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domingo, 24 de novembro de 2013

Porvir


ainda não compensei os convites ausentes,
tampouco estanquei o desejo irrefreado de vê-la invitar-me,
não percorremos caminhos interioranos
nem comparei à piçarra molhada sua pele morena;
ainda não olhamos atentamente o mar, embevecida e demoradamente,
sequer admiramos o ocaso ou deitamos vista sobre o oriente;
não desenredamos todas as curas, também não curamos todas as exegeses;
ainda não a vi afligir-se de cansaço
nem lhe dei a oportunidade de partir em paz;
não recordamos o suficiente, sequer apuramos o tempo da memória;
ainda não viajamos, não cozinhamos juntos, não desenhamos coração no pulso,
não pusemos cria no mundo, não nos abraçamos no dia do aniversário,
não nos despedimos com um volte logo, não nos cobramos presença,
não perdemos por completo a formalidade;
ainda não preenchemos os vazios, não lemos poema de Quintana
ou nada compusemos a quatro mãos, a não ser o futuro;
não nos beijamos sob as luzes de artifício do réveillon,
não segredamos dores, não assistimos a um casamento,
não adormecemos ao som de "Eu te amo";
não acariciamos as paredes recém-erguidas de nossa casa,
não nos amamos na chuva, em noite de quintais.
Ainda não nos convencemos dos contrários
nem desacreditamos da imanência dos acasos;
não tomamos vinho tinto, não mergulhamos com golfinhos,
não viajamos a Paris, não nos preocupamos com as horas navalhadas;
ainda não perdemos as comparações, não arrefecemos o ciúme
ou adestramos a saudade;
não recebemos a visita dos nossos, não dançamos sozinhos no meio do salão,
não montamos álbum de retratos, não fomos ao cinema,
não trocamos carícias diante dos amigos,
não nos presenteamos no Natal;
ainda não ouvimos estrelas, não pintamos nosso quarto,
não nos queixamos das ausências, embora breves;
não levamos um filho ao hospital, não combinamos surpresas,
não adivinhamos frases, não experimentamos as dores alheias,
não tememos o dia seguinte
nem perdemos a fé;
não noivamos, não casamos,
não penduramos na parede da sala de estar
a fotografia de família;
ainda não assistimos a uma apresentação de Alceu,
não cultivamos orquídeas,
não desacreditamos das flores,
não choramos o suficiente;
ainda não tomamos café na cama,
não passamos o domingo no aconchego de uma rede;
ainda não nos livramos dos vícios,
não nos precipitamos no abismo,
não saltamos de paraquedas,
não despressurizamos a cabine,
não nos esperamos no aeroporto,
não arrepelamos as últimas farpas,
não tomamos sorvete de cupuaçu,
não nos medimos a temperatura,
não nos arrependemos de nada;
ainda não permitimos derrotas,
não apadrinhamos ninguém,
não experimentamos as alianças,
não tememos as vias escuras;
ainda não entendemos como o tempo,
tão escasso, tão magro,
existe em função de tudo
que ainda não foi realizado.  

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