sem maiores preocupações. O marido, animado pela bebida, arriscou uma música ao lado do cantor. Formou-se um coral em torno dele, que àquela altura era dono da festa. Abraçou repetidas vezes a mulher, pediu-lhe perdão, chorou e ameaçou ajoelhar-se diante de todos. Jacinta apenas observava e ria, e de alguma forma conseguia ver sinceridade nos gestos do marido.
Terminada a festa, depois de o último convidado se despedir, ela levou o marido para casa. Estava cansada, mas tudo correra como planejado. Conseguira mostrar a ele o quanto se importava com o bem-estar de seu casamento.
Em casa, Jacinta jogou o marido na cama e foi banhar-se. Se ele estivesse em condições, estariam os dois no chuveiro. Ainda assim, engoliu o desejo e sentiu pela derradeira vez que havia feito a coisa certa.
O marido acordou por volta das duas e meia da tarde. Arrastou-se até a cozinha, onde a mulher o cumprimentou com um melodioso boa-tarde. Continuou até a garrafa de café, esfregando a mão no rosto com vontade. Sem dizer palavra, rumou à sala, tateou os livros que enfeitavam a mesa de centro. Deitou-se no sofá e de lá não mais saiu. A mulher percebeu a inércia do marido, deitado ali, sem esboçar gesto. Tocou-lhe a testa, tomou-lhe a veia do pescoço e constatou: estava morto. Jacinta correu como louca, puxando os cabelos, gritando por socorro. A sala rapidamente encheu de curiosos, entre vizinhos e empregados.
Jacinta não se conformava. O marido era jovem e nunca despertara a menor suspeita de qualquer problema de saúde. O laudo cadavérico sugeria diabetes. Não fazia o menor sentido que um homem que gozava de plena saúde, sem mais nem menos, caísse morto no sofá da sala, como uma vela que se apaga.
Seis meses se passaram. Jacinta continuava inconformada, mas já se ocupava de uma ou outra coisa que a fizesse esquecer. Era uma mulher jovem ainda, poderia refazer-se, mas faltava coragem ou vontade. Vivia agora sozinha. Quase não tinha amigos. Se encontrava algum conhecido, trocava meia palavra, alegando compromissos inadiáveis que nunca existiram. Convivia com a culpa de ter sido a causadora da morte do marido, por conta da tal festa.
Uma vez por semana, freqüentava a igreja. Depois da missa, ficava por mais uns bons minutos penitenciando-se, enquanto fitava o Cristo crucificado no altar. Foi numa dessas demoras que conheceu Salomé.
Aos poucos, as duas se aproximaram. Salomé também era viúva, mas já não trazia um olhar trágico. Passaram a freqüentar a casa uma da outra. Em pouco tempo, já eram confidentes. Almoçavam juntas, faziam compras, demoravam-se em conversas ao telefone.
Numa das idas à igreja, Salomé sugeriu um happy hour em um bar próximo. O luto de Jacinta a incomodava, e naquele dia saiu decidida a mudar essa situação. Sentaram e pediram uma cerveja. Pelas tantas, a conversa corria animada, contavam histórias picantes dos maridos, reclamavam das traições. A bebida vinha como uma anestesia, e Jacinta, quando questionada se queria ir embora, apenas sorria, enquanto fazia gestos para que o garçom trouxesse outra cerveja.
Era perto de meia-noite quando um garçom aproximou-se com um bilhete. Dois rapazes em uma mesa próxima perguntavam se as donzelas não gostariam de companhia. Jacinta riu, piscou para a amiga e chamou um deles. Logo o outro rapaz também se chegou.
O mais jovem era militar, via-se pelo porte físico e pelo corte de cabelo. O outro era comerciário, prestes a ser promovido à gerência da loja. Eram de boa conversa, educados e bem-humorados. Jacinta chorava de rir das piadas. Os garçons já recolhiam as cadeiras, quando um dos rapazes sugeriu continuar a conversa em outro lugar. As duas se olharam com cumplicidade e, sem muito alarde, aceitaram. Foram ao apartamento de um deles. Enquanto Salomé conversava na sala com o comerciário, Jacinta e o militar ficaram na varanda. Aos poucos, foram se tocando e, por fim, o beijo. Salomé, a essa altura, já tinha ido para o quarto com o outro. O militar levou Jacinta para o banheiro e ali, sob o chuveiro, se amaram.
Bem cedo, ela deixou o apartamento. Sequer se lembrou de Salomé, que dormia tranqüila ao lado do comerciário. O militar ainda tentou perguntar as horas, mas tornou a roncar, caído no chão da sala.
Jacinta apanhou um táxi. Em casa, tomou um longo banho. Pensou no marido. Passando pela sala, fitou por uns minutos o sofá. Ainda que não fosse o mesmo em que o marido havia morrido, era impossível não lembrar. Ouviu o toque do celular. Era Salomé. Decidiu não atender. Arrastou-se até a cozinha e tomou um café, fitando o corredor que dava para a sala.
São tantas as experiências com as quais aprendemos e em cuja sombra nos abrigamos, sem o dolo do julgamento, sem a impraticável leveza dos que colhem, na sombra da caverna, alguma forma agridoce que amenize as dores do mundo. Um dia, amei, da forma mais tola e descabida, sem alicerce, sem o recrudescimento das horas. Não se há, pois, de condenar tal criatura, tão afastada do ninho, rasgando a garganta à procura de uma resposta.
Foi como um quebranto, um ritual de sacrifício. Surgiu casual, puro, irracional, como tudo que, por providência, chega e arrebata. Éramos uma intercessão, criaturas nutridas de uma cumplicidade assustadora, que, na mais serena das horas, criam adivinhar pensamentos, reconhecer necessidades, interpretar sorrisos. Muito mais que isso, fizemo-nos amigos imprescindíveis, desses que habitam o centro do espelho, e o reflexo estava nela, e o que me abrigava irrompia da lembrança de sua fragilidade. Da perplexidade, nasceu o verbo – conquanto houvesse a palavra, criou-se com ela a semiótica, o movediço do texto. A capacidade de reconhecer-lhe os gestos impressionava. E como era frágil, quase etíope, quando, desacreditada de si própria, procurava em mim a propulsão necessária. Encantava-me seu misto de porcelana e armadura, e vi suas asas crescerem, seu primeiro vôo, seu sorriso cálido ao beijar o sol. Percebia tudo aquilo com ares paternos, e um orgulho constante tomava-me a face, arremessava-me para um futuro pré-datado, em que aparecíamos juntos, no porta-retrato da sala de visitas, dividindo as agruras e os prazeres, até a morte chegar e descobrir que seria impossível separar-nos. E tudo se perpetuaria pelo poder de uma única fala.
Contudo, a palavra não veio. As crenças deram lugar a uma cruel inexatidão. As horas já não mais reiteravam seu nome, os livros retornaram inutilmente à estante, o ineditismo de suas formas tornou-se impreciso, pequeno. Caí em desespero por puro despreparo, pela crença infame de que tão profundo amor não haveria de ser temporão. E o era. Agora, ao reencontrá-la, não a percebo, e o que me diz é o que qualquer um diria, o que me revela é o óbvio das coisas, o que me entrega é áspero e efêmero. Talvez eu tenha cometido algum erro imperdoável, talvez, depois do vôo alçado, ela tenha descoberto que não há abismos no horizonte. O fato é que, outrora – muito outrora, quando falava sobre impossibilidades, pensava ser impossível alguém sentir o que, naquele momento, nascia em mim. Hoje, sei que não há retorno.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Todos os muros

Chegara da escola pela última vez. Da menina, restava apenas uma vaga indecisão, uma lembrança hostil dos primeiros passos, das antigas calçadas, das cadeiras de balanço em ferro trabalhado. Trancada no quarto, agonizou, sedenta para romper o casulo que sempre a acompanhara, como um casco de lesma que era obrigada a arrastar. O peso quase nulo de seu corpo confundia sua expressão de dor com a de fome, uma incontrolável leveza tomava conta de todas as suas tempestades, e o espelho, sempre em solene espera, passou a cercá-la, tragando-a para um mundo esverdeado de veias ressaltadas, galopantes, entupidas de um ódio que, longe de todas as medidas, lhe abria os olhos. Via-se nela um torpe compromisso com todas as aflições, e ali, ensangüentada, enfiava-se definitivamente em um labirinto de sombras. O rosto, de tão alvo, escondia-lhe o melhor, descartava qualquer inútil tentativa de sorrir diante de convidados que, por segurança, jamais pisaram girassóis na praça. Ocultava em curtos lances de piedade um intento cruel. Pegou a tesoura de costura e tosou os pêlos, estocando com força, mutilando-se n’alma, vendo escorrer de sua face a ledice e as veredas com que sonhava, mesmo convencida a desejar apenas aquilo que lhe viesse ao alcance do toque. De cabelos curtos, sua carne amorenada dava lugar a poças de lama e a mudez peculiar de todas as horas arrefeceu de tal modo, que cuspiu na própria imagem e fez ecoar, pela primeira vez, um grito que a devolveu ao derradeiro instante de um parto, quando a luz e o frio do mundo nos revelam a indignidade de estar vivo e nos aproximam, sem fatalidades, daquilo que, por falta de lucidez, aprendemos a chamar de morte. Desceu à sala e estava nua, como em todos os momentos de sua vida, mas agora parecia saber como enfrentar o olhar acusador das figuras que a cercavam com solenidade, numa desesperada certeza de que com ela morreriam as mazelas dos que se escondiam não de tempestades, mas dos primeiros raios de sol de uma bela manhã de domingo. Se ela os curava, muito mais forte era a vontade de vê-los no chão, pedindo perdão por tudo que deixaram de esperar ou dizer ou realizar.
Naquela tarde de maio, depois de tornar-se um ser hermeticamente recluso, de jogar no quintal as últimas mechas de menina esbranquiçada, buscou algo que a nutrisse, e isso não viria se insistisse em permanecer naquele quarto. Tornou-se uma estrábica, que a verdade irrompia como um aleijão, mas o alívio sobrevinha por nunca mais, em tempo algum, deixar-se cegar pelas lonjuras. No meio de uma movimentada avenida, esperou com paciência de adulto o momento certo de precipitar-se. Em súbito, um caminhão cegonha brotou do asfalto. Sem asas que lhe amparassem, flutuou até o tempo em que subia nos ombros do pai para ver o que havia além dos muros do quintal. Não compreendia por que tinha tanta vontade de cruzar aqueles muros. Muito mais que cruzá-los, era preciso ser um desses muros, para que, um dia, alguém tivesse vontade de atravessá-la e, para isso, buscasse ombros paternos que ressurgissem quando, nas brandas horas, se precisasse de alguma tímida recordação.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Piolho de cobra

Quase todos os dias, exceto domingos e feriados, atravessava a rodovia, arrastando os fiapos de perna, para almoçar na casa da irmã. O trajeto não era longo, uns dez metros, se muito; mas arrastar-se no asfalto em brasa, rasgando as palmas das mãos, deixava-o em carne viva, e ainda lhe rendera o apelido de piolho de cobra.
Bebia como desesperado e contava histórias da época em que passava correndo por entre os carros. Nas tantas bebedeiras, fisgou do passado os tempos em que, saindo da escola, deu de correr, e correu como nunca, descalço pelo asfalto, pelas piçarras, pelas pedras do calçamento da praça da matriz. Por mais que se permitisse parar, não continha o ímpeto de atravessar cada vez mais avenidas e praças e calçadas, sem olhar para trás, na certeza de que ninguém o alcançaria. Seu nome espalhou-se por toda a região – era o menino que corria sem motivo, um milagre, um desocupado, mas certamente alguém sem medo de desafiar o próprio corpo.
Nas correrias, subiu quase todas as serras das cercanias; as gentes das praças por onde passava aplaudiam, todos encantados com o feito do menino pé-de-vento, que não parava de correr, nem para comer ou dormir. Muitos tentavam segui-lo, esticando o passo para não perdê-lo de vista; entanto, os mais resistentes não passavam mais de um dia em romaria, vez que, sabendo que o seguiam, apertava o passo, em vermelhidão, moído de sangue, sem unhas. Quando não houve mais para onde ir, decidiu voltar, andando, que os pés já não respondiam.
Depois do feito, as pernas deixaram de responder. Foram afinando, dando saliência aos joelhos, encolhendo, até que se tornaram flácidas, amareladas. Passou então a rastejar pelo mundo, sempre com trajeto marcado, indo de um lado a outro da avenida para almoçar na casa da irmã. Aprendeu a viver assim, usando os braços para arrastar o corpo seco, de costelas à mostra e pernas que mais lembram tentáculos.
Sempre que bebe, atravessa a rodovia sem dar noção às máquinas que por ali passam, rasgando o tempo. De nada adianta, todos os carros e caminhões param para ver piolho de cobra. Alguns jogam moedas, que costuma juntar para ter com as mulheres do baixio.

Irônicas

À criança, será propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade.

A filha, depois de muito matutar, sugere à mãe:
- Mamãe, pinta um quadro!
- Então, o que quer que eu pinte? – devolveu a mãe, em sorriso, entre interesse e sonolência.
- Uma mulher de olhos azuis e barriga verde!
- Ora, meu amor, não existe mulher assim, de barriga verde! – e a mãe deu de sorrir da ingenuidade da menina.
- Mas não é uma mulher, mãe, é uma pintura! – e a menina, sem perceber, reinventou todas as formas de arte.


Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral.

Veio o primeiro, cabeça rala, braços secos, marcados de surras, carregados de nãos. Foi até ao meio da faixa de pedestres e, atento ao semáforo, curvou-se, apoiado nos próprios joelhos. Eis que surge o outro, de sorriso largo, quase uma afronta, uma revolução, em carreira curta, saltando para as costas do primeiro moleque.
Criaturas unidas – o de baixo, mais velho, estende-se em mendigação; o de cima, pequeno ainda, esquece a vida, que o avião voa baixo, de ver as rodas de pouso, impossível não se admirar.



Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe.


Chovia em desespero. E menino liga para chuva? Qual nada, apenas admirava-se das estrondosas estripulias dos trovões, que mais tarde se tornariam bons confidentes. Passou horas na incubadora, deu trabalho à enfermeira, voltou ao ventre umas cem vezes. Em tempo, sobreveio o afago materno, e ele descobriu o mundo. Como mãos tão pingo-de-chuva podiam acolher a ponto de esquecer a friagem, de fazer brotar o mesmo cheiro do ventre, de sentir no toque de suas asas o peso de todas as esperanças? Assim se lhe apresentava aquela mulher, sozinha como ele, também recém-saída de uma incubadora.
A tempestade e o colo eram uma coisa só. O menino fez a chuva rasgar a janela e os pingos perfuravam-lhe a face. Gargalhou com vontade, que os preguinhos, assim era a chuva, faziam-lhe cócegas.
Os cuidados da mão materna eram tantos, que ele mal conseguia roçar na parede molhada, por onde escorria um olho-d’água. Assustou-se ao ver no céu um buraco do qual não caía água. Rompia um rastro luminoso, seguido de uma imensidão azul que não lhe fazia bem. E viu que a chuva tem seu tempo de ir e vir – nem tudo que é bom é azul. Por certo, tudo seria azul, bom ou mau. E sentiu falta da chuva. E pela primeira vez chorou, sem que ninguém notasse. E entendeu que gente também chove.


Desde o nascimento, toda criança terá direito a um nome e a uma nacionalidade.

Duas repórteres, já no final do expediente, decidem alertar a sociedade para a situação precária dos meninos de rua.
- Ali tem dois, três, um monte...
- Dá um bom caldo, matéria pra veiculação nacional.
Aproximam-se calmamente de um dos meninos. Desinteressados, os pobrinhos continuam a soprar as garrafas plásticas.
- Como vai?
- ...
- Como é seu nome?
- ...
- Você pode conversar comigo?
- É pra televisão, moça?
- É sim! Vai ficar famoso!
- Que é isso, moça...
- Você não tem nome?
- Tem não.
- Você tem pai ou mãe?
- Tem não.
- Você sabe o nome do nosso país?
- Sei...Fortaleza!
- E o nome da cidade?
- Sei não.

sábado, 15 de agosto de 2009

A meu pai, ainda presente...



Cansei de ter lembranças, e quanto mais fujo desses tormentos, mais afundo no movediço das recordações, muitas vezes inúteis, outras tantas dolorosas. Em outros tempos, sou menino a esperar o pai, final de tarde: o que para todos é derradeiro para mim é alvorada. Pontualíssimo, discreto, sorridente, trazendo o envelope humilde e amarelo debaixo do braço. Três batidas no sapato, como num balé rotineiro, antes de entrar em casa. Teu pai chegou, diz mamãe, sempre apreensiva com o jantar. Olhamos juntos em todas as direções, sabemo-nos longínquos, eqüidistantes, antípodas de nossas almas, mas ligados de alguma forma, abrigados pelo mais banal dos gestos, pela mais inconstante sensação de imortalidade.
Entre os detalhes de seu ritual diário, recordo o arrastar das chinelas, a calça cinza de bainha solta, o rádio de pilha sempre ao pé do ouvido, as notícias simplórias da labuta, transformadas habilmente na mais gloriosa das epopéias, de invejar Odisseu ou qualquer um de mesmo naipe. Se alguma vez chorou, ninguém soube. Mesmo a doença que o perseguia desde moço, só vim a descobrir quando já não fazia diferença. Entendi com isso que toda coragem é vil, vazia, não passa de uma dura forma de administrar os medos. Assim fez, timidamente, contando cada passo, na incerteza da próxima esquina, num caminhar breve a percorrer estreitos cinqüenta e cinco anos.
Quantas vezes proseamos sobre quase tudo que se permite entre pai e filho. Que falta fazem as nossas conversas, nas sextas-feiras em que o mundo esvaziava, e na área de casa, o ventinho bom de que tanto gostávamos, as pernas estendidas, as cadeiras de ferro trabalhado pintadas e repintadas milhares de vezes a quatro mãos entrelaçadas. No quando das datas festivas, o esperado presente, sempre dois, um do mundo, outro da vida. Cada brinquedo vinha acompanhado de um livro, ambos embrulhados no mesmo papel colorido, para que não houvesse distinção, para que não cobiçasse apenas o que as propagandas de tevê ordenavam. Dessa forma, conheci as letras, e com elas tracei um íntimo pacto, uma justa obrigação com aquele que se tornara senhor de todos os mundos que a meninice me trazia.
Fizemos tudo que podíamos ter feito: jogamos futebol sem saber, comemos jaca mole nas andanças pela serra, dormimos em casa de taipa pelas bandas do Sítio Comum, onde nasceu e se criou, meio do mato, pisando manga madura nos caminhos que levavam ao açude do Careta ou ao banho no Jitó. Na serra grande, menino que era, sentia tremer os ossos das histórias de visagem que contavam na boquinha da noite. Lembro a do assobiador, alma penada que seguia os passantes pelas veredas, soltando um uivo fino até o cidadão parar e deixar alguma prenda que acalmasse o vulto.
Não nos despedimos, não nos tocamos, não conversamos sobre política e futebol, não nos enfrentamos, tudo ficou por ser feito. Ao chegar em casa, em um vinte e três de maio, o rádio desligado, os sapatos ladeados sem a lama da rua, as cadeiras de ferro recém-pintadas postas gentilmente num canto de sala. Faltaram os pacotes coloridos, esses mesmos que me garantiram brinquedos e livros, e, por uma vez que fosse, acalentar seu grisalho mundo, para devolver o sorriso que sempre lhe coube tão bem.

Libertinagem

- Atrapalho?
- Não, pode entrar... fique à vontade!
- Então, como faz?
- Paga antes.
Apartamento 204. O corredor dava para uma janela, mais nada. Dos quartos, vozes, choros arrastados de crianças, um programa de tevê. A imundície das coisas, o corrimão enferrujado, os azulejos riscados, números, palavrões, desgovernou-se por um tempo, mesmo assim decidiu tocar a campainha.
O prédio ficava em uma avenida movimentada. Deixou o carro longe, reparou as lojas, ninguém conhecido, o peso dos quarteirões, as gentes nas calçadas, o mendigo não lhe estendeu a mão, a inquisição dos olhos. Passou do local, perdeu-se entre os números, percebeu o erro, deu meia volta, parou em frente. Tateou os bolsos, não achou os cigarros, deu-se por vencido, excitou-se, um bar perto, cigarros, uma dose, de volta ao ponto, prédio alto, 204, sem portaria, qualquer um entraria, uma pocilga.
Perseguido por um calor insuportável, parou numa banca de revistas, pediu uma água mineral, o jornal do dia. Nos classificados, empregos, apartamentos, acompanhantes, uma barbaridade, cobrar por sexo, tantas mulheres, uma delas, morena, casada, liberal, não deve ser verdade, uma mulher casada, fazer o que o marido não faz, e se não faz deve ter seus motivos, ao menos deviam conversar, não vem ao caso, o que diz no anúncio é que a mulher é casada, um vulcão na cama, carente, ferida, vingativa. O carro estava um forno, mulher casada, ligar não custa, três toques, deveria estar ocupada, voz doce, chamativa, suspirava, parecia estar com alguém, o calor aumentava, ouviu dela uma intimação, tinha que saber quem era.
Antes do costumeiro, juntou o necessário e saiu, que já não cabia na casa. Se algo o protegia, muito mais que isso era o mundo que o cercava, enjoativo, insosso, de jogar uma pedra no abismo para saber a profundidade e nada, nem um sussurro que o fizesse renegar o que está escrito, descer da cruz, constituir família, morrer de velho. A dimensão de todas as coisas desfazia nele a mínima possibilidade de crença, que todos os homens, em maior ou menor grau, são essencialmente maus, retalhados, e é nesses retalhos que se resguardam, mostram-se limpos quando estão desgraçados de berço. Desde menino acostumara-se à traição, à crueldade das mentes lancinantes dos pequenos – ainda que não fosse um incapaz, um inválido, pousava-lhe um aleijão, um temeroso estigma de fraqueza que percorria seu íntimo, atribuindo-lhe uma honestidade que facilmente se confundia com fraqueza. Precisava ser tão ruim quanto o seu tempo, tão intenso quanto tudo que lhe doía, mas a ele faltava o cacoete dos que de cedo rompem com o mundo e decidem ser juízes de todas as coisas. Descobrira isso tardiamente, e as horas o abandonavam, e as pessoas há muito queridas esfacelavam-se. No carro, segurando com firmeza o volante, decidiu que era tempo de fazer alguma coisa por si mesmo.

asas e lixo

Os meninos curvavam-se para colher latas no monturo. Os outros eram cegos, olhar branco, e com voracidade engoliam os restos de um cão, um pequinês. A ninhada seguia, fingia que as latas eram um tipo de arma: espocavam tiros de mentira, caiam uns sobre os outros como se morressem, para em seguida ressurgirem mais fortes e com revólveres mais potentes.
- Toma, ladrão...
O pobre cão não tinha a mesma sorte. Morrera de vera, sem a misericórdia de um faz de conta. Sem perceberem, um estranho ritual aplicava-se àquela brincadeira, e toda a bestialidade do baixio, fétido de fome e escarro e excrementos, dava lugar a uma espécie de renascimento. Ao pino do sol, os moleques, já desarmados das latas, começaram a grunhir, encolhidos, espojando-se no lixão, contorcendo-se como se buscassem sair de um casulo imaginário. Em súbito, o mais novo, de costelas salientes, sentiu a pele romper, fazendo surgir um par de membros alados. Os colegas aos poucos passaram pela mesma metamorfose. Todos eles agora tinham asas. Entreolharam-se com espanto, mas logo deram conta do que podiam fazer. Um deles, o de cabelos verdes, passou a sacudir as asas com força, erguendo com facilidade seu corpo sem peso, alçando um vôo raso pelo lixão. Vendo que aquilo era bom, os pivetes seguiram a orientação, e o céu agonizado escureceu de meninos alados a quebrar o silêncio dos que se alimentavam das carnes do cão pequinês.
- Vai, galinha...
Tomaram o rumo da cidade de asfalto, e brincaram de esconder nas sacadas dos altos edifícios. Os passantes das avenidas não criam na cena. Uns buscavam paus e pedras para proteção, outros erguiam câmeras para registrar o ocorrido. Os meninos alados, sentindo o medo das pessoas, voaram baixo para roubar-lhes os pertences, e invadiram casas, lojas, levaram o que puderam. Saltaram para dentro de um restaurante, que a fome apertava, e de lá só saíram quando nada mais havia para devorar. Um deles, o de asas tortas, recomendou cautela, que não se mata a fome do mundo num susto. Os outros acataram. Assim, retornaram ao lixão, onde os cegos ainda farejavam em desespero algum outro cadáver de cão.
Pousaram leves no topo das árvores e de lá observaram o balido dos que tinham fome e não sabiam voar. Sem culpa, dormiram tranqüilos, na certeza de que não mais viveriam no lixo. Um deles, o de olhos amarelados, sonhou com um imenso campo de margaridas. Os demais sentiam o sangue rasgando a garganta.

Restos de tempo


Num dos calçadões mais movimentados, uma pessoa estanca. Todo um fluxo de gentes, todo o comércio local, todas as pressas, nada impele a vontade súbita de parar no meio do movimento, entre pacotes e compromissos inadiáveis – um gesto involuntário, inusitado, que não se espera que aconteça durante a sonâmbula coreografia dos milhares que se espremem nas calçadas de um centro de cidade no horário comercial. Entanto, aquele ser ousa fazê-lo, desafia o ritmo frenético do quase meio-dia, descarregando seu olhar sobre os estranhos, reconhecendo-os, amando-os, devolvendo a eles o paradoxo necessário, numa afronta heróica, um compromisso com os que, no íntimo, ousariam o mesmo, se não estivessem mortos.
Do outro lado, um garoto de traços impressentidos, escolhido entre os milhares, corpo azulado da quentura, delineia-se pelo olhar do outro, que àquela altura se entrega à doçura do menino, de mesma alma tentacular. O reflexo dos óculos, a cada breve insinuação, clareia o rosto do pequeno, estatelado no mesmo ângulo de calçada, admirando a atitude daquele que, por indolência, desencadeara o mais preciso de todos os processos de desumanização. Uma vez mais experimenta o carinho estatutário dos minutos que precedem a concepção. A sensação de zelo, nutrida pelo olhar de um ser posto imóvel a observá-lo, trazia-o de volta a uma espécie de ventre, instante morno de uma euforia única, enquanto se sabe ou se quer observado, redesenhado pelas vistas atentas de, até pouco tempo, um simples passante, um insano que havia encontrado um mecanismo singelo para a mais abominável das afrontas, um ser que simplesmente decide, menos por anarquia que por imprecisão, mudar o destino de todos os homens.
Na calçada, uma revolução segue – de um lado, um ser alheio às indiferenças torna-se par de todas as coisas; de outro, um garoto resguarda as dores dos que por ali se esbarram. Assim, ser e coisa se fundem, e a lama respinga no rosto do menino, sempre de gestos filiais, desses que se reconhecem por instinto, sem amabilidades nem dramas. A calçada percorre-lhe o corpo, e as pessoas passam por ele, atravessam-lhe a carne, desfazem-no em milhares de passos que, no ir e vir, se tornam movediços. Por certo, não haveria motivos para outro contato, que não o da cumplicidade, o da revelação – princípio de todos os gozos. No temporão das horas, a certeza de que, em outro lugar, com outros igualmente estranhos entre si, a mesma prece se instalava, dividindo o mundo, interrompendo tudo que foi estabelecido para dar ao homem o necessário.
Em súbito, o telefone celular vibra no bolso.
- Alô!
- Pai?
- Diga, filho!
- Não esquece o gibi que prometeu!
- Pode deixar, já comprei...
- Já está vindo?
- Agora.
- Então, até já.
O garoto já não está mais lá. Em tempo, a mansidão das seis horas.

Texto para a visita da Morte...

Noite alta. Chuva fina de enregelar qualquer tentativa de sono, cigarro para fumar entupindo a sala de remorso, uísque pelos seus dois dedos de vontade. A isso, junte-se o desejo de dizer coisa com coisa, de espernear nas verdades alheias. Presto, um momento niilista e surreal, a despeito dos que se metem a físicos.
Num cruzar de pernas ou no meio alívio de um suspiro, chegou-se, indiscreta como em todos os tempos, irreconhecível por evitar carícias vazias. Branca, trajando um véu tênue, fitou-me com transparência, como se enxergasse as dores do mundo em meus olhos. Com um leve balançar de cabeça, tornou-se dona de tudo que eu tinha. Sentou-se, que a cadeira, àquela altura, já lhe pertencia. Fitou-me com aflição, dedos entrelaçados, pousados estrategicamente junto ao queixo. Olhos atentos, sublinhados, riscados de serenidade, num quase carinho que me fazia rir, tal o paradoxo.
- Que passa?
O cigarro acabara. O tempo, que sempre se negava, corria para trás – não reporto ao relógio, há muito derretido, mas à sensação de que os ossos enrijeciam, os cabelos retornavam ao saudoso posto, os dentes reembranqueciam, as coisas estranhamente tornavam-se mais simples, sem pagas ou cobranças.
- O de sempre.
Mostrou-me os dentes, esfregou o nariz, tateou o criado-mudo à cata de um cigarro, que em afronta pousou na boca, como se dali jamais houvesse despregado. Esticou as sobrancelhas, esperando de mim o gesto involuntário do sacar o fogo, coisa que só fumante profissional entende.
- Eis.
- Grata.
- Que pretende?
- Visita.
- Breve?
Riu. Seu ramo não lida com brevidades. De tanto chegar, não me causava espanto, ao contrário, dava-me sono. Temia por não temê-la, por sentir, de alguma forma, o calor de sua intimidade, que insurgia contra aquilo que a mim impunha um ar de soberba ou solenidade. Sequer seu corpo frio, cuja essência erguia-se histórica, acrescentava algo àquele momento. Mesmo sua pele enrugada, encaroçando as paredes, fazendo escorrer na poltrona um fétido odor esverdeado, tecendo pelo olhar o frêmito de todos os que, por ingenuidade, tentaram fugir dela, mesmo isso não me tirava a certeza de que, diante de mim, aquele ser feérico ancestralizava-se.
- Chegou a hora?
- Chegou a hora.
- Chegou...
Assim, às três da manhã, cumpri minha sina, entrelaçado àquela que, ainda no ventre, apadrinhou-me.
- Posso ao menos beijar meu filho?
Riu. Nunca compreendera sentimentalidades. Amara uma única vez, mas foi obrigada a desacreditar, atraiçoada pelo próprio ofício.
- Não? Ao menos posso terminar o cigarro?
Há muito o cigarro não existia. Ela nunca me interrompeu, não seria agora. Acendi o toco, duas ou três baforadas, e fim. Senti-me só pela última vez.
- Pronto?
- Pronto.
- Para onde vamos?

As três imagens


Os braços amolecidos da pequena escorriam, e uma cegueira involuntária aplacava a ira da mãe. O primeiro desejo foi o de rasgar as cortinas, atear fogo. No entanto, apenas baixou a vista em direção à poltrona no canto do quarto. Simulou uma última conversa com a filha, que tinha agora quinze anos. Recomendou-lhe cautela, pediu que não voltasse tarde, franziu a testa ao ouvir da menina que já não era mais criança para tantos cuidados. A lâmpada acendia e apagava. Selecionou algum ponto obscuro entre os ponteiros do relógio, encontrando as horas em um movimento leve. Os dedos da menina, tão parecidos com os do pai.
As enfermeiras marchavam no corredor. Se casasse, seria em julho. Aproveitar as férias, mais tempo para a lua-de-mel. Um dia antes do casamento, descobrira a gravidez. Existia entre elas, mãe e filha, uma tênue partitura, desgastada por certo, mas ainda precisa, aprumada. Como toda mãe, amava de forma indelicada. Destemperava-se ao menor sinal de intimidade por não saber o caminho – nem mesmo se buscasse em outras eras, nem se reouvesse as páginas do antigo álbum, saberia como lidar com aquele nariz gelado roçando-lhe a face. Era menina de novo. No telhado, escrevia o diário. Domingo, quase não resisti quando Carlinhos chegou ao catecismo, estava uma coisa, nem me atrevi a sentar perto dele, muita gente, muita mesmo. O pai é que insistia para saber o que tanto a menina escrevia. Um insensível. Quem revelaria segredos tão íntimos ao próprio pai? Torceu o corpo em direção à mesa de cabeceira. Cartões de melhoras, restos de comida. Um belo quarto, afora as rachaduras no gesso do teto. O médico finalmente chegou.
A mãe permaneceu presa ao ventre da filha, num movimento agônico de retorno. Atravessou o corpo frio da menina, sentiu os tumores, a medula, o cérebro. A viscosidade enojava. Rugosos, sólidos, quebraria o espelho e a vidraria da janela. Belo quarto, com vista para o parque botânico, estaria lá a filha, remoçando todas as idades, apelidando as pessoas que passavam, gostava disso, não via maldade, ou, se via, era branda, comedida, de criança. Outra enfermeira, avermelhada e seca, trouxe-lhe um copo de água com açúcar. Os sedativos faziam sua parte. A última cena foi a da filha, seis anos, carregada para longe. Contraía a mão, o corpo da pequena amolecera de repente. Gritou que socorressem, mas em vão, esquecera de quebrar os espelhos do quarto, a menina seria capaz, agora a mãe, em último caso, apenas empurraria os cacos para debaixo da cama.