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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O abraço imprevisível



        Minha relação com a vida é, ao menos em boa parte das horas, um tanto desastrada. Diferentemente de outros por aí, costumo seguir pela antiderrapância das calçadas baixas e recém-capeadas, perscrutando com a ponta de uma bengala imaginária cada centímetro possível para não encontrar surpresas no caminho. Entanto - talvez por ordem desse apuro excessivo - nessas viagens aparentemente seguras, é inevitável que o imprevisível irrompa. Aliás, não menos pelas vezes de um bom jogo de palavras, nada mais previsível que essa inevitabilidade.
       Uma das vezes em que experimentei essa ruptura foi no mais corriqueiro dos acasos. Era começo de tarde, e o cenário, uma rodoviária: o entra-e-sai de sempre, bagagens amontoadas, crianças correndo, outras chorando alto. Uma rodoviária.     
       Ao pino do calor, eu aguardava a condução que me presentearia com infindáveis quatro horas de viagem. Chegava a duvidar do relógio, que insistia em apenas dez minutos de atraso do ônibus. Impaciente, começava a ser tomado pela sensação de que não deveria estar ali, de que alguma coisa poderia dar errado - tantos acidentes noticiados! sei não, mas, se pudesse escolher, não gostaria de morrer assim, num ônibus de viagem, uma batida violenta, um incêndio, uma capotagem, ninguém escapa! morte coletiva! parece casamento coletivo, perde a solenidade, vira algo impessoal, um número: não se pergunta quem morreu, mas quantos!
       Então, de alguma verdade ainda não dita, ele apareceu. Um homem apenas, pedindo trocados a um e a outro, entornado em muletas, arrastando-se entre os que por ali, assim como eu, esperavam impacientemente. Até aí, nada de se registrar, mais um desafortunado tentando a sorte com a boa vontade alheia. Mas ele não pedia apenas. Ele contava sua história. A voz quase não saía, mas aproximava-se o quanto seu interlocutor permitisse para poder se comunicar, mostrar suas feridas, algum receituário médico, caixas de remédio.
       Entre as gesticulações e a afecção da  voz, alguma coisa se entendia. Era filho de qualquer cidade interiorana, tinha fome, apanhava dos seus pares, sentia-se mal, dormia pelas sarjetas, não bebia. 
       Muito mais do que um trocado que fosse, ele queria mesmo era conversar. O problema é que ninguém se propunha ouvir. Dar uma moeda, uma cédula de pouca monta, tudo bem! agora, disponibilizar tempo, ter atenção a uma criatura que não passa por invisível pela ousadia de insistir em contar sua vida, isso já é demais!
         Mulheres torciam o rosto, como num entojo. Pareciam incomodadas com o cheiro. Não o que se capta pelas narinas, mas o que é despertado pelo que se vê, ou melhor, pelo modo como se compreende o que é visto. Não seria, pois, o odor, mas o que aquele homem representava naquele instante. Era o fartum da miséria, que interrompia as conversas, mudava os assuntos, desviava rotas! uma miséria que solicitava atenções, que registrava sua origem, que relatava seus sofrimentos!
          Homens não desertavam de seus lugares. Irritadiços, mantinham-se firmes, fingiam ter atenção, despejavam trocados. Repeliam com veemência qualquer insistência. Se recebeu moeda, o que mais quer? o que mais pretende com esse palavreado todo? 
         Foi quando o pobre homem, já despejado pela maioria, estancou nas muletas por uns minutos. Tirou o boné e o suor da testa. Inevitavelmente, amunhecou. 
        Mas o imprevisível veio e tinha bigode. Chegou-se manso, sem sustos iniciais. Estirou a mão, não para dar moedas. Queria mais. Ouviu atentamente as histórias do outro, acompanhou-lhe os gestos longos, vasculhou-lhe as feridas. Tudo isso sem ares de surpresa. Por fim, com o ônibus já na plataforma de embarque, aproximou-se do senhor de muletas e abraçou-o sem pressa. A partir dali, eles não mais pertenciam àquele lugar. Eles se pertenciam.
         Não se poderia prever esse abraço, como não se prevê a forma que a nuvem vai nos trazer daqui a alguns minutos ou os desenhos que a água da chuva deixa ao escorrer pela parede do quintal. O certo é que, para essas imagens existirem, tem-se que acreditar nelas, buscá-las, imprimir a elas um necessário toque de realidade. Assim também deve ser feito com os que nos estendem as mãos. Às vezes - apenas às vezes - é preciso romper a casca etérea dos planos distantes, das pretensões vagas, dos sonhos e vestir-se do alheio, sem distanciamentos acadêmicos ou compaixões monásticas. Talvez, ao mundo, um abraço baste para iniciar uma revolução.
               

             

quinta-feira, 31 de julho de 2014

estranheza

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas as minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
Hilda Hilst 


         cultivo algumas familiaridades com o tempo,
         dou-lhe de beber e, quando sobra, de comer,
         deixo-o teso, ereto como num primeiro abraço,
         finjo não tê-lo, importar-me, reportar-me,
         traduzo-o em saliva, em cheiro acre,
         virginal, adenso-o.

         minha parede não suportaria um Van Gogh,
         minha fibrose septal prefere o desvelo de ser
         uma cicatriz em forma de estrela
         do lado esquerdo do coração,

         minha biblioteca é módica, de papel apenas,
         os filmes que coleciono não são cult, mal sei deles,
         senão os poucos trechos arremedados na memória,

         minhas mãos não são grandes o suficiente 
         ao ponto de fazer a menina levada dormir,

         não sei dos teóricos, nem eles de mim,
         meus triglicerídeos estão em pleno sangradouro,
         meus músculos faltosos rejeitam exercícios,
         nunca senti o peso de uma arma de fogo,

         minhas pernas não se enrijecem por nada,
         nunca entrei num avião ou num trem,
         não sei mais dos livros que o suficiente,

         deixo a quem queira a tarefa de escolher nomes
         para os que ainda não os têm
         por não terem ainda chegado,

         não saberia me comportar em bistrôs, num petit déjeuner  
         ou dîner,
         meu paladar é excessivamente pífio, piegas,
         não me acomodo em grifes,

         minha sobrancelha de nada vale que me imprima ares de coerência,
         nunca errei suficientemente ao ponto de ser  perdoado por vezes a fio,
         sustento mimos do presente, 
         do passado, apenas colesterol em demasia,

         se vou, não mais volto, que não resguardo voltas,
         não curvo o joelho por formalidade,
         à distância, minhas falhas ampliam-se,

         costumo perder sonhos, exceto o que me traz a imagem
         da mulher feliz ao lado de quem ela, por disposição, amou,

         sinto imensa falta do torpor, do cansaço morno dos bares,
         da fumaça que, por me queimar, me salvava,

         não procuro a fonte das palavras,
         que, para mim, as origens corrompem-se na busca,

         ninguém mudou a vida por minha causa,
         não me encolho por amor ou raiva,
         não ensinei nada verdadeiramente inesquecível a ninguém,
         tenho medos também, meu tempo sempre foi agora,
       
         acredito, tolamente, estar na palavra o motivo de todas as ações,

         nunca me aceitaram os defeitos ou me relevaram os erros,

         sou tedioso como o tempo
         que segue em passos desastrados:
         vez em quando a hora suplica um afago,
         ainda que por fingimento.
         

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Crônica a perder-se no tempo



          Em outras ditas, perceberia o tempo como uma injeção mal aplicada na veia. Um inchaço, uma gangrena. Chegava a ouvir as desditas das horas, ter com os ponteiros intermináveis conversas, muitas vezes noturnas, campeadas por lâminas afiadíssimas e persistentes delicadamente postas sobre a pele. Os dias irradiavam uns longes de esperança que incomodavam, e tudo que restava das páginas rotas do calendário era uma solene presença do que não se viveu. 
           Ainda assim, pelas conveniências dos instantes, confortava-me a ideia da antecipação, de poder, paulatinamente, estrangular a fonte de todas as dores. Por essa convicção, dei-me ao trágico e descobri na fumaça lenta dos cigarros a inspiração que me faltava para encarar os dias da maneira mais covarde possível. Entanto, nesse bordado às avessas, criava as mais falsas circunstâncias de amparo, o que, de certa maneira, devolvia-me algum prazer. Se os tantos anos aspergindo as sabe-lá-quantas substâncias tóxicas do cigarro abreviariam abruptamente o porvir, os momentos mais pungentes da criação nasceriam desse sfumato. Palavras e mais palavras escorreram pela lividez das virtualidades, que algo havia por escrever, embora nem sempre houvesse necessariamente algo a ser dito. O véu alvacento dos fumos descortinava-se à frente, revelando certa aspiração de valentia que, na verdade, não passava de algo como desamparo. Sobreveio uma sensação de brevidade, uma crença de que minha existência estaria limitada aos quarenta anos. Os vícios, pois, aproveitaram-se dessa desesperança e fizeram de mim colmeia. O tempo, por demais curto, cobraria as dores da inexperiência, perpetuaria em meu desânimo as flores amarelas do irrealizável, tornaria os ossos frágeis e a respiração ofegante de cansaço.
            Ironicamente, esse mesmo tempo, arraigado no pleno exercício do esquecimento, é o que me impele a esses devaneios. Em vez de tratá-lo como simples período de duração das coisas, posso tê-lo em outras acepções, como a que é empregada pelos que plantam e colhem, pelos criadores de animais, os que preveem o amadurecimento da vinha, o cio dos vacas. Nesse sentido, o tempo é comensal, oportuno sem ser oportunista. Agrada-me a comparação com a fruta de vez, suculenta e adocicada, à espera de ser devorada. Apesar das intempéries, o que é da estação irrompe, eclode por ser de sua natureza partir a casca, transpor o envoltório. Decerto, nem todo fruto torna-se alimento. Alguns se perdem no limbo, enlameiam-se pelas veredas, tornam à terra e enriquecem o solo. Ainda assim, nesse pensamento, cumprem sua sina de vida. Nem todo ser que rebenta resiste ao caos da existência. Entanto, seu corpo alimentará outros bichos ou servirá de húmus. Esse é o tempo que me apetece.
             Há exatamente um ano, fiz as pazes com o tempo. As horas, outrora lancinantes, sentaram comigo à beira do abismo e, da maneira mais afável, deram-me de ombros, como se esperassem em troca um agradecimento ou, ao menos, uma cortesia. Foi neste tempo de borrasca e calmaria que reconheci Maria, que me veio sem relógio, cingida pela voracidade dos que apreciam as coisas mais simples que o mundo pode oferecer. Em um ano, amei, noivei, casei. Como estivesse escrito, os passos seguiram rumos tão naturais quanto os de uma fruta temporã. Pela primeira vez, a cancela do futuro se abriria, e as Parcas, irmãs fiandeiras, zelariam pelo novelo que me determina o destino. Há um ano, decidimos caminhar lado a lado. Certa vez, Maria me disse que o importante é ter um ao outro, em seja qual for o lugar. Como aprendo com Maria! E o tempo, a despeito da ferocidade, amansou-se. Há um ano, graças à Maria, o tempo me presentou com o amor que sempre quis ter. Há um ano, Maria docilizou o tempo.  

sábado, 21 de junho de 2014

Crônica a bem da felicidade



          Como expugnar o que, na maioria das vezes por pura conveniência, convém tachar de felicidade? Pelos poucos anos que a vida me ofereceu até agora, talvez muitos perto do que ainda me resta, aprendi pouca coisa sobre essa estranha sensação de satisfação plena. O fato é que, para ser feliz, penso eu, é preciso estabelecer metas, ou não, que se danem as metas, mas é necessário ter o mínimo de fé naquilo que, por acasos ou certezas, poderá trazer os segundos de paz necessários ao reconhecimento dessa tal felicidade. 
           Creio que o passo mais urgente para encontrar trilhas suaves que levem à felicidade seja estabelecer um pacto fronteiriço com o futuro. Para isso, é de bom grado romper definitivamente com os acordos do passado, criar vínculos novos e limpar de vez a poeira do tempo que insiste em se acomodar nas gavetas. Para ser feliz, tese minha, tem-se que desobstruir artérias e, em alguns casos, implantar marcapassos. Como diria meu saudoso pai, não pode faltar sangue no olho, coragem de reagir, indignação de ruborizar a face. É como saciar um vício há muito desamparado pela abstinência. 
          Há quem vincule felicidade a amor, à religião, ao encontro, à perda, à esperança. Entanto, melhor mesmo é destinar ao tempo os principais motivos para ser feliz. E o tempo, esse personagem de farsas, caminha lenta e melancolicamente, desliza impressentido pelas horas, em voo brando, como as corujas no nosocômio do velho contista. Às vezes, falta-me tempo de escrever, de doar um pouco mais de atenção ao amigos, de ser pai afetivo ou marido dedicado. Os ponteiros me fogem, riscam os dias como para lembrar que, a cada translação, a vida se esvai, os natalícios deixam de ser importantes, as datas comemorativas perdem o amadurecimento prematuro. Tenho pés e mãos cansados do tempo. Os joelhos, sobretudo o esquerdo, doem. Sinto profundas oscilações de pressão. O tempo me cobra, me enerva. Contudo, foi nesse mesmo tempo, eivado de frentes frias, que me desatei a ser feliz. Encontrei aos poucos, que sempre me dediquei ao exercício da impaciência, razões sólidas para crer na constância da felicidade. O que me veio, muito a conta-gotas, sem vexame, foi como uma exortação do tempo, uma singela advertência de que as oportunidades, essas que vêm e vão num piscar de estrela, existem e merecem ser aproveitadas da melhor maneira possível. 
             Não posso, em verdade, apalpar as frutas de vez de cada pé para testá-las o amadurecimento. Sei das que cultivo. Assim, digo do que me faz feliz. Certamente alguém há de se reconhecer no que exponho. Outros apenas desconhecerão. Devo dizer, portanto, que os pontos fundamentais de minha malfadada explanação sobre a felicidade não se encravam em paredes suntuosas, roupas de grife ou automóveis de luxo. Deixando de lado a pieguice, entendo que, de nada vale a mais ininteligível das mansões, se não é possível tê-la como um lar. Todo lar é erigido sobre a égide da família. Não me contenta uma marca caríssima do mais fino tecido de seda Charmeuse, se o que pretendo mesmo é correr nu pela praia. Isso sim é liberdade. Carros de alta escuderia não me impressionam. Ideal mesmo é uma estrada e uma cabocla com a gente andando a pé. 
             Agora, justiça seja feita, não existe sensação mais eloquente do que a de saber que somos o motivo da felicidade de alguém. Esse é o ponto. Acordar de madrugada para velar o sono de quem se põe ao seu lado, surpreender com uma palavra de abrigo, acarinhar sem esperar nada em troca, utilizar todas as impressões sensoriais para dizer que ama, elogiar, perdoar, recordar, esquecer. Se o tempo é por demais curto, estendê-lo com gestos de carinho e amparo é uma boa saída. Até que mais poderia ser dito, mas paro por aqui. Estou um pouco atrasado. Preciso urgentemente aguar a felicidade das pessoas que amo.  

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Carta à Maria, por seu aniversário.




          Amor,

       Nasço contigo. Passaram os dias em águas tão mansas, tão demasiadamente leves, como dedos de mãe, que me distancio a contragosto e, assim mesmo, alcanço teu cheiro de maracujá. As ruas emolduradas de gentes famintas levam teu nome; por teus olhos, entre ternura e espanto, levantam-se os meios-fios com cartazes e palavras de ordem, que tens a trena da mudança. Tua delicadeza caligráfica ergue-se em letras navalhantes, circuncidando a alma escandalosa dos políticos. Não há discurso, por mais torpe, que em ti não encontre aprumo. 
        Os anos nos abraçam e nos confortam, como se estivéssemos em coma, sem movimento qualquer, sem voz que fosse, apenas a faculdade da audição, o suficiente para manter viva a esperança de um novo começo. Por teus passos, descobri a razão das lendas que encantam, dos mitos sobre os quais se erige o germe do sonho. Nasceste assim, feito sonho. Vieste ao mundo pelo acaso dos encontros e nunca deixaste de regar tuas raízes, nunca afiaste suficientemente o fio do rancor; ainda que sem tempo, ou mesmo razão, não julgaste os atos levianos que sucederiam por correr em tuas veias sangue alheio. Em ti, resguarda-se a sina da compreensão. Por isso mesmo, estreitaste os laços genéticos com atitudes de extrema maturidade, com desproporcional obstinação por orgulhar os entes queridos, com eximia habilidade de mãe, ainda que tão menina quanto os que em ti depositavam olhos lactentes. Aos poucos, teus braços rijos transformaram-se em colunas jônicas a sustentarem os templos onde os teus, cegos ainda, rogavam a um deus desconhecido. Tua face, encantatória e venusta, passou a chamar a atenção dos viventes. Entanto, é em teus gestos de profunda nobreza que os dias se desenham. Apesar da perfeição íntima de tuas carnes, buscaste no rigor da simplicidade os motivos de teus passos. Assim, passaste a ser responsável por tudo que te é caro e, a um só tempo, doloroso. Se não tiveste livros novos, mantiveste a vontade de aprender; se não recebeste o primeiro abraço, conservaste a importância de defender os teus; se não foste presenteada com a melhor máquina, jamais viste o mundo de forma maquinal; se sofreste pelas mãos dos que te prometeram amor, procuraste motivos e não culpas; se o passado te obscurece, lançaste luzes sobre o futuro; se as mãos cerravam-se em tua direção, criaste, por isso, uma nova maneira de cumprimentar; se poucos te guardaram amizade, provaste a eles que não estavam sós; se o tempo empacou, quebraste relógios; se espelhos não havia, descobriste a beleza nas poças d'água, após a chuva; se duvidaram de tua força, aprimoraste tua erudição de mestra. 
           Morena, de traços modernistas, trouxeste contigo o destino de todas as brasileiras. Saíste de tua terra com a mala entupida de dúvidas. Pela janela do ônibus, descobriste uma cidade movediça, eivada de solidão. Tua alma de sertaneja tremeu por um instante. Em teu nome, cultivaste o amparo necessário. Maria. Maria de todas as formas que se poderiam conceber. Maria da Aurora. Maria do Desterro. Maria das Dores. Maria dos Prazeres. Maria dos Remédios. Maria da Esperança. Maria de Deus. Nesse nome, que cinge o destino de tuas ancestrais, percebeste os motivos vários de teu novo destino. No proscênio dessas horas desgovernadas, entrei em tua vida, feito texto antigo que se perde, por descuido, na gaveta da cômoda. Quando notaste o lugar sem vida que te aguardava, ornaste as esquinas com flores russenses, com peixes coloridos; azulaste o céu e estrelaste a noite. Aos poucos, o mundo tornou-se mais familiar. A partir daí, já sem medo, sem tantas dores, propuseste um pacto à vida: virias a ser a primeira, não por vaidade, mas por compreenderes que, assim ocorrendo, poderias amenizar os caminhos dos teus. Choraste porque os grandes choram. Sofreste porque é doloroso plantar em solo arisco. Temeste porque é preciso respeitar o mar antes de singrá-lo. Até hoje, depois de tamanhas batalhas, na sua maioria vitoriosas, trazes a grandeza da fé. 
            Em teu aniversário, Maria, desejo-te banhos de chuva no quintal de casa, manga verde com sal, noites em sonhos macios. Desejo-te palavras de alento, ruas sem sinais vermelhos, coletivos sempre vagos com lugar à janela. Desejo-te um abraço silencioso de mãe, um conselho certeiro de pai, um olhar remoçante de irmão. Desejo-te a hora precisa da amizade, o elogio despretensioso dos mestres, o pelo suave de tua cadelinha Pit. Desejo-te a batida desesperada de um coração surpreendido, a lágrima incontida em um instante de certeza, a cheiro morno do café de tua avó Maria. Desejo-te outra viagem inesquecível, o vinho tinto suave em meio à cerração de Guaramiranga, um banho de mar à noite. Desejo-te um poema de Adélia Prado, uma foto com Lenine, um dedo de prosa com Lula . Desejo-te uma casa de paredes ensolaradas e muitas janelas, uma varanda voltada para o oriente, uma cadeira preguiçosa posta à calçada no final da tarde de domingo. Desejo-te surpresas mil por parte de teus amigos, o contato inesperado de alguém querido há muito distante, as estórias cor-de-infância de teu avô. Desejo-te a seiva mais doce, a praça mais iluminada, o conforto mais insistente. Desejo-te um dez com louvor, o abrigo dos anjos da guarda, a proteção de todas as santas ditas Marias. Desejo-te um mundo sem trevas e fomes, faces sem cores, madrigais sem rimas obrigatórias. Desejo-te muito mais tempo. Desejo-te vida em vapor pleno. Quando não mais por aqui eu estiver, continuarei desejando-te. 
              Feliz aniversário, minha vida. 


segunda-feira, 14 de abril de 2014



          O alento desmedido da aurora tecia as horas, conspurcando-lhes a genuinidade. Todas as manhãs assim seguiam, irresolutas, com o amargor do anteontem; a piçarra estendia-se ao correr das vistas A claridade ofendia as retinas, que se esbranquiçavam em manchas algodoadas. Os pés nus do caboclo e o leito rachado do açude do Careta davam-se como amantes antigos. Os bichos e os homens sustinham-se nos ossos. A terra era sem forma e vazia. E houve luz. Maria do Amparo, filha do artesão dos pífanos, cuidava de buscar água no barreiro. Maria Caçula atiçava o fogo, que era ofício seu dar gosto ao feijão. Água e sal. Botava olho também nas três curuminhas mofinas que teimaram em vingar na salmoura do tempo. Maria de Jesus, a mais velha, cambitos finos, mirrava-se no terraço - de tão magra, não tinha sombra;  Maria Mercês, nem grande, nem pequena, olho espantado do sopro abafadiço que corria no terreiro (hálito do coisa ruim!); Maria dos Anjos, arruinada por uma doença que a impossibilitava de andar e falar, escaveirada. De não mais caber vivente, o sítio, de nome Comum, ainda guardava em sua taipa a velha Maria Mocinha, arguta e senhora dos interesses alheios. A comida escasseava. Lá vinham os baldes com lentidão, debitados nos braços de Amparo, a mais rija das Marias, descabimento de força.


continua...

          

domingo, 2 de março de 2014

Soneto por amar demais




         Amo demais, mas nunca fui de amar.
         Encanto-me pouco, entrego-me menos,
         Canto, sereno, o essencial do tempo,
         Procuro no porto a razão do mar...

         Amo demais, que já nem sei parar.
         E esse amor vem demasiado intenso,
         Solúvel em sonho, óculos pensos,
         Peitos de louça, coxas de alforjar.

         Perco-me, às vezes, por poucos segundos,
         Por essa piçarra serpentinosa
         E fronteiriça de carne instintiva.

         Nesse vulto, sincopado e fecundo,
         decomponho desejo em rima e glosa,
         sinto o corpo sangrar em alma viva.
         

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Quando Ela chegar, quero estar acordado!


       
               No poema, cabem os meus, os seus,
               as partituras rotas dos que se movem nas procissões,
               as mãos indulgentes das primeiras horas,
               a dolorosa metamorfose da aurora que grita instantes
                                                                            e sua sangue
                                                                            sem fé.
               O cais parte, deixando os navios à deriva,
               que as palavras desorientam os maus, os bons:
               os jovens lacrimogênios e seus coquetéis de esperança,
               a água vertida do peito nu da menina sem sexo,
               o baixio abarrotado de homens e suas presas lancinantes.
           
               Poesia
               é o amor pela menina de olhos postos em tudo que passa,
                                                                             que eu não passo
                                                                             de um átimo;
               é a atmosfera livre e renitente das telas amarelecidas de cansaço
                                                                             e asco;
               é o encontro noturno e o abraço de novo, embora antigo.
             
               A palavra forma regaços, vãos que levam ao riacho seco:
               existe ali um riacho, mesmo sem a condescendência da água.
             
               Sous peu, 
               de tudo, ficará uma lembrança esvaecida, sem detalhes,
               um vulto no espelho, uma voz sempre à mesma hora,
               uma prosa peregrina, sem cisma
               nem cor.
             
             
             
             

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Lundu



Inda me tenho menino,
desses bem pequeninos,
na porteira do curral.

O gado mói vicejante,
boi de olho cintilante,
que o céu deu de pingar.

Meu amor tem a cor
da piçarra molhada,
do café guardado em lata,
da cacimba, do floral.

Meu amor tem a dor
das noites do interior,
das estórias do avô,
do escuro do quintal.

Meu amor tem a voz
do golinha, do campina,
do açude na neblina,
do grilo no milharal.

Meu amor tem a foz
no pranto do pai ausente,
no suor incontinente,
no banho rudimental.

Meu amor não acredita
quando bendigo do boi
que cintila pela chuva.

É que, no olho do tempo,
inda me sinto menino
por causa do meu amor.



domingo, 5 de janeiro de 2014




o tempo dá novo impulso à verdade,
e os olhos possíveis, em cores vivas,
são procela! Cá estou, sempre à deriva,
sem cais ou vela, singrando a saudade.




quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Sob o olhar atento das baleias




         Seus olhos são lindos. A palavra, quando dita, deixa de ser sã, perde o apuro, a pureza do literal. O que é de dizer finca-se no tempo e, depois de dito, aninha-se na memória e pia de bico aberto, à espera do resgate oportuno, e a criação reside nesse ato. Ao dizer dos olhos, outra coisa irrompe, algo que não se esperava por ser aprumado demais, um lastro tão desalmado, tão insistentemente engodado no desejo, que faz dos olhos o que não são: olhos. 
           E o olhos estavam lindos no dia de sua primeira comunhão. De vestidinho branco, motivos em flor, ombros curvos à mostra, segurando sem firmeza, na ânsia de esconder o rosto, o livreto de cânticos. A boca mexia-se por obrigação, orientando-se pelos movimentos das menininhas que a ladeavam. Eu estava lá. Manhãzinha cedo, pequena demais para entender, enquanto tentava abrir a porta corrediça da loja, sentiu a aspereza das mãos enojantes do bêbado conspurcando-lhe a inocência. Eu estava lá e nada fiz. Quando o primeiro namorado prometeu-lhe o impossível, sabendo-se resistente a tudo, menos à verdade, mal contive o ciúme. Durante a viagem à capital, obrigada a envelhecer dez anos, longe da avó que a criara, próxima demais da cidade que se distanciava, continha lágrimas e prenunciava uma força descomunal. Na cadeira ao lado, o homem de chapéu era eu. No colégio, sentada como se empoleirasse os ponteiros em seu colo, devidamente alijada na primeira fileira do lado esquerdo da sala, desviava-se dos olhares céticos de sua presença. O professor curvado e magro a contracenar com ela era eu. Na volta para casa, diante da imensidão da avenida movimentada, sem saber como passar pelos cardumes de automóveis, alguém decidiu estender-lhe a mão para ajudá-la a atravessar. Em um dos carros que passava, eu apenas observava com ternura.  
          Outras sucederam, e os olhos continuaram. As cenas que velei emolduraram-se nesses olhos, que são avistamento de baleias, essas gigantescas criaturas, suaves como a própria paz, que passam raspando os catamarãs e miram, quase em reverência, os rostos dos que, a partir daquele momento, aceitarão da forma mais encantatória a própria pequenez. Velei, feito anjo, cada envergar desses olhos, que estive presente em todos os instantes - as birras de fome, os livros da estante do avô, os cavalos reais e imaginários, o único beijo no escuro do cinema, o avião pressurizado e congelante, o passeio de charrete, o amigo insistente a tornar-se amante. Estive, por crença, em todos as moradas, nos silêncios e nas palavras sincopadas dos primeiros seminários na faculdade. Abri mão das asas para que os olhos de sempre permanecessem etéreos. 
        Olhos de bom-senso não creriam em anjos. Entanto, por essa mesma racionalidade, é possível compreender. O acaso diz dessa verdade. Vez em quando, mesmo em risco, procurar notícias. Marcar datas. Guardar frases. Perdoar. Eu estava lá. Mas anjos surgem, revolucionam e partem. Eu pretendo ficar. 
       As baleias embalançam as águas, agitam os barcos. Assim são seus olhos, que reagem aos pensamentos, que se curvam em oração, que latejam por mudanças. A criança que viaja do solo aos ombros do pai são seus olhos. O balanço de pneu no quintal são seus olhos. Quando reouver as asas, poderei partir, não sem antes ensiná-la a voar. Dessa forma, se desejar, poderá seguir comigo pelas vidas que anseiam mudanças, para que todos se curem nas promessas desses olhos. É que seus olhos são lindos.