Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Feliz Ano Novo


          Noite de reveillon. Centenas de pessoas reunidas à beira-mar. Principia-se uma estridente contagem regressiva anunciante do ano novo.
          10. Um homem distante, renitente, desnudado pelo clarão dos fogos, gira em êxtase, desencontrando seus pares, sacolejando a garrafa de sidra, asprejando com o mundo vermelho e cinza que o comprimia, retomando as dores, o câncer, a quimioterapia, fugira do hospital por algumas horas, o senhor não pode beber, faça o que fizer mas nada de bebida, tolice, o mundo gira, os fogos inebriam, a vida desliza pela garganta suavemente, tem sabor de maçã, tem gosto de irmã, a mãe preocupada, e quando não foi?, os abraços, quem o abraçaria, está só, há muito o tempo o abandonou, eis o desafio, fazer as pazes com os ponteiros, danem-se, o mundo é uma girândola, a música, tons e mais tons, tudo se torna rápido demais, ele cai, e sorri, sorri por tudo que ainda sofreria, sorri pelo que resta, ninguém perceberia sua presença.
            9. A pequena perdera-se dos pais. Um instante para alguns cumprimentos, e a menina simplesmente desapareceu naquele mar branco de gente e areia. A pobrinha chorava. Pela primeira vez, experimentava o abandono. Não sabia o que fazer, estava pálida, derramava-se em desespero. Ninguém a percebia. O barulho ensurdecedor dos fogos abafava-lhe o choro. O vestidinho branco servia-lhe de amparo. Encolhia-se toda dentro dele. Estava só, perdida em um mundo de hienas gritando e rodopiando. O céu, quase sempre hospitaleiro para ela, recheava-se de luzes que hipnotizavam a multidão. Quem a notaria debaixo de tantas cores e formas? Ela chorava cada vez mais alto, tentando chamar a atenção de alguém. Em vão. Os fogos. A música alta. Os gritos. Ela preferiu silenciar. Acocorou-se. Mirou o mar. Que breu. Um homem com uma garrafa de sidra caiu ao seu lado. Todos celebravam. Apenas ela, uma chispa em meio ao fogaréu, teimava em sofrer. Decidiu esperar tudo acabar. Prendeu o choro e mirou as cores que distorciam o céu. Aquilo não seria para sempre.
            8. A primeira vez que passavam juntos um reveillon. Abraçavam-se com volúpia. Os dedos marcavam a pele. O cheiro forte dos perfumes, a camisa encharcada de suor, os clarões. Quero dizer algo muito importante. O hálito morno no ouvido. Você me ama? A resposta veio com os olhos e um gesto. Ficaria comigo, enfrentaria tudo? Novo gesto. Estou grávida. Melhor não ter ouvido. Exigiu confirmação com um ríspido movimento de cabeça. Estou grávida. De repente, não havia mais fogos estalando. O tempo de celebrar havia acabado. Não esboçou reação. Deixou-se estático, enquanto ela descobria o valor do silêncio. 
          7. O cãozinho desabou na carreira. O barulho dos fogos, das gentes entorpecidas, tudo era ensurdecedor, zunindo nos ouvidos do bicho, desafinando-lhe os sentidos. Se pudesse falar, certamente esbravejaria contra aquele mundo torpe de humanos sem direção. Tantas pernas por desviar, tantos pisões. Corria sem rumo, fugindo da iniquidade daqueles seres. Disparou pela avenida, sem notar a moto que o espalharia pelo asfalto. Mais um cão morto. O motoqueiro parou por um segundo para avaliar o cadáver, mas logo o clarão dos fogos chamou-lhe a atenção. Que noite linda, pensou. 
           6. Um homem delirava, teimava em mergulhar, queria chegar mais perto das cores, dos clarões. A família o desencorajava. Homem feito, deixe fazer. Mas ele bebeu, bebeu muito. Que seja, ficamos de olho. Ele foi, sob o olhar protetor dos seus. A água enregelava os ossos. Os fogos estavam próximos, esticou-se para apanhá-los. Descuidou-se. A família já não o encontrava em meio à escuridão das águas. Um dos irmãos tentou mergulhar. Escuro demais. Basta um para procurar. Vez em quando, um clarão. Nenhum movimento na água. Ele deve estar bem.
           5. A contagem proseguia. Um jovem, de rosto encoberto pelos cabelos lisos, destoava. Dentre tantos que festejavam em trajes tradicionais, ele surgiu de preto, como um oásis diante dos olhos cansados do mundo. Pôs-se estrategicamente diante do palco. Sacou de um revólver e deu dois tiros para cima. Nada. Todos em êxtase por causa dos fogos. Ele gritou. Enfiou o cano da arma na boca e disparou. Poucos notaram.
           4. O velho criava coragem para dizer a todos que iria fazer uma viagem. Sozinho. Não suportava mais o asilo, apesar de ser bem tratado. Sentia falta da liberdade. Vinha-lhe à memória os tempos do exército, as viagens, as condecorações, os aplausos orgulhosos dos filhos ainda molecotes. Sentia-se um fardo, algo a ser descartado. Não queria morrer assim. Papai, não beba, o senhor tem que ir cedo para casa. Casa? O que faz de um lugar qualquer nossa casa? Faltava-lhe o amparo familiar. Todos gostavam dele, mas sua presença aborrecia de alguma forma. Sentia-se uma espécie de cartão de visitas da morte. Ninguém quer um velho estorvado dentro de casa. Achou por bem não contar sobre a tal viagem. Apenas faria. Sorriu para todos. Deixou que a música e os fogos penetrassem seus ossos.
          3. Amigas de infância, inseparáveis, cúmplices. Dividiam os mais íntimos segredos. O primeiro beijo, a transa furtiva na festa, as brigas com as rivais da escola. Os fogos avermelhavam-se. Um abraço longo selou o compromisso de amizade eterna entre as duas. Uma delas tomou a iniciativa de um beijo. A outra esquivou-se enojada. Que foi? Melhor procurar meus pais, devem estar preocupados. E saiu, limpando dos lábios o gosto da amiga.
          2. O mestre de cerimônia mirava aquele mundo de gente. Não mais suportava tamanha mediocridade. Queria estar em casa, tomando conta de seus cachorros. Estava ali por obrigação. Precisava do dinheiro. Era um pessimista. Tanta celebração para nada. Mais fome, mais miséria, mais violência. É isso que comemoram? Pensou em dizer tudo isso no microfone. O dinheiro é bom. Melhor dar prosseguimento à contagem.
          1. Uma ligação. Não se ouve nada. Ele já estava fora de casa há um mês. Deixou a mulher grávida. O trabalho o obrigava a fazê-lo. Procurou um lugar mais calmo. Nada. Muito barulho, em todos os lugares. Correu para detrás do palco. Menos gente. Conseguiu ouvir alguma coisa. Sua mulher. Que tem ela? Sua mulher. A ligação interromia-se a todo instante. Que tem ela, pelo amor de Deus? Sua mulher deu à luz. Um menino. Sua cara. Ele não se conteve. Gritou. Pela primeira vez, sentiu a alegria de um ano novo.
           E quem ali estava chorou, sorriu e cantou. Era tempo celebrar a chegada de um novo ano.

domingo, 25 de dezembro de 2011

TRÁGICA ANEDOTA NATALINA


        Véspera de Natal. Sinal fechado. Trânsito caótico. Uma mulher no conforto de seu automóvel foi abordada por um menino. O olho do pequeno estirou-se. Nada de mais, senão pelo fato de o garotinho andrajoso arfar e latir, simulando um cão.
         - Que gracinha de cachorrinho! 
         - Moça, me dá um trocado de Natal?
         - Claro! Pegue...
         O menino já mirava outro carro, quando a mulher, sem resistir à curiosidade, indagou:
         - Por que a imitação de cachorro?
         - A moça tem cachorro?
         - Sim.
         - Quantas vezes ele come por dia?
         - Três.
         - E quando ele fica doente?
         - Levo ao veterinário imediatamente.
         - Ele dorme na rua?
         - Não, dorme em um colchãozinho térmico.
         - Quantas vezes a moça já bateu nele?
         - Nunca.
         - E a moça ainda pergunta por que eu quero ser cachorro!
       O menino sai correndo à cata de outro carro. Arfava e latia como nunca se viu. Satisfeita a curiosidade, a mulher cumpre seu destino. Toda criança, pensa ela, devia imitar cachorrinho. Fica bem mais fácil ganhar trocado. E ela se vê inundada pelo espírito de Natal.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sobre todas as infâncias

          
            Que coisa é o tempo. Tantas páginas em branco jogadas de lado, sem sequer um rabisco. Neste exato momento, meu filho cantarola alguma coisa sem nexo, uma musiquinha enfadonha de algum desenho animado japonês. E eu aqui, escrevendo sobre ele. Acabei de convidá-lo para darmos uma volta por aí, ver coisas e pessoas. Quando eu tinha a sua idade, a uma hora dessas estaria me esbaldando pelas praças, correndo feito louco atrás de uma bola. É que não tínhamos computador, internet, celular. Aliás, ninguém tinha. Tudo isso só virou coqueluche muito depois. Computador portátil dentro de casa era invencionismo hollywoodiano, nada mais. Para nós, pelos áureos doze anos, bastava o cheiro fresquinho de liberdade, manhãzinha cedo, domingo.
          Eram demais as presepadas que aprontávamos. Certa vez, por desafio, armaram que eu deveria encarar um terreno baldio que ficava na rua onde morávamos, plenas e longas onze horas da noite, sem lanterna nem vela, ir até os fundos do terreno, onde dormia um pé de mamona, pegar um cacho de mamonas e contar todas as vantagens do mundo. Foram os cinco minutos mais assustadores da minha vida. Outra foi quando deram de subir a velha caixa-d'água da praça do Conjunto Polar. Uma bela escalada, pelos seus quinze metros. Lembro que, no meio da subida, minhas pernas amoleceram. Uma cãibra. Eu era o terceiro da fila de intrépidos alpinistas de praça, mas havia uns quatro depois de mim, que estancaram comigo, ao menos até recuperar os movimentos. Por fim, nada de mais aconteceu e fincamos bandeira no alto da velha caixa-d'água. Descemos duas horas depois, tempo considerado suficiente para tomar coragem. 
         E como brigávamos meus camaradas e eu. Cães e gatos. E que capacidade tínhamos de regenerar nossas amizades. Se discutíamos ou mesmo chegávamos às vias de fato, seguíamos o manual de sobrevivência. Primeiro, chorávamos, porém sem demonstrar dor, pois homem não chora por dor, mas por raiva, fúria ou desejo de vingança. Segundo, mesmo com vontade de matar um ao outro, os brigões não podiam sair cada um para o seu lado: tinham que ficar ali, impávidos, feridos, esperançosos de que o outro tomasse a iniciativa das desculpas. Terceiro, alguém da turma tinha que puxar uma conversa diferente, descontraída, que fizesse esquecer o espisódio burlesco da briga. Por fim, na medida em que todos estavam imbuídos de novas distrações, buscava-se uma outra brincadeira e, voilá, como num passe de mágica, eis os recém-desafetos conversando, rindo, brincando como amigos que nunca deixaram de ser. Essa é a melhor receita de perdão que pode existir. Creio que, quando nos tornamos adultos, uma das primeiras atitudes que tomamos é rasgar essa receita.
         Não tenho mais contato com os amigos da época. Sumiram no tempo ou na memória, se é que há justeza nessa distinção. O pequeno Totonho, negrinho marrento, nosso cocheiro-mor, que todo final de tarde emprestava do irmão carroceiro a nossa carruagem oficial, e seguíamos pelas ruas, senhores de tudo, como nos velhos filmes de capa e espada. O terrível Claudionildo, o louco, um estraga-prazeres, que se vangloriava de bater em todos da rua. Certa vez, organizei um levante contra a sua tirania. Nove moleques contra um. Entanto, na hora h, todos deram no pé e sobrou para mim. Apanhei. Mas sempre acreditei que as verdadeiras mudanças são filhas das grandes mobilizações, mesmo sabendo que as consequências disso podem ser alguns hematomas. O inesquecível Jean, um companheiro sem igual, de uma solidariedade ímpar. Foi com ele que aprendemos que as pessoas que amamos não são eternas. Jean morreu por conta de uma leucemia. Estivemos em seu último aniversário. Ele sorriu muito nesse dia. Sem falar da esperteza de um Augusto e suas ideias descoladas, da ingenuidade de um  Rogério e suas gafes históricas, da boa-pinta de um Gilberto e seus indefectíveis olhos claros. Tantos. 
            O tempo passou. E o pior é que, com ele, todos aqueles amigos também se foram, de uma forma ou de outra. Meu filho está aqui, ao meu lado, perguntando sobre o que estou escrevendo. Não sei o que responder. De certa forma, não escrevo sobre mim, mas sobre tudo que se pode resgatar nesse mundo, sem a obrigação de um mouse ou de um modem. Sinto falta das velhas traquinagens. Não espero, é claro, que meu filho invente algo tão perigoso quanto escalar uma caixa-d'água. Mas, se fizer, que se torne uma lembrança tão boa quanto as que trago comigo hoje.  

domingo, 13 de novembro de 2011

Apenas uma carta

         
            Fortaleza, ... de ... de 2011.

            Caríssimo ...,

            Calma, isto não é um anúncio publicitário. É uma carta mesmo. Um carta, algo tão antiquado quanto curso de datilografia. Não, não é nostalgia, ou talvez seja, afinal, você me conhece, sou daqueles aficionados em velharias, colecionador de vinis, vasculhador de raridades cinematográficas. Sei que podia apelar para o providencial "e-mail", que não deixa de ser uma carta, mas o meio virtual não tem o mesmo charme, creio. Os tempos mudaram, e o glamour da carta se esvaiu. Antigamente, esperava-se ansiosamente o grito do carteiro. "Correio". Era uma festa. Cartinha da mãe, notícias do filho, fotos dos primos recém-nascidos, fofocas daquela cidadezinha há muito esquecida, palavras de amor. Tudo cabia em uma carta. Hoje o carteiro não grita mais. Não há necessidade de alarde para receber contas ou reclames. 
             Quer saber, não sei por que resolvi escrever esta carta. Talvez por não aguentar mais essas respostas imediatas e vazias impostas pela modernidade. Será que alguém ainda sabe o que é esperar? Nos bons tempos da comunicação epistolar, se enviávamos uma carta para ter notícias sobre o estado de saúde de alguém, depois de vinte dias ou mais recebíamos a resposta, o que, nesse caso, não era muito interessante, pois, em geral, as doenças menos sérias não são tão persistentes. E as velhas cartas dos admiradores secretos? Era assim que o amor, muitas vezes, principiava. Que frio na barriga, que vontade de ler e reler várias vezes aquelas palavras elogiosas, vindas de sei-lá-onde, das novelas ou das fantasias hollywoodianas. E o amor surgia, em contagotas, depois de inúmeras idas e vindas para se descobrir o autor das tão aguardadas cartas. Com o imediatismo que existe hoje, agir assim, com paciência e precaução, seria um sinal claro de desinteresse. As relações amorosas aderiram à era da banda larga, seguindo na velocidade dos milhares de bytes e pixels, e não me parece certo que, depois de dois ou três cliques, sem o menor vestígio de presença ou pele, haja vontade de rasgar todos os véus das sentimentalidades, ao cúmulo de acachapar-se com a entorpecência dos eu-te-amo. 
              Sou de cartas, das que comovem pela lentidão, das que destronam pela insitência, das que inquietam pela demora. Aliás, amigo velho de guerra, se quiser me contactar, é favor fazê-lo por meio de uma carta, recheada de notícias fresquinhas e vagarosas, feito pão matinal de domingo. Prometo que lerei várias vezes e guardarei com carinho cada palavra arremessada. Talvez, um dia, recebamos uma carta de amor. Já pensou? Um papel pefumado, uma letra rodopiante, quase melódica. Ali, da forma mais antiga possível, descansariam as melhores palavras que a limitação humana poderia conceber. Os amores de outrora eram mais precisos e resistentes, pois nasciam do inesperado da frase escrita, da admiração pura pelo ardil literário de um amor distante, mas não ausente. Tive poucos amores, e, de cada um deles, quase nada ficou. Eram possíveis demais. 
               Sabe por que as coisas acabam? Porque as palavras se findam. Sem elas, nada sobrevive. As cartas não são diferentes. Chego ao fim por não ter mais o que dizer. Desculpe-me por evitar as frugalidades. Apenas tentei fugir da frialdade de um "tudo bem?", um "espero que esteja com saúde" ou coisa parecida. É que gosto do inesperado. Não vou mais aborrecê-lo com minhas tolices. Seja feliz, que o tempo nos pertence, e, a cada volta nos ponteiros, um pouco de nós fica para trás. O que estanca a ganância do tempo é a alegria. 

               Com carinho,

               x x x


           

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

distração


se me falta teu cheiro, é que não decorei teus traços de noite aberta;
falta, por certo, tua voz, a de tantas desditas roucas, que de tuas palavras nada restou, senão respingos e uma fiada de gírias que muito pouco me diziam;
ainda me falta o olho de cão, esperto em cio, que do que miravas não me recordo, mas sei que eras distante, tanto que teu mirar redizia o itinerário das naus: querias o mar e mar não havia!
falta-me o êxito das promessas arremessadas contra as inúteis desesperanças, que gravei em teu colo o sinal da grande consoladora, e hoje crês mais em ti do que nas antigas sombras, porque te dei asas e não te alcancei no voo...
o que me foge é teu maquinal trejeito de criança arteira, pura arte ou manha, que, quando cresceste, tua imagem ganhou cores e formas abstratas e o que se tem por céu, o de Galileu, avermelhou-se por vexame e luxúria;
só uma breve rosa, pequena de doer, ainda teima, desabrochante em meio à esterilidade da memória: uma última promessa, a de que terás tua prole e teu sonhado conquistador d'além-mar, e os de tua casta verão em ti o apogeu do sangue...
quanto a mim, basta-me a rosa, não a que vejo, mas a que sempre houve, e outras virão, que roseiras tantas existem de lá para cá: em cada desabrocho, por um leve momento, todas as rosas te servirão de guia e retornarás, mesmo que não mais rosa, mesmo que apenas eu em tua forma, mesmo que nunca uma rosa houvesse.

* Texto dedicado a quem certamente não mais existe; por isso mesmo, é difícil de esquecer...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sobre todos os amores

          
          Como escrever é também, ou principalmente, tratar de assuntos sentimentais, não me posso esquivar diante da voracidade dos leitores que me exigem temáticas relacionadas ao coração. Dia desses, céu nublado pelas quinas de outubro, recebi uma mensagem de uma ex-pupila sugerindo que eu desse cabo à infame pergunta "O que é o amor?", tarefa não muito fácil, sequer prazerosa, entanto me propus o desafio de palestrar sobre amor em tempos de íntimos distanciamentos proporcionados pela modernidade.
          Que faz um ser falível, conformado com quase tudo que lhe ocorre do firmamento, crer-se indomável ao ponto de entregar-se a uma dádiva tão ancestral quanto o amor? Quem ama é resignado, tolerante com todas as falhas do ser tido como amado. O amor é o apogeu da solidariedade. Isso lhe dá um caráter divinal e, por isso mesmo, distante da iniquidade humana. Mas, mesmo assim, amar é tão necessário quanto acreditar que existe qualquer pormenor sobrenatural capaz de garantir que não somos criaturas dotadas do utilíssimo mecanismo da solidão. 
          Por certo, o ser amante, ao confundir-se com o ser amado, forja os mais ignotos e surreais planos para que, em dia de brevidades e amparos, tudo saia como planejado. Antes de qualquer entusiasmo, é preciso selecionar com cautela a figura contra quem se arremessará todo o sentimento do mundo. De preferência, que seja calminho, sem muitos rompantes, que até solte seus impropérios, mas de forma comedida, sem acordar a vizinhança. Deve também ser apresentável diante da alta sociedade novelesca, que impõe padrões retangulares de beleza, portanto, se for branquinho, lourinho e riquinho, arrefece boa parte das futuras cefaleias por conta do falatório das gentes. Não esquecer que o amor pressupõe prestação de serviços também, como uma espécie de ação social, mas para amparar apenas um ente, o amado, se é que me fiz entender. Explico: quem ama sente necessidade de demonstrar, com mimos e doces, a sentimentalidade que o acomete, e isso é maravilhoso, pois nos faz exibir a mais nobre das virtudes, a tolerância. Só amando para tolerar uma palma de mão suada, um buço de piaçaba, um olho estrábico, uma perna torta, um dente caído, essas coisas decerto banais perto da credulidade de quem se entrega à cegueira lassa do amor.   
           Não obstante o cumprimento do protocolo, é preciso poetizar o mundo. Entender os benefícios do acaso é um bom começo. Amor e acaso vivem de mãos dadas, como siameses. Nada mais instigante que um entrecruzar de olhares em tempo de calmaria, mais que suficiente para chacoalhar as descrenças, para traduzir do peito para a alma o mistério da revelação amorosa. E amar é revelar a si e ao outro, extrair de nós o que aparentemente nunca houve.
        Melhor que a presença é a ausência do ser amado, que se metamorfoseia em desejo, espera, lembrança, e como é confortante ter de quem se lembrar, não em hora marcada, mas a qualquer tempo, por um simples despertar sugerido em um cheiro, uma música, um momento de mirar fixamente um ponto qualquer. É como se, finalmente, encontrássemos o espelho ideal, que nos revela o melhor de nós, sem conceitos prévios, sem definições, somos apenas nós no corpo de outro. Em verdade, basta a mínima insinuação de um toque para que o corpo enrijeça, retomando cada momento ao lado do ente querido, revisitando as palavras ditas e inauditas. E o bom do amor é o não-dito, o que fica por ser feito, por ser decifrado. É fundamental que se deixe algo para a manhã seguinte, um suspiro novo, um tom de voz ainda oculto, uma inesperada maneira de sugerir um carinho. Somente quem ama sabe o valor do dia seguinte, do que está por vir, do que se guarda não pelo capricho de quem se acomoda, mas pela esperança de que o caminho seja revelado enquanto se trilha, e cada passo sugere a certeza do passo seguinte. 
           Sim, há nobreza no amor, apesar de ser nuvem ou onda, como diria Cecília. Sem ele, o que fazer com tantos poemas, tantas canções, tantos instintos e desejos. Aos jovens, aconselho que amem despudoradamente, que os amores vêm e vão, mas ficam os aprendizados. Aos velhos, como eu, amar talvez seja um retrocesso, uma tentativa vã de resgatar uma alma imberbe. Que seja! "Acho que não me sinto mais tão velho!" 

domingo, 23 de outubro de 2011

Sobre insônia e ausências

        
        Sinto profundo cansaço. É que quase não durmo. Na verdade, a noite me é convidativa e instiga-me a acompanhá-la, como se precisasse investigá-la ou conspurcá-la com meu vulto. Pelos caminhos noturnos, muito de mim já ficou, o tempo de todas as coisas retorna e estanca, não se consegue dormir. Encontrar a saída desse labirinto de formas e vozes não é tarefa simples. Tenho que me espedaçar para trilhar o caminho de volta. 
         Se me faltam braços ou pernas, não são os meus que exijo, mas os de que me fizeram promessas pelas vias da ternura e do encantamento, sem as burocracias de aras e altares. Redivivo, penso não ter tino para esquivar-me das ausências, insuportavelmente ausentes, comprimo a vista, estico o pescoço e busco em vão no horizonte algum vestígio que seja, como quem persegue inutilmente uma utopia. Essa é uma boa imagem. Existem pessoas utópicas.  O que são as utopias, senão sombras? À noite, deixo velas acesas, cada uma a chiar por uma sombra hesitante, cinzas em borrasca, impregnadas de pensamentos distantes, inverossímeis: utopias. 
         Um mão leve, dedos estéreis a pressentir distrações, pousa-me sobre os ombros. É uma noite larga, meu Deus, em que me desespero por nada. Passeio incestuosamente pelo ventre dos que, por muito pouco, não vieram ao mundo com o sangue que me identifica e amarga. Grito com os olhos, que lá fora me parece menos seguro, mas é no mundo do qual me aparto que residem as respostas. Preciso encontrar um pouco de paz, nem que para isso tenha que reatar as amarras do tempo, as que rompi por enfado e impaciência. Pouco me importa se os que poderiam ouvir ora dormem. São covardes, por certo. Eu não. Desafio a noite e todos os seus sussuros. Quero seus gemidos de langor, balbucios na escuridão que afluem ao pensamento. O tempo me carrega em rede de cortejo. Ouço vozes de ladainhas. Alguns rangeres são familiares, outros são meus, os mesmos que deixei para trás, sim, estão lá, no exato dia em que alguém me disse que ficaria, a despeito de tudo, entanto era mentira. A noite se contorce, as verdades adormecem.  

domingo, 2 de outubro de 2011

UTOPIA DE UM PROFESSOR QUE SANGRA


SITUAÇÃO: DURANTE UMA MANIFESTAÇÃO POR MELHORIAS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO, UM PROFESSOR ENSANGUENTADO, APÓS UMA CONTENDA COM POLICIAIS MILITARES, PEGA UM MICROFONE, PEDE A ATENÇÃO DE TODOS QUE ALI ESTÃO E INICIA UM DISCURSO EMOCIONADO.

DIRIGINDO-SE AOS COLEGAS PROFESSORES:

Companheiros, 
Vejam isto! (Segura a camisa com ênfase, de modo a destacar as manchas de sangue) Este sangue é o símbolo de tudo que doamos, diariamente, àqueles que se dispõem a aprender conosco. Ao menos assim, com as roupas manchadas de sangue, todos podem enxegar nossa humanidade, que as lágrimas e o suor que derramamos ao exercermos com afinco nossa profissão de educar são incolores. Esta vermelhidão, brotada da violência gratuita, é a prova de que não somos criaturas sacerdóticas, alimentadas de esperanças distantes, sem os pés no chão. Somos, acima de tudo, humanos, profissionais que sonham com mudanças efetivas para que haja uma verdadeira valorização do magistério. Somos brasileiros, e uma das prerrogativas de nosso ofício é crer neste país, viver por ele e, se preciso, sofrer, para que as gerações futuras não precisem lutar tanto, para que os jovens nos reconheçam não por heróis, como os dos filmes ou gibis, mas como homens e mulheres que assumiram o risco de acreditar que a educação é o princípio de todas as revoluções. Sinto dor, uma imensa e torturante dor, não pelas pancadas que levei, que meu sofrimento e o de meus pares é perene; a dor que me incomoda e atordoa vem de dentro, num sopro de arrependimento por ter escolhido ser quem eu sou: professor. Mas sei que não há motivo para arrependimentos. Sou professor porque me foi dada a missão de manter viva a chama da revolução. Somos peças fundamentais de qualquer sociedade que se proponha crescer com dignidade, respeito e igualdade social. Nunca baixaremos a cabeça, jamais esmureceremos diante da barbárie e da arrogância. Levantamos a voz em prol de uma mesma lição. Hoje, ensinamos ao país e ao mundo o que é a verdadeira democracia; hoje, desmascaramos tiranos; hoje, revisitamos os inglórios tempos de 68, quando a juventude mundial mostrou que não era apenas um mero joguete nas mãos dos poderosos; hoje, sentimos na pele a essência da palavra PROFESSOR (pausa para enxugar as lágrimas, misturadas ao sangue que lhe escorre da testa). Que todos tenham aprendido conosco essa lição, e que se juntem a nós educadores, pais, filhos e todos que, de uma forma ou de outra, já se sentiram marcados pelas palavras de um professor. Tenhamos orgulho de ser o que somos. Se um dia o mundo, depois de uma catástrofe natural ou humana, tiver que recomeçar, estejamos certos de que isso não ocorrerá pelas mãos de um político ou de um burocrata. Nesse momento, todos clamarão por alguém que ensine a dar novos passos, com sensibilidade, firmeza e criticidade. Enquanto houver professores, o mundo terá a oportunidade de renascer. Ai do país que agride seus professores. "Se você acha a educação cara, experimente a ignorância" (o professor se dirige agora aos policiais que o agrediram).

DIRIGINDO-SE AOS POLICIAIS:

Amigos policiais,
Sei que cumprem ordens, mas percebo no olhar de vocês a mesma gana de luta, a mesma indignação que sentimos agora. Larguem suas armas, seus cacetetes, seus sprays de pimenta. Ergamos a mesma bandeira. Procuremos os reais inimigos, aqueles que, a esta altura, devem estar fechados em gabinetes climatizados, tomando uísque importado. Pensem nos seus filhos, e nos filhos de seus filhos. É essa a herança que pretendem deixar? É assim que entrarão para a história? Como algozes de professores? Escrevam sua própria história, meus amigos. Juntem-se a nós. (Alguns policiais largam suas armas e se misturam aos manifestantes, gritando palavras de ordem). 

DIRIGINDO-SE AOS ALUNOS:

Caros alunos,
Onde vocês estão? Venham conosco. Esqueçam por um minuto a segurança da virtualidade e gritem. Rasguem suas gargantas, sangrem também, pois é tempo de luta. O que vão conseguir? Cicatrizes, lembranças, amizades, vitórias e derrotas. Vocês serão o assunto da aula do dia. Gritem liberdade. Defendamos com todas as forças a educação brasileira, que depende tanto de vocês, como de nós. Mostrem a todos que há tempo de aprender e ensinar. É o tempo de aprender com vocês. Venham.

AOS FUTUROS PROFESSORES:

Que este sangue respingue em cada um de vocês e deixe marcas profundas, para que todos entendam que não há ofício mais imperioso, mais enfadonho e, a um só tempo, mais essencial, que o de professor. Os que pensam em desistir, façam, pois jamais seriam bons professores. Os que têm dúvida, desistam também. Apenas aqueles em cujas veias pulsa um sangue verde-amarelo, apenas os que se comovem com a fome, a miséria, os que se indignam com a corrupção e a falta de ética, apenas esses devem seguir, que serão educadores essenciais e transformarão a vida de cada aluno. E nunca morrerão. O olhar e a memória de nossos alunos não nos permitem morrer. 
(O professor, já sem forças, senta-se um pouco. Prestes a desfalecer, ergue com dificuldade o braço e conclama a multidão a gritar)

NOSSO ORGULHO É EDUCAR!



domingo, 25 de setembro de 2011

Sobre ficar velho...


          Estou ficando velho, e não há nada de extraordinário nisso. O problema é que estou me sentindo velho, e isso é preocupante. O fôlego não me apetece como antes, já não exercito a tolerância com a mesma habilidade, sinto-me preguiçoso, acomodado, alvo fácil de punguistas e manipuladores. Detesto espelhos. Por isso mesmo, não os tolero. São como lâminas em brasa causticando feridas antigas, mortificando cada filete de memória que se espalha pela retina.
        Por certo, as coisas não são tão cruéis quanto se pinta. Mas como acreditar nisso sem parecer tolo, sem tirar o véu daquela ingenuidade desnecessária que fazemos questão de ocultar para que as pessoas admitam nossa humanidade? E o que deveríamos fazer? Sucumbir? Renovar? Que tal a velha e providencial espontaneidade?
         Precisamos tomar providências urgentes para que o tempo não nos venha exigir pedágio. Em primeiro lugar, precisamos abrir mão de qualquer ponteiro indesejado que nos recorde, por indelicadeza, a passagem das horas. Joguemos os relógios ao mar, e estendamos esse ritual aos calendários, aos celulares, aos computadores portáteis ou a qualquer outra bugiganga que nos obrigue a acreditar que ficamos obsoletos. Em seguida, respiremos. De verdade. Não a ofegância da correria insana do dia a dia ou o sopro desordenado de uma bem sucedida empreitada amorosa. Refiro-me à respiração que internaliza, que nos faz ligar a tela do passado e rever tudo que gostaríamos de ter feito, e como seria gostoso se tivéssemos ouvido os instintos em vez de desistir só porque as pernas tremeram um pouco. À medida que o tempo passa, tendemos a ficar mais transigentes com o passado e conseguimos nos alegrar até mesmo com as dores que escondemos nos ossos.
          Agora, nada disso adiantará se não considerarmos a indecifrável arte da convivência. Se alguém importante surge como por encantamento e, por motivo qualquer, apenas parte, sem rastro ou aviso prévio, é entender que não foi abandono, mas a ausência necessária à saudade, mãe de quase todas as certezas e prima da maioria dos arrependimentos; se veio chuva em vez de sol, tomemos vinho e guardemos a cerveja para quando o sol retornar, e ele sempre retorna; se estamos a um passo de enlouquecer de tanto trabalhar, chegou a hora de afrouxar as gravatas, descalçar os sapatos, sentar em um gramado verde e mais nada, pois quem se entrega de forma desumana ao trabalho sabe reconhecer o valor de uma palavra como "nada"; se os amigos enchem-nos de e-mails de autoajuda ou de mensagens pseudofilosóficas nas redes sociais e sequer perguntam se estamos bem, é sinal de que precisamos levar nossas amizades um pouco mais a sério; se olhamos para trás à procura da tal felicidade e só encontramos breu, e se o futuro parece reservar a mesma escuridão, talvez devêssemos ter mais cuidado com o que sempre esteve ao nosso lado, sem desertar do posto nem nos momentos de indiferença.
          Sim, estou ficando velho. Talvez não possa, ou não queira, seguir meus próprios conselhos. A única vantagem de viver muito é ter um pouco mais de tempo para compreender os infundados motivos da vida. Mesmo assim, prefiro ter o mundo pelos olhos imberbes da juventude.

domingo, 18 de setembro de 2011


as dores do outro se movem
lentamente
pelas veredas das palavras
esquecidas
nos vãos dos ponteiros
exautos
de mim e dos que em mim
habitam

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Túnica


tua imagem, perdida no invólucro dourado
das horas antigas,
precede a existência,
os remorsos, as lavras

de quantas vozes desvias-te?
em quantos instantes habitas?

molda-me na retina teu rosto de metal 
a cada regresso,
que és a mais interna das túnicas
e não há máculas em tuas mãos,
senão as que deixei por não tê-las alimentado.

terça-feira, 6 de setembro de 2011


- Tarde demais para ontem, cedo demais para amanhã.
- Quer que eu escreva por você?
- Procuro alguém que deseje escrever comigo...

domingo, 4 de setembro de 2011

Crisálida

Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!
Paul Verlaine

         Ele a reencontrou, e era noite. Sucedera durante uma palestra. Mesmo com as luzes apagadas por causa das projeções exibidas na ocasião, soube reconhecê-la: o mesmo olhar antigo de menina acovardada. No entanto, ao afastar-se das dimensões do sentimento, o que impele de imediato o reconhecimento de olhos tão expressivos, sobreveio a lascívia de vê-los cercados de uma carne adensada, maturada por uma vigorosa feminilidade que o desconcentrava. Certamente não era a mesma garotinha assustada de antes. Insurgia de sua jovialidade um vigoroso convite ao prazer, ao reconhecimento de uma chã há muito esquecida. 
        Havia alguém ao lado dela, uma sombra, possivelmente um namorado ou mais. Retomando o idílio inicial, muito por receio da dita figura que a acompanhava, fitou-lhe novamente os olhos, a única prova de que aquela mulher altiva posta à sua frente seria a menina arisca e ensimesmada dos tempos do colégio. Olhos anelados, cingidos de uma negritude admiravelmente antagônica, capazes de remeter às feições dos antigos sarcófagos egípcios ou aos providenciais traços de Carlos Zéfiro. De todas as distâncias, ainda restariam os olhos, embebidos em luxúria e simplicidade, eivados de sagacidade. 
          Não imaginava que, um dia, ainda pelas entrelinhas da adolescência, aquela menina suportasse o peso de tantos desejos. E ali estava ela, mirante no fundo da sala, expugnando os gestos dos que a ladeavam. Parecia não ter mudado seu trato com as pessoas. 
       Tendo sido seu professor, não foram raras as vezes em que ele elogiara sua inteligência. Mas não passava disso. O que mais haveria de se perceber nos trejeitos inábeis daquela figura que, quando na escola, mal caminhava sozinha, mal dizia palavra sem esconder os lábios, como em sinal de arrependimento? Seria esta mulher, de uma voluptuosidade inata a beirar o obsceno, a mesma vestal de braços afilados que costumava esconder-se em livros e pensamentos? 
         Ele pensou nas transformações por que as criaturas passam. Já ela não percebia que a ambição do velho mestre corria pela sala e pousava em seu colo, para sentir-lhe o cheiro e mordiscá-lo com o talento de um recém-nascido. Deve existir em seu corpo alguma mistura de óleos essenciais, de aroma agradável e duradouro, ornamento preciso para uma pele sem precedentes. 
         Como as pessoas mudam, pensou. O que era essa mulher senão um pedaço de insegurança a quem se impingiu membros e cabeça. Seus passos são firmes agora, mas sem perder a delicadeza que sempre lhe dera graça, apesar da clausura a que se submetia. Está agora plena das artes do encantamento. Aprendeu a passar a mão nos cabelos no momento certo, sem gastar sorrisos à toa, desabotoando a blusa até o ponto em que a dominação se faz completa. 
         De sua voz, sabia muito pouco. Do tempo em que conviveram como professor e aluna, raras foram as oportunidades, se é que as houve, de ouvi-la expressar qualquer opinião que fosse. Era de uma passividade que irritava, apesar de ser, como deve sê-lo até hoje, uma menina brilhante. 
         Por pensar nela como mulher, engolia em seco, como se prevaricasse ou esquecesse completamente seu papel de educador. E não somos sobretudo humanos e, por isso mesmo, dispostos ao destino de todo animal que, como nós, possui instintos primários? Ele baixou a cabeça por uns instantes e tentou reconstruir a imagem de outrora, a da garota insossa por quem nutria um simples apreço de mestre, e nada mais. O que ela pensaria dele? Ele deve ter mudado, por certo. Tantos anos sem o menor contato. 
       Deu prosseguimento às falas da palestra, que todos os pensamentos chegaram e partiram num entrecortar de silêncios. Terminado tudo, ainda esboçou reação de procurá-la pelo fundo da sala. Em vão, que já havia saído. Restou a curiosidade de saber como ela o descreveria. E não fora para isso que ali esteve, como para provar que algumas pessoas mudam completamente seu estado e seu caráter? Quando se preparava para ir embora, passou pelo lugar onde ela estava sentada. Nada para trás, além dos olhos.        
 

sábado, 3 de setembro de 2011

Sobre o futuro e os livros


           Futuro. O ano é 2xxx. Ninguém pelas ruas, que não há mais asfalto, calçadas, sequer uma vereda de piçarra mole. O que existe é apenas um vão, um abismo interminável sob os milhões de arranha-céus que se apoiam em estruturas flutuantes. Com as inúmeras catátrofes naturais que sucederam desde que podaram de vez as florestas tropicais do planeta, esta foi a única saída para sustentar a vida humana na Terra: empoleirar toda a população mundial em enormes edifícios flutuantes, longe do solo causticado pelas erupções vulcânicas.
           Para que se pudesse viver uma vida "normal", apesar de tudo, um desses gênios da informática deu de criar um programa de computador capaz de simular as mais variadas situações cotidianas, fosse trabalho, escola, missa, ou mesmo o futebol do domingo, a sinuquinha no boteco ou a paquera na gafieira. Bastava conectar-se a uma máquina, gratuitamente ditribuída pelo governo, para ativar o chipe, que, vale ressaltar, havia sido implantado desde o nascimento. Era uma maravilha. A violência reduzira-se a pó, afinal, se alguém inventasse de simular um assalto virtual, automaticamente o programa lançaria uma descarga elétrica de 10.000V na carcaça do camarada, que passaria de finório a finado de um susto. Todos estavam muito bem protegidos em seus respectivos lares, longe de acidentes, doenças, estresse. 
          Como tudo fora substituído pelo computador, as máquinas passaram a controlar certos hábitos. Na alimentação, por exemplo, cada condômino - que o planeta virara um gigantesco condomínio - tinha direito a duas cápsulas alimentícias por dia, o suficiente para suprir as necessidades calóricas de um indivíduo saudável. Por conta disso, os homens não exibiam mais a velha barriga de chope. Todos com cara de garoto propaganda de alguma marca de cueca. E as mulheres tornaram-se verdadeiros cadáveres ambulantes, uma vez que a magreza ditava a moda, sobretudo por não existir alimento suficiente no planeta para dar conta de tanta boca. 
        Até o sexo era regido por um sistema operacional que detectava se os parceiros estavam ou não prevenidos. Não era pelo risco de alguma doença, pois todas as curas possíveis já haviam sido descobertas àquela altura. O problema mesmo era a gravidez. O planeta já não tinha como comportar tanta gente. Sendo assim, em qualquer um que se atrevesse a fazer amor sem o devido cuidado contraceptivo, um choque daqueles seria aplicado, e justamente nas partes mais sensíveis ao embate amoroso. Como a nave de suprimentos aleatórios só passava uma vez por mês, trazendo os tão esperados preservativos, essa ficava sendo a frequência com que um casal ia para a cama. No mais, era dormir. 
          Outro objeto terminantemente proibido pelos detentores do sistema operacional era o livro. Qualquer informação, entretenimento ou manifestação artística deveria brotar exclusivamente da telinha do computador. Segundo os especialistas, que sempre têm justificativas para tudo, os livros eram desnecessários e perfeitamente substituíveis pelos computadores, e com as inúmeras vantagens que estes carregam em relação àqueles. Os recursos virtuais de leitura são infindáveis, com "links" à disposição, imagens tridimensionais, áudio digital e muito mais. O único recurso do usuário para interagir com um livro de papel é a imaginação, coisa mais obsoleta em uma era de tamanha tecnologia. Ademais, livros guardados há muito tempo acumulam ácaros e fungos e ocupam muito espaço. "No lugar de bibliotecas, precisamos de edifícios maiores e mais espaçosos para dar conforto às nossas famílias", gritavam os mais exaltados defensores do sistema. Assim, todos os livros de papel foram condenados. Quem fosse apanhado com um, teria o mesmo destino. Fizeram campanhas milionárias de substituição de livros por alguma máquina. Tudo em prol do progresso.
          Em tempo, uma senhora de noventa anos, posta à varanda, diante do vão em que outrora se erguia um jardim botânico, pressionava contra o peito um pacote antigo. Sentia que a morte a procurava pelo cômodos da casa. A senhora, então, chamou a netinha de cinco anos, que estava por ali aprendendo a lidar com o primeiro "tablet'. 
          - Venha cá, minha menina! Tem algo que eu quero que você conheça...
          - O que é, vovó?
          E a senhora, em delicados movimentos, abriu o pacote que trazia junto ao colo. 
          - O que é isso, vovó?
          - Isso é um livro, meu amor! Um livro de verdade, como era no meu tempo...
          - Como faz pra usar?
          - Basta abrir, passar as páginas e usar a boa e velha imaginação...
          - O que é imaginação, vó?
          E a senhora explicou à netinha sobre imaginação. A garotinha, curiosa como qualquer um de sua idade, pegou o livro, sentindo a textura amadeirada da capa, a delicadeza do papel das páginas, o cheiro desconhecido brotante do passar das folhas. 
         A pequena, esquecendo-se da avó, correu para o quarto, abraçada ao livro. A senhora apenas sorriu, como se previsse algo bom. O livro era As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E a menina no quarto, redescobrindo o prazer material e imaterial de um livro de verdade, preparava, inconscientemente, uma nova e definitiva revolução.     

terça-feira, 30 de agosto de 2011

 
                Escrevo pelas dores do outro, pelos vãos que se abrem, feito cicatrizes cálidas, no corpo alheio, espelho de carne. Cada palavra que liberto navalha a retina. Meu sussurro habita a incômoda verdade das entrelinhas.

domingo, 28 de agosto de 2011

Poema para retornos


Que o cansaço sublevado dê lugar ao êxtase
e os ponteiros estáticos, arquétipos das limitações humanas e inumanas,
encontrem pouso noutros versos.

Que os desejos inauditos deixem rastros seguros
e o passado recupere seu posto de presente
para que alma e corpo cumpram sua sina.


Que a razão adormeça por breve momento
e os sentidos acordem famintos por encurtar distâncias
e remir os que se encarceram em peito inóspito.

Que as dores necessárias à criação criem asas
e ferrem todas as criaturas, luzentes e viventes,
e retornem mansas ao aposento do poeta.

Que o movimento das palavras seja recolhimento
e o passo derradeiro repita o primeiro
e o tempo de colher não tarde.

domingo, 21 de agosto de 2011

Interlúdio lírico



...medo e amor são antípodas, faces opostas da alma; devoram um ao outro, como o tempo faz com sua prole.
O amor não se ergue onde o medo subsiste, que este é humano, portanto incapaz de compreender a essência divina daquele.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre mim e meu pai

         
          De quando em vez, o olhar para de mirar as distâncias que nos restam e busca rastros antigos, que nos servirão de guia, caso tenhamos, um dia, que refazer os caminhos. Assim, por motivos vários, alça-se sobre nossas cabeças despreparadas um tropel de imagens, algumas desbotadas, outras palpáveis, que indiscutivelmente confirmam a carreira desarvorada do tempo, esse devorador de horas, irmão de todas as formas, justas ou não, de saudade. Foi dessa maneira, como se encontrasse todas as páginas perdidas de um calendário, que refiz as veredas serranas e reencontrei a inexata figura de meu pai.
        Como lembrá-lo sem ouvir o arrastar manso das sandálias de couro a expugnar cada palmo da casa. Em falas modestas, de ressoar lento, como se calçasse as palavras com as velhas alpercatas de estimação, contava-me estórias de sua infância, na Serra da Ibiapaba, onde tinha que se nascer homem feito e pedir a benção a todos que lhe oferecessem serviço. Estudar era luxo. Somente os bisnetos dos bustos encravados no coração das praças é que sabiam o que era ler e escrever. Mas papai, teimoso que só ele, deciciu conhecer a razão das coisas, inclusive por que o curuminzal dos sítios não podia se estirar nos bancos escolares, mesmo com a carne das mãos exposta de tanto cortar mato para fazer trilha até os remansos e o rosto enodoado do sumo das jacas de vez. E ele ingressou no grupo escolar para aprender a lidar com as letras e os números, a contragosto da mãe, mulher descarnada pela lida na roça. Vira o pai apenas uma vez, numa festividade de Nossa Senhora das Dores. Pediu a benção, o que faria com qualquer um que lhe parecesse importante. Foi mais um desses deus-te-abençoe feito de água de pote. 
            No colégio, as palavras se aproximavam e tomavam conta dos sonhos do curumim. Com a foice ou a enxada nas mãos, era obrigado a ser gente grande. Mas, quando tirava para ler, sabia-se menino dos mais levados, daquele capaz de montar lobisomem ou dar volta no lombo do carcará-rei. Novidade mesmo foi no dia em que inauguraram o cinema da cidade. Lá estava ele, o primeiro da fila, para assistir aos filmes de "cowboys". Certa vez, perguntou à mãe por que somente índio morria nesses filmes, mas ela não soube responder. Por essa época, descobriu-se doente, com um sopro no coração. Tinha apenas doze anos. Disseram que não passaria dos dezoito. Mas ele passou.
       Como sentisse que aquela cidadezinha eivada de verde e melancolia não lhe coubesse mais, tomou o rumo de Fortaleza, onde foi morar de favor na casa de uma prima. Matriculou-se no Liceu do Ceará. Cumpriu o curso técnico de contabilidade. A doença da infância ainda o perseguia. Chegava a desmaiar com as convulsões mais fortes. Já trabalhando por conta própria, prestando serviços contábeis para pequenas empresas do bairro, conheceu minha mãe. Depois de cinco tentativas frustradas, finalmente eu nasci, um primogênito de fato, mas não de direito. 
         Quando eu era molecote, ansioso pelas datas em que se trocavam mimos, papai criou um mecanismo interessante para me despertar o gosto pela leitura. No Natal, por exemplo, ou no aniversário, lá vinha ele com um par de presentes, embrulhados estrategicamente com o mesmo papel. Um carrinho, um boneco qualquer ou coisa parecida, sempre acompanhado de um livro, como se me oferecesse mais do que um menino comum mereceria numa data comemorativa, dois brinquedos, mas só um deles seria "de quebrar", como ele próprio gostava de afirmar. E ele ria de tudo. Até hoje, depois de tanto tempo sem compartilhar do seu sorriso, sou capaz de ouvir sua risada, sempre tão viva, daquelas de contagiar quem quer que seja, como numa pandemia de alegria. Várias foram as vezes em que caí na risada só porque ele estava rindo, simplificando a arte da felicidade. 
               Com meu pai, também aprendi a ser brasileiro. Nunca houve alguém tão patriota e ufanista. No sete de setembro, ele fazia questão de pendurar uma bandeira verde-amarela na frente da casa. Tinha orgulho disso. Emocionava-se com o hino nacional, que, nas palavras dele, era o mais lindo do mundo porque fora concebido poeticamente, como acalanto de filho. Fora dispensado do exército por conta de sua doença, mas trazia consigo uma grande vontade de viver e lutar pelo Brasil. Além disso, indignava-se com a politicagem dos corruptos de plantão. Quando noticiavam na tevê alguma falcatrua oficial, exigia que eu assistisse e desse alguma opinião sobre o assunto. Na maioria das vezes, eu dizia que aquilo tudo era muito chato, referindo-me ao fato de que, em vez de estar brincando com a molecada, estava ali, vendo telejornal. E ele ria e confirmava a chatice da situação. 
               Foi com papai a minha primeira viagem. Apenas nós dois. A caligem e o intenso frio da serra pela época de inverno me despertavam para os filmes de terror a que tanto gostava de assistir. Ficamos no sítio onde meu pai nasceu. Sem energia elétrica, sem fogão a gás. As paredes eram de taipa, barro comprimido numa estrutura entretecida de taquaras. Tudo era tão devagar, cercado de uma monotonia necessária para quem vinha da desumanidade da metrópole. Passamos cinco dias por ali, entre visitas, fogueiras, churrascos e historietas de assombração. Hoje, o tal sítio não existe mais. Chamava-se Sítio Comum, por ser de todos ou por ser como todos os outros. Para mim, por ser poesia.
              Quando dei por mim, infância e adolescência haviam passado de estalo. Ingressei na universidade, comecei a lecionar, casei, tive um filho. Esses foram os únicos presentes verdadeiros que consegui dar a meu pai. Saber que ele teve a oportunidade de abraçar o neto é algo que me conforta bastante. Outro dia, meu filho perguntou: "Pai, como era o vovô Evaldo?". Perdi o prumo. Ele já não se lembra do avô, apesar de tê-lo conhecido. Descrevi-o, pois, com habilidade alencarina, para que nunca mais fosse esquecido. A seu tempo, o arremate: "Pai, ele morreu faz tempo?". E a resposta: "Morrer é ser esquecido. Se você não o esquecer, ele sempre estará entre nós!". Foi quase assim. 
              A verdade é que não lembro de tê-lo abraçado depois que me tornei um adulto inveterado. Sequer tive a oportunidade de expressar o quanto o amava. Mas tudo que realizei, da forma como realizei, talvez tenha sido a maneira mais sincera de agradecer-lhe. Há oito anos não o tenho comigo. Oito anos. E, em tudo que escrevo ou maquino, sei que existe a sua mão sobrepondo a minha. Que falta aquele velho me faz. Com ele por perto, tudo parecia tão fácil, tão realizável. Mas a doença de outrora foi mais forte. E ele partiu. Sem se despedir, sem deixar contato, sem aquela gargalhada contagiante. Certa feita, eu ainda menino, questionei-o:
                 - Pai, quantos amigos você tem?
                 E ele redarguiu com maestria:
                 - Dois. Você e eu.
                 Na sua voz, as palavras procuravam o lugar certo.
                 Pelo olhar de meu pai, forjava-se a poesia do mundo.
    


                   

segunda-feira, 8 de agosto de 2011


De todos os silêncios que me perseguem,
há um que não me incomoda,
que não é doentio
ou regalado.
É um silêncio de fim de tarde,
de amantes inseguros roçando os olhos,
de beijo demorado na bochecha da avó,
de espera pela palavra inexata
no reencontro das antigas vozes
na frialdade do acaso.
Sem esse silêncio,
teu nome perderia o viço.

domingo, 31 de julho de 2011

Dádiva do tempo


O amanhã é virgem,
fruta de vez,
inconha, temporã.
Pertence a ninguém
ou pertence a quem primeiro alcançá-lo,
cortar-lhe a espessa casca
e extrair o sumo da esperança.
Não existe ponte ou escada
para ligar-nos ao futuro.
O único caminho
é desejar o inatingível,
conservar a razão de ser
de tudo que, por um triz,
não deixou de ser sonho.
Se existe como escapar do hoje,
não o do calendário apenas,
mas o da movediça saciedade,
faça-o pleno de amor.
Tenho pés e mãos cansados
dos intermináveis agoras.
 

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Peregrinação

                                          Amor é o que se aprende no limite,
                                          depois de se arquivar toda a ciência
                                          herdada, ouvida. Amor começa tarde.
                                                     Carlos Drummond de Andrade
 
Amei uma vez
e tive uma inútil impressão de vivenciar
o imponderável.

Quando amei pela segunda vez,
era final de tarde, numa sexta-feira, último 31 do ano,
sem plenilúnio.

Pela terceira vez, arrisquei-me,
andrajoso, pés mastigados de betume e insistência,
antipoesia.

Por fim,
profundamente fatigado,
busquei a tranquilidade de uma sombra,
e ali estava a figura que me emprestou os pés e os olhos
que trago comigo até hoje.

A psicogênese do espelho


Faltou-me coragem
para simplificar o que em mim ardia.

Não que pensasse sobreviver
sem as acácias e aroeiras sobressaltantes
do amparo que me prenunciaste.

Antes justificava reentrâncias e degredos,
mas agora, depois de o peito à mostra,
o que se tem é o profundo desejo
de uma demorada e eficiente ausência
que nos prolongue a imagem antiga 
de dois inexperientes à deriva.

Certa vez, declarei meu amor
polindo-te a moldura.
Sequer me dei conta dos gemidos
inconfessos no vidro polido.

Amor, espelho de carne, caixilho de ossos
e reminiscências,
vontade irreprimida de, enlevado,
enganar os sentidos,
tornar-se a si e ao outro
ser e miragem.
.







quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sobre lágrimas e recomeços

        
         Poucas foram as vezes em que chorei. E não fiz questão de que houvesse testemunhas. Chorei apenas, sem riscos ou descobertas. Meu último sangradouro foi há oito anos, pela perda de meu pai. Ele, com habilidade sinfônica , costumava me alertar para a promiscuidade dos sorrisos. E é uma grande verdade. Todo mundo sorri para todo mundo. Um sorriso não escolhe alvos. Basta um simples cumprimento, um bom-dia no início do expediente de uma segunda-feira nublada, para que a face se contraia em simpatia e dentes. Com o pranto é diferente. Costumamos selecionar criteriosamente aqueles que terão o privilégio de presenciar nossas lágrimas.
        As crianças, é claro, não têm pudores ao expressar qualquer dor ou birra por meio de um providencial berreiro. Mas os adultos, hipócritas de carteirinha, têm a obrigação de transparecer toda a fortaleza necessária para assumir a patente de que realmente cresceram e, por conseguinte, nada é capaz de abalá-los. Conheço algumas pessoas que, nos momentos mais tensos da vida, optaram por esconder-se nos vãos míticos da alegria forçada. Tolice. Chorar é um espetáculo essencialmente humano, e as cortinas da alma se abrem apenas diante de uma plateia criteriosamente escolhida, depois de anos e anos de preparação e consulta aos astros. É fato que choramos pelas mais variadas razões. Há quem o faça por puro capricho, como os que veem o time do coração afundar-se em mais uma derrota para o principal rival. Essas são lágrimas de fúria e frustração. Tanto que, minutos após a lamúria, segue-se um ritual de xingamentos natural de quem queria apenas extravasar a ira. Mas existem motivos bem mais reais para se debulhar em lágrimas. 
         Admiro os que choram de felicidade, talvez por nunca ter experimentado fazê-lo. Lágrimas de alegria são frágeis, pois facilmente se confundem com os sorrisos que seguem em concomitância. Agora, quando queremos chorar de verdade, como uma forma de encurtar dores, tendemos à solidão e ao isolamento. Ninguém que conheço costuma ligar para os amigos na intenção de chorar em terreno alheio. "Vamos sair hoje, que eu estou com uma vontade grande de chorar". Seria algo estranho, por certo. Entanto, como a vida é feita de experimentações, por que não arriscar chamar alguns amigos, como numa espécie de psicoteste, e ver quais estão realmente dispostos a acalentar-nos o pranto? Tantas vezes gastamos nossos indolentes sorrisos com essas pessoas. Vez em quando, é bom mostrar que também somos humanos o suficiente para cair nas tarrafas da tristeza. As melhores lágrimas são aquelas que compartilhamos. Se conseguimos rir com os outros, também deveríamos ser capazes de chorar com os outros.
         Como me meto a escrever, e o sentimento humano me intriga nessas horas, prefiro crer que as lágrimas mais verossímeis são aquelas vertidas por outrem, por alguém que se fez presente e agora não passa de uma persistente ausência. O pranto dos apaixonados é febril, morno feito chuva de setembro, por isso inquieta, perturba ao ponto de não ter hora de iniciar ou terminar. As perdas, por mais banais que possam parecer, ecoam em nós como uma forma de alertar sobre um possível vazio que se formara após sermos privados do que nos preenchia. E os que sofrem pelos pontos-finais que teimam em se antecipar não sentem apenas pela ausência do que outrora soava como amor. O pior é o recomeço. Reinventar costumes. Os sábados sem motivos, os domingos sem a velha pizza, os lugares especiais que voltaram a ser meros espaços desconhecidos. Temos medo de recomeçar. É isso que nos impele a gritar, a criar ambientes de alegria forçada, a esconder as anímicas intenções.
          Não tenho mais disposição para lágrimas. Talvez o açude tenha secado. Entanto, sugiro que os que pranteiam não tenham receio de rasgar lágrimas na frente de quem quer que seja. Ademais, se assim é feito, é sinal de que realmente confiamos naquele que ali está, diposto a acolher nossas lamentações. Nenhum pranto merece ser contido, por quem quer que seja. Enquanto isso, vou em busca de algo que me faça chorar, não o choro indeciso dos que perderam alguma coisa, mas uma lágrima, uma única e derradeira lágrima, diante de um pôr-do-sol que me revele a beleza do recomeço.

           

segunda-feira, 25 de julho de 2011



Nosso tempo sempre foi agora...

sexta-feira, 22 de julho de 2011


Quando vieres me amar,
chega feito passarinho,
com olhos por debulhar
as imperfeições do ninho.

Mas, se vieres me amar,
olvida esse desarrimo,
como sol a escumar
cada dimensão de um limo.

Já que pretendes amar,
sê justa na tua crença,
deixa de lado o pensar
e aceita a nova sentença.


Antes que deixes de amar,
faz da bruma teu consolo,
para que o tempo, ao julgar,
reconheça-te o esforço.

Ao acabares de amar,
sem rastro cicatrizado,
sem um penitenciar,
sem jargão, mira de lado.

Para que tornes a amar,
refaz, em flor, teu caminho:
Abrigos hás de encontrar,
mas teu lar se erige em mim.

domingo, 10 de julho de 2011

Sobre sprays de pimenta e vocações


          Escrever um texto em que todos os professores se reconheçam não é tarefa grata. Até porque somos uma raça em extinção, como pandas ou ararinhas-azuis. Assim como esses bichinhos, somos criaturas dóceis, incapazes de fazer mal a qualquer ser que não seja espelho. Além disso, despertamos comoção entre aqueles que se sentem impelidos a defender causas nobres no planeta. Um dia, quem sabe, visitarão escolas para tirar fotografias em frente à jaula dos professores.
          “Mamãe, o que é aquilo com um toco de giz na mão e uma cara de poucos amigos?”
          “Ah! Aquilo se chama professor. Na minha época, eles viviam soltos por aí e eram muitos, mas hoje só podem ser vistos em cativeiro.”
          “Bicho mais esquisito, mãe!”
          Mas um dos grandes méritos do professorado é que somos dotados de uma credulidade quase papal. Acreditamos que a situação do país vai melhorar e, por conta disso, a classe política vai ser obrigada a discutir a educação de uma forma mais séria e efetiva etc, etc, etc. Venhamos e convenhamos, os políticos, ao menos uma parcela considerável deles, não está nem aí se o professor tem ou não condições de exercer dignamente seu ofício. Vou mais longe, as greves de professores tendem a ser as mais longas e inegociáveis possíveis, afinal, filho de deputado não estuda em escola pública. Na escola particular, greve é assinar a carta de demissão, e por justa causa, diga-se de passagem. Nunca ouvimos falar em uma greve de vereadores ou deputados, sinal claro de que estão satisfeitos com suas condições de trabalho e seus respectivos rendimentos. E outra, quando não se dão com o salário que ganham, basta uma canetada para, da noite para o dia, o pomposo contracheque dos legisladores aparecer com boas cifras a mais. Ninguém acha que um político é um coitado, ganha mal, é desrespeitado no seu ambiente de trabalho, corre risco de vida ao terminar o expediente pelas tantas da noite. Todo mundo quer ser político. Agora, quem quer ser professor?
          Digo, pois, com todas as letras: ser professor não é para qualquer um. Entretanto não me venham com poetizações ou pieguices em relação ao magistério. Fico estupefato quando colegas professores chegam com o discurso onírico de que devemos lecionar por puro amor, por vocação apenas, sem pensar em qualquer problema que ofusque o brilho perene dessa tão solene profissão. Pensando dessa forma lúdica, deve haver quem acredite que professor se alimenta de estrelas, bebe sorrisos e palita os dentes com patas de borboletas. Isso tudo é muito bonito, mas pouco prático. Antes de qualquer imaterialismo, precisamos entender o profissional da educação como um ser de carne e osso, que come, bebe, arrota, procria, deturpa a ordem vigente, cospe na parede e o diabo a quatro. Sem essa concepção, geramos uma teia de conformismos e injustiças, uma vez que o professor, por pior que esteja a situação, não pode abandonar o barco, pois sua atividade requer muito mais que salário ou condições de trabalho decentes. Talvez esse tenha sido o pensamento dos guardas municipais que, recentemente, descarregaram os sprays de pimenta sobre professores. Na cabecinha desses exemplos para a corporação, todos ali eram um bando de vagabundos, sem querer trabalhar, uns acomodados que nunca pegaram no pesado, só dão umas aulinhas aqui e ali e acham que se sacrificam. Se vivêssemos em um país com uma educação mais real e menos imaginária, os guardas que investiram contra os professores soltariam seus sprays de pimenta, desobedecendo a qualquer ordem truculenta para ferir profissionais que já são agredidos cotidianamente pela própria condição que se impõe a eles; em seguida, num gesto de solidariedade, se juntariam aos professores e passariam a exigir, conjuntamente, melhorias trabalhistas para todos. Mas isso é pura ficção.
          Conclamo, pois, a massa juvenil que ainda não tomou tento do que vai ser quando “crescer”. Sejam professores. Entanto, entre nessa para ganhar. Não aceite os mandos e desmandos impostos por uma sociedade cercada de idiotas que querem enfiar na sua cabeça que ser professor é a maior roubada, pois ganha-se mal, trabalha-se muito e não se tem a devida valorização. Não há nada neste mundo que se equipare ao prazer de lecionar. Essa é a primeira lição que o professor deve passar aos seus alunos. Para uma sociedade carente de pessoas que pensem e ajam, é interessante para a classe dominante criar uma publicidade negativa em torno do ofício de ensinar. Seria uma verdadeira revolução se tivéssemos uma leva de jovens, todos sedentos por mudanças, ingressando nos cursos de licenciatura e, em seguida, no magistério, prontos para aplicar novas técnicas e revolucionar a sala de aula. Precisamos de professores jovens, diferentes, entusiasmados e, sobretudo, dispostos a lutar em defesa da educação. Mas que fique bem claro, não espere medalhas de honra ao mérito ou coisa parecida. Muito provavelmente não erguerão estátuas em sua homenagem, nem batizarão ruas com seu nome. Ocorre que, mesmo assim, não é fácil esquecer um bom professor. Se, neste exato momento, fecharmos os olhos e acarinharmos a memória, em questão de segundos alguns professores ressurgirão em carinhas risonhas, amparos sempre providenciais, palavras alentadoras e lições inesquecíveis. Ser professor não é um sonho, eu sei. Para sonhar, é preciso estar dormindo. Uma coisa necessária para se tornar um bom professor é permanecer de olhos bem abertos, construindo esperanças necessárias para que os homens permaneçam acordados, e as crianças também.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Poeminha sem alma

 


          De tanto bater, o coração,
          lânguido,
          extenuado,
          reles,
          entregou-se à fragilidade,
          em desterro,
          pondo-se resignado
          ao carrasco.
       
          O coração, sábio que é,
          percebeu a tempo:

          Em vez de bater,
          melhor apanhar.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cio das horas

          entro em casa alheia, estrangeira,
          e, por agravo, procuro as horas,
          não as que se marcam em rangeres,
          mas as que se escondem

          nos móveis, nas fotografias, nas pálpebras;
     
          os ponteiros longilíneos, renitentes,
          esquivam-se de mãos engelhadas
          e marcam, sem mormaço, os traços pétreos
          das palmas imperitas!
     
          capturo um minuto em cio,
          e dele faço revelar um vulto:
          cheiro doce de café em fogo de lenha,
          passado puro, aroma de mãe.

          deixo-o partir em cardume
          para cumprir sua sina temporã:
          nesse minuto, feito rastro de cobreiro,
          uma rosa antiga me acolhe e cinge...

          


         
     

segunda-feira, 4 de julho de 2011

@narciso



                Passara a noite toda navegando pela internet, de site em site, como um fantasma, a tela refletida no seu rosto pequeno, de menino pálido, bem cuidado. Entrava e saía, num ritmo frenético, de inúmeras salas de conversas virtuais. Não dormia. A claridade do dia incomodava, então cerrava as venezianas para que a noite se estendesse. Assim seguia, decifrando cada ponto luminoso, dia após dia, iniciando e finalizando conversas, recebendo fotos e mais fotos de possíveis pretendentes, mas nenhuma parecia satisfazê-lo. Ele apenas buscava.
                Foi assim que conheceu @eco. A conversa iniciou-se por acaso, pela coincidência de nicknames, já que ele costumava apresentar-se como @narciso.
                @eco diz: Até que enfim um deus...
                @narciso diz: não sou um deus, mas gostei rs
                @eco diz: Adoro mitologia e vc?
                @narciso diz: amo...
              Não tardou para que a intimidade entre eles se consolidasse. Depois de algumas horas de conversa, tornaram-se amigos de infância. Ele não exigiu uma imagem da recém-amiga, o que normalmente faria se não estivesse tão envolvido. Prolongou de forma proposital o mistério em torno da dona daquelas palavras doces e elogiosas.
                @eco diz: Imagino como seja sua voz, gostosa de ouvir:)
                @narciso diz: fala mais
                @eco diz: imagino seus olhos cheios de brilho...
                @narciso diz: mais...
                Foram dias e dias desse jeito. Ela o idealizava, criava as mais delicadas descrições para o possível namorado, que se mostrava cada vez mais extasiado. Ele a sentia, fechava os olhos à procura da imagem certa, que pudesse traduzir toda aquela beleza.
                @eco diz: Quer me ver? posso mandar uma foto...
                @narciso diz: não, por enquanto não...
          Eles já se tinham como amantes. Perdiam a noção do tempo, afagavam-se com palavras entorpecentes, imaginando como seria um possível encontro, o que vestiriam, qual a reação dos dois quando finalmente tivessem a oportunidade de se mirarem.
    Já passavam dois meses desde a primeira conversa. A tela do computador parecia não comportar tamanha volúpia, derramada em frases cada vez mais pulsantes, impregnadas pelo desejo de se tocarem, se amarem. Finalmente tomaram coragem para marcar um encontro. Nada de fotos. Não havia a menor possibilidade de frustração. Ele sugeriu um cinema. Ela concordou. Dali a dois dias, finalmente se encontrariam.
    Chegado o dia, ele se produziu como nunca. Comprou uma camisa especialmente para a ocasião. Ela não ficou por baixo. Passou horas diante do espelho até se convencer de que estava verdadeiramente pronta para encontrá-lo.
    Ele chegou com meia-hora de antecedência. Sentiu náuseas, teve vontade de vomitar. Olhava para os lados, imaginando que ela surgiria da direita, que lá o sol se punha como nunca. Tentava enxugar o suor das mãos, enfiando-as nos bolsos. Até que ela rebentou, pela esquerda, dispensando a paisagem desenhada por ele.
   O que sucedeu foi inesperado. Ela estancou na frente dele, um sorriso largo deformava-lhe o rosto. A beleza do rapaz encantava, os traços delicados, os cabelos lisos cobrindo-lhe a testa, o rosto limpo, sem marcas, tudo exatamente como ela imaginava. Não disse palavra, esperando a reação do outro.
  Mas ele não encontrou o mesmo. Uma súbita sensação de arrependimento tomou conta do seu corpo, que amoleceu, como se não estivesse ali. Deveria ter exigido a tal foto, afinal. A única coisa que podia fazer era ir embora, voltar para o seu quarto, cerrar as venezianas, tentar novamente. Assim o fez. Sem qualquer desculpa. Apenas se virou e seguiu caminho, sem olhar para trás.
  Ela voltou para casa, desanimada, pressionada por cada segundo que havia perdido naquelas intermináveis conversas. Sentou à beira da cama, sentindo um estranho gosto de sangue. Transtornada, partiu para cima do computador, arrebentando tudo. Prometeu a si mesma jamais acreditar em arrebatamentos virtuais. Ninguém nunca mais soube dar notícias de @eco.
  Já no quarto, ele ligou o computador, a webcam, e foi tomar banho. Lavou-se de cima a baixo, como se livrasse de um fartum intragável. Ainda de toalha, pôs-se diante do monitor. A câmera focalizava-o por inteiro. Parecia hipnotizado pela sua própria imagem digitalizada. Ficou nu, e a beleza exposta na tela o remetia a todas as verdades jamais confirmadas nas palavras alheias. Aproximou-se da tela e abraçou-a com voracidade. Uma descarga elétrica tomou conta de seu corpo. Os pés descalços enrijeciam; a pele, ainda molhada do banho, fumegava do choque. Estirou-se no chão, abraçado à tela, agora sem vida, sem imagem, sem nada que lhe recuperasse o tempo perdido.      



         Desisti de esquecer para não ter que lembrar...

domingo, 3 de julho de 2011

Sobre desapegos e formaturas


          Por passear de tempos em tempos pelos vãos da palavra escrita, há quem me veja como uma espécie de conselheiro, um arauto da verdade absoluta sempre disposto a maquiar as mais inexcedíveis cicatrizes. Dia desses, tarde em prantos (poesia e caldo de mocotó só fazem mal aos que nunca provaram), um desses leitores me veio com a seguinte indagação: "O que fazer para esquecer um grande amor?". Confesso que fiquei surpreso, pois perguntas dessa monta devem ser dirigidas a especialistas, com turbantes, mantras e uma visão essencialmente psicodélica da vida. Ocorre que me senti na obrigação de responder, e o fiz da maneira mais objetiva possível, sugerindo o providencial exercício do desapego. 
         Precisamos urgentemente de algo que nos distraia do passado, esse comboio de fantasmas que, de quando em vez, nos desorienta com seus tropéis, apitos e fumaças. Existem coisas, pessoas e momentos que merecem ficar exatamente onde estão, estanques na memória, com cheiro de algo novo, com pele de avelã, com relva e arminho. Há instantes na vida que não precisam ser resgatados, não porque não mereçam, mas porque já tiveram sua hora de permanecer e encantar. Enquanto houve, criou-se um vínculo que, com o tempo, não se desfaz, mas permite elos, extensões que nos conectam ao porvir.  Se assim não ocorre, algo certamente está errado. 
        Desapegar-se, contudo,  não é tão difícil quanto se borda.  Recuperemos a imagem da velha e indissolúvel turminha do colégio, tão solenemente resguardada pelo amanhã. Os amigos da escola têm a estranha mania de nos presentear com o futuro. Todos unidos, convictos de que, um dia, esse futuro será redesenhado pelas mesmas cores que hoje tingem suas unhas e cabelos. Caminham pela certeza de que tudo pode ser de graça, sem interrupções, sem o pedágio dos ponteiros. Até que vem a derradeira classe. Ano seguinte, não há mais colégio. E agora? A escola, que tantas vezes nos serviu de antídoto para as veleidades do mundo, que sempre fazia questão de soar uma sirene antirrealidade quando algum aluno rebelde tentava descobrir o que existia além dos enormes portões de ferro; essa mesma escola, maternal e acolhedora, agora joga seus protegidos num campo de batalha sangrento e cruel, para o qual a maioria não se preparou. Um mundo sem notas, sem opções, sem "o cliente tem sempre razão'. Aos poucos, as juras de amizade eterna dão lugar a um turbilhão de receios. Ainda se tenta algum fôlego na indefectível festinha de formatura, mas não tem jeito. Mesmo com o chororô, que todo fim merece uma lágrima; mesmo cantando "Amigos para sempre" sete vezes, que sete é número de sorte; mesmo com todas as fotos adornando as redes sociais, que não há mais diferenças entre o real e o virtual; mesmo com tudo isso, a realidade, descortinada de forma tão abrupta e brutal, cobra seu espaço. E o que se fez próximo torna-se distante. Assim, os amigos de sempre se tornam amigos de vez em quando. Quase amigos. Colegas. Conhecidos. Como é mesmo o nome dele? Acho que conheço aquele cara, mas deixa pra lá. O desapego veio como algo natural, pela necessidade de limpar a gaveta.     
           Não se deve simplesmente apagar o passado. Entanto, cada momento que experimentamos tem seu prazo de validade. Às vezes, por alguma razão, precisamos esvaziar o salão  para dar lugar a novos convidados, mais estimulantes e hipnóticos do que os que ali estavam já sem vontade de dançar e cantar. Que tal dar uma olhada nos velhos guardados para selecionar o que realmente merece habitar nossa lembrança, que muitas vezes se incorpora numa caixa de sapatos abarrotada de porcarias colhidas nestas idas e vindas sem fim? E se encontrar aquela fotografia da turma da escola, a única que não foi digitalizada, faça o que se deve, rasgue-a. Dê uma boa olhada antes, tente lembrar o nome das personagens, recupere seus apelidos, ria das traquinagens, sinta o gosto de cada um. Se conseguir fazer tudo isso, a tal fotografia já não será mais necessária.      
          Ah reticências, velhas fiandeiras, resguardantes das nulidades,
          velai o cair da tarde, tangendo as palavras no pasto encarnado... 

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Crônica por acaso

         
            Se me perguntam por que escrevo, digo que faço em razão do acaso. E assim não são as grandes realizações? A começar, escrever é medir a coletividade pelos olhos do indivíduo. Ao desvendar os riscos da página em branco, tolhem-se preconceitos há muito arraigados, rompem-se as cancelas do tempo e da memória, descalçam-se os pés, que é preciso sentir o solo de cada ente; escrever é reconhecer linhas de mãos estranhas e, a um só tempo, familiares. Ao meu ver, isso tudo só se realiza por acaso.
             A primeira vez em que o acaso me veio, destoante das rotinas do mundo, eu não estava preparado para aceitá-lo. Ninguém está. Somos burocratas por hereditariedade e, por isso mesmo, esperamos que tudo ocorra da maneira mais funcional e organizada possível. O acaso é avassalador para quem só espera pelo sussurro morno do calendário. Assim se deu, quando menos esperei. Logo eu, descrente de quase tudo, tangível ou não; o pior aluno da cátedra de Filosofia, porque racionalizar nunca foi meu mote. Não, não vou dizer que tudo ocorreu num simples e providencial dobrar de esquina. Foi mais. Descrever a parábola que sucedeu certamente não é uma atividade simples. O mundo, naquele instante, se punha a mim como um reflexo, e compreender a psicogênese desse espelho é bastante doloroso. Em questão de átimos, a maquinal  arte da rotina dava lugar a um sangradouro de expectativas, uma celebração íntima me arrebatava, como se me desfibrilassem cada veia, num misto de agonia e renascimento. O acaso sempre nos é libertador. 
              Ainda ontem - e o ontem é tudo que a memória é capaz de alcançar - conversava com um amigo de letras e magistério, alguém com quem o acaso mantém uma relação quase filial, e ele dizia só conseguir escrever diante de algo que verdadeiramente o arrebatasse, como uma paixão de última hora ou uma perda significativa. Louvo essa visão epifânica da escrita, embora não compartilhe dela. Escrever assim é o que se pode chamar de dom. No meu caso, travar batalhas com os espaços em branco no papel soa como algo fisiológico, que se expele diante das situações mais abjetas ou simplórias. Escrevo atrelado ao tempo, atendendo telefonemas, elaborando e corrigindo provas, atento aos pedidos do filho, às contas de casa, ao pneu vazio do carro. Que inveja tenho dos que se trancam em sótãos, cercados de livros empoeirados, e preparam ratoeiras para as palavras; capturam-nas e, em seguida, adestram-nas para que elas realizem os mais inesperados movimentos. Eu não busco a palavra; espero que ela se aproxime e, aos poucos, adquira a confiança necessária para entregar a mim sua virgindade. As palavras surradas, prostituídas, essas não me guarnecem. 
            Todos guardam alguma cicatriz causada pelo acaso. As minhas são tantas, que chegam a encobrir o rosto. Cada vão desnudado da folha em branco tinge a existência de vermelho-sangue, revelando veios, ocultando outros. Quem sabe, por acaso, alguém leia este texto e, pelo mesmo acaso, alguma linha tenha feito sentido, de modo a transformar a palavra em espelho. Talvez, por acaso, tenha sido perda de tempo chegar até aqui. O acaso seria mais transigente se lêssemos menos e criássemos mais.