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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Infortúnio


Sou breve como os dias da infância
que só existem nas histórias maternas;
um cego de nascença diante do desconhecido odor
de um arco-íris;
um enfermo resignado, sem fé, implorando por misericórdia;
uma palavra pálida, acorrentada ao dicionário, sem qualquer calor;
um desejo de calar os gritos do mundo
e entender o silêncio das paixões;
sou de durar pouco, sem deixar sequelas,
e os que me detêm não reparam
a impassibilidade com que lido com a vida.




Nênia


Devorei algo do tempo!
Olhos que há muito tingem a memória, já retinta,
em tantas retida, reescrita,
submergem nas gotas suavemente postas
sobre a face
para sorvê-las todas
e devolvê-las à fonte,
que o apetite é insaciável,
que a fome percorre a veia e redimensiona
o fluxo.
Tudo esvaeceu ao encontrar-te, flor breve,
que em mim reprofunda tua imagem
e repousa um sentimento mitificado por não ser
e ainda tê-la verossímil.
Pela desdita das palavras,
muitos se perderam ao cair de tuas asas,
ruinosos acalantos de ninfa.
Que a lápide de teus passos indicasse
o abrandamento das procuras,
desejaria ter contigo,
porque em mim perdeste o senso
que me pertencia.
Precingiu-me o amor,
vertical e cômodo,
mordaça que o espelho sabiamente nos impõe,
enquanto uma claridade multicolorida
emoldura o ocaso.
  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O parto


          A mulher prosseguia, farejando coisa qualquer nos lixos. Nos braços, mal se via carne, apenas rejeitos e a pele frouxa como as mangas de uma camisa. A barriga além da norma. Sentia o tempo de a cria despontar no mundo. O companheiro ia no encalço. Precipitava-se nos sacos de lixo com voracidade. Os dedos como tentáculos. Era noite. Separava garrafas plásticas, pedaços de cano e pão. Sentada no asfalto, a mulher tentava acender um toco de cigarro. Como se quisesse encontrar algo, avivava os olhos pelo betume. 
          - Tá na hora!
          Abancaram-se em uma praça. Caía uma chuva fina. No corpo escuro e sem carne daquelas almas, os pingos reluziam. A mulher tomou assento em um banco de concreto, sem encosto. Baixou a cabeça, lastimou-se pela fome. O outro apenas esperava, acocorado, devorado pelo anseio de vasculhar o enorme tambor de lixo à sua frente. 
           Um fartum tomava conta da cena. Escorria pelas pernas da mulher uma substância rançosa. Curvada sobre o ventre, soçobrou. Deitou-se sobre a pedra fria, sem muito esforço. Virou-se de lado e cuspiu. Fez deslizar lentamente a saliva até o chão. Mijou. O odor fétido atraía mosquitos. Abanava as pernas ora para um, ora para outro lado. 
            Era tempo. O rosto sem expressão. Espremeu-se, expelindo do útero uma criatura murcha, sem pelos, pálpebras riscadas de veias, esboçando movimentos em meio ao sangue e à urina. Não chorava. Apenas emitia sons que se assemelhavam aos de um porco. Mas estava vivo. 
            O homem levantou-se devagar. Mirou a cria com indiferença. Pensava no que fazer para saciar mais uma boca magra. Limpou do rosto um resto de chuva, esquadrinhou a sacola e encontrou um pedaço de pão. Seco. Deu ao recém-nascido, que lambeu como se reconhecesse o gosto. Em seguimento, enlaçou-o com os dedos e levou-o até a mãe. Era leve. Contava-se cada costela. 
            O semblante era o de quem agoniza. O pequeno ameaçava um choro mais exaltado, mas faltava-lhe forças para tanto. Eram dois seres exauridos, mãe e filho. Com cuidado, o homem tratou de desabotoar levemente a blusa da mulher, expondo-lhe as mamas sem viço, uma pele mole escorrendo pelo abdômen. Largou o pequeno sobre a mulher e deixou que o instinto indicasse o caminho. Não demorou, e o infeliz principiou a sugar com sofreguidão o seio inerte da mãe. Excremento, chuva e algo de leite. 
             Vendo que as coisas se resolviam, o homem reencontrou o tambor de lixo. Ali, esquecida em uma sacola, uma quentinha, com um pedaço de frango e arroz. Achou também a metade de um cigarro. Novamente acocorou-se.  Fumou. Demorou-se no tragar, mirando de instante em instante o que ainda restava do cigarro. Não tocou na comida. Deixaria para a mulher. O pixote não vingaria, pequeno demais. Retornou ao ofício. A chuva aumentava. No lixo, um lençol. 
              - Eta lixo abençoado!

             

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Receituário



Fechar a mente, senão entra mosca;
calar a alma, partitura tosca;
deixar o enredo misturar-se à roupa;
olhar de banda para não dar sopa;

Ser Natal de dia e carnaval à noite;
Fingir que é gente pra escapar do açoite;
Cair nas graças de quem te apedreja;
Saber que a vida, quando quer, pira e te despeja;

Acertar os ponteiros no céu de Dali;
Levar um tapa na cara de Mahatma Gandhi;
Gritar injúrias no ouvido direito de Bethoveen;
Dar um tiro em Bob Marley por negar One Love;

Bababarizar os filhos com marcas genéricas;
Injetar fast-food direto na artéria;
Chorar ao ver a corte do Maracatu passar;
Lembrar que o dia é hoje e que amanhã já não dá;

Fazer pazes com o espelho antes que ele se vingue;
Virar índio, ter um cão e batizar de Sting;
Magoar não por maldade, mas por estar na moda;
Entender que, mesmo morta, toda roda é roda;

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Sobre as primeiras vezes


          A primeira vez em que chorei ensinou-me a reciclar perdões, a abraçar os antigos medos como se fossem velhos amigos dispostos à vigília, a pagar todas as dívidas antes que se tornassem inimaginavelmente dolorosas; a primeira vez em que amei deu-me noção de como somos microscópicos diante da ausência, mesmo que cegamente nos agigantemos, crendo estar no outro o derradeiro encontro de todos os caminhos; a primeira vez em que feri revelou-me a proporção verdadeira de um eu esgotado de farpas e arroubos, disposto a esfacelar tudo que se diz espelho por nunca ter reconhecido o não necessário à sobrevivência; a primeira vez em que me afoguei alertou-me para os perigos de um mar há muito afastado das veleidades poéticas; a primeira vez em que morri deixou-me duvidoso sobre os benefícios de um possível retorno e uma nova morte, quiçá menos nobre, menos desejosa (dessa forma, como a desejaria?); a primeira vez em que abandonei arrancou de mim um resto de ânima, derramando-me sobre olhos sequiosos de retorno e vingança; a primeira vez em que resgatei trouxe-me as antigas formas, deformadas por defesa da memória, sem um olhar que sugira qualquer beleza, mas sempre de mãos famintas e pouco firmes; a primeira vez em que menti tornou-me animal instintivo, dotado de uma ancestral autopreservação; a primeira vez em que me entreguei causou-me asco, como soubesse ser caminho sem volta, como pressentisse a escravização em que me precipitaria; a primeira vez em que mirei a cria adociquei o futuro, maneirei a voz e elenquei todos os erros da infância para que se repetissem mansamente; a primeira vez em que escrevi angustiou-me, e a voz de nada valia, e o tempo contorceu-se, e os outros perderam a segurança do distanciamento; a primeira vez em que perdi meu pai confiou aos ponteiros a solene tarefa de cicatrizar o que sangrasse em jorro (haveria de sangrar por tempos a fio!); a primeira vez em que falhei desviou-me providencialmente da imortalidade; a primeira vez em que senti fome massacrou-me, como se antes a renúncia parecesse mais fecunda que a dor; a primeira vez em que me entorpeci incitou-me à verdade; a primeira vez em que pensei ter ressuscitado matou-me de novo; a primeira vez em que adormeci sonhou-me; a primeira vez em que sonhei adormeceu-me; a primeira vez em que criei asas caminhou; a primeira vez em que me arrancaram as pernas voou; a primeira vez em que doeu lembrou-me de todas as primeiras vezes de todas as coisas. 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

lugar cerrado



os muros erguidos,
rijos como sonhos,
retêm-me a vista
por alguns instantes.

meus olhos distantes,
cansados de ver,
encontram um passado
ferido, sem asas.

não há mais palavra,
sequer pensamento:
apenas o muro
cinzento e voraz

devorando o tempo,
detendo desejos,
por pouco inocente,
como sonho antigo.