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domingo, 25 de março de 2012

Cegueira


Não quero exaltar o amor, ou negá-lo;
há muito mais com que se preocupar:
o pão, o leite, o feijão e o açúcar...
Coração cheio, resta esvaziá-lo!

E que caiba no cardíaco espaço
um pouco das gentes que o mundo nega,
a doença da fome que o negro pega,
a flecha miséria e seu sangrento aço.

Para que exaltar o amor, ou negá-lo,
se, ao mundo, a fome grita, embora muda?
Muda? Muda nada! Jequitibá!

É de amor que vivo, e digo de estalo:
mãos ressequidas clamam por ajuda
e o peito cego só pensa em amar!


O rei que descobriu a beleza


       
        Foi uma vez um reino governado por uma criança que, de tão inocente, queria ser dona de todas as coisas e pessoas do mundo.
         Borboletas que não pousassem em seu ombro, em sinal de reverência, seriam imediatamente esmagadas. Passarinhos que não cantassem a canção predileta do rei-menino ao menos uma vez por dia seriam degolados em praça pública. O sol, por sorte, nunca desacatou a ordem real, nascendo sempre do lado que o rei ordenara, senão estaria proibido de aparecer.
        Até que o pequeno rei, sentindo a beleza de seu reino ameaçada por sabe-se lá o quê, baixou o decreto e proibiu que a feiura e o mau gosto habitassem seus domínios.
         O povo não sabia o que fazer, pois o rei é que decidiria o que seria considerado belo ou não.
         E assim sucedeu, e passou a existir apenas a beleza aos olhos do rei.
      Eis que surgiu de algures um menino de vivo olhar, descrente da autoridade do rei, e solicitou uma audiência com a infante majestade.
        Iniciou-se um curioso embate:
        - Majestade, por sua incessante sabedoria, pergunto: O que é a beleza?
        O rei esticou-se no trono, procurou a resposta no teto do palácio e devolveu:
      - Beleza é o que encanta, o que fascina, o que é de fino traço... tudo que é branquinho e corado, robusto e vistoso...o que se põe com viço e cor... o que é novinho em folha...isso é a beleza!
        - Mas pode haver discordâncias nisso, Majestade?
        - Não vejo como! Ademais, o que é belo é belo! E há de ser para qualquer um!
      O menino, conhecedor das histórias e das personagens, pediu para que um bedel trouxesse uma poltrona antiga, rota, cheirando a lixo.
       - Há beleza nessa poltrona velha e encardida, Majestade?
      - Claro que não! Não vê que é apenas lixo? Tire isso agora da minha presença, que já está me ferindo as retinas!
      - Pois devo dizer que achei essa poltrona no lixo. Fiquei curioso, porque há nela o símbolo da família real.
         - Minha família?! - pasmou-se o rei.
        - Isso mesmo. Descobri, depois de algumas pesquisas, que essa poltrona, rota e encardida, pertenceu a sua mãe, a rainha, que Deus a tenha em bom lugar!
         - Minha mãe? Eu amava minha mãe... que saudade!
        - Eu sei. Todo o reino sabe disso. E era justamente nessa poltrona que sua mãe cantava para que Vossa Majestade adormecesse com os anjos. Era nessa poltrona suja...
         - Não diga que é suja, por favor...
         - Era nessa poltrona que a rainha, mãe devotada, dava-lhe de mamar, enquanto lhe contava histórias de trancoso.
          - Ainda me lembro das histórias...e da voz suave e melodiosa de mamãe...
          - Então, majestoso, que me diz da poltrona? Devolvo-a ao lixo.
          - Nunca! É a poltrona mais preciosa que existe! Em todo o reino, não há beleza igual!
           E assim o rei compreendeu que existem várias maneiras de se medir o valor das coisas. Nem sempre o que é belo para um pode ser para outro. É preciso conhecer para reconhecer, pois a primeira impressão normalmente é a que cega.

terça-feira, 6 de março de 2012

Silêncio e mudez


           O tempo, esse emaranhado de ponteiros farpados, não mais que uma ilusão, uma criação humana para justificar ausências ou distâncias. Com o tempo como fiador, fiz de minha vida um vazadouro das gentes que encontrei. E não foram poucos os que usufruíram das minhas indulgências. Mas, de todas as sombras, algumas poucas persistem, a despeito da escuridão que nos impele a fechar os olhos. E encontramos palavras insossas, como se servissem à cura de um doente. Para quem escrever? Ninguém. As saudades nunca me desafiaram. Ademais, que perda de tempo esperar que o mundo acorde de susto porque sussurramos em seu ouvido. Palavras, pessoas, não há diferença. Não passam de sussurros. Escreveria cartas de amor se soubesse como gritar. No entanto, sinto-me seguro ao acompanhar de longe. Não me ensinaram a amar em voz alta. Minhas professoras do primário, dedicadas ao ofício, obrigavam-me a ler em voz alta textos os mais ousados possíveis para uma criança de sete ou oito anos. Mas, quando comecei a ler o mundo, não tive coragem de participar minha leitura.  Afeiçoei-me aos silêncios. E silêncio não é mudez. Escrever é minha forma de incomodar a quietação das coisas. Às vezes, aceito textos por encomenda, assim como admito pessoas pela mesma condição. E assim me traduzo no que não sou. E o que não sou é outra face, o que desconheço em mim. Buscar no outro a matéria necessária à criação impossibilita um retorno incólume. O que há de fato é o que sobeja. Se existem palavras de amor, de ódio, de amizade, creio ser possível dizer das palavras de silêncio. Essas me conformam. Em breve, bradarei cartas sentimentais. Como os antigos românticos, sentir-me-ei liberto com isso. É o mal de todos os séculos. A palavra vale nada se não for libertação.