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terça-feira, 29 de março de 2011

Incenso comum


ontem, plenilúnio,
ponteio inocente,
palavra soleira,
alazão alinde,
esmero de filha,
poema servil,
vontade ambição...

hoje, tempestade,
fel de cabeceira,
emanação arte,
aroma rosado,
roseira marouço,
grito de alegria,
hosana hosana...

amanhã, saudade,
soletude erma,
incenso comum,
liturgia dó,
verso repartido,
enervado frouxo,
debalde aspirar...

segunda-feira, 21 de março de 2011



          Procura-se um tempo perdido no sótão; tempo-menino, de rosto marcado pela nódoa das frutas de vez, das jaqueiras antigas, das ladainhas de carpideiras, dos alpendres da lembrança, da alpercata emborcada a sentenciar os entes. Pai de todas as coisas que frutificam e sofrem, trazei de volta a revoada de moleques pelo asfalto celeste, pedra recém-coberta, que é lua cheia, que o lume travesso do bojo faz cintilar o betume, e se fica sem saber o que mirar, se a lua e suas orações, se o piche e as ilusões de espelhamento. Senhor, purificai-me as escolhas, que ainda há uma vereda entreaberta, que a finória sombra das vozes eternas persiste, que o desejo de encontrar é torpor, e o mais piedoso dos homens, vestal por isso mesmo, pedra de todos os fundamentos divinos, o mais crente e piedoso dos homens olharia para trás em sina de arrependimento. Por que, em Tua versificação moderna, deixaste de compor o estribilho que simulasse a contemplação da mais espantosa Lua, nunca d'antes admirada, Lua impressionista, simulacro de todas as cores, pincelada por mãos de estiva, Lua dos que amaram para que um dia houvesse uma Lua que, de tão cheia, e pálida, e lânguida, e inédita, permanecesse em órbita sem corromper-lhe a forma, marcada no átrio como numa página de carbono?

domingo, 20 de março de 2011



       Finalmente, o ponto-final... esgarçado, tíbio, sequioso de recomeço...
         Todo ponto-final aspira a um recomeço, que não é outra senão a certeza
         de tantos novos pontos-finais...







quinta-feira, 17 de março de 2011


          se já não há como alcançar,
          contento-me com a sombra
          que me atinge no limiar da tarde.
  
          se é noite, a memória ceifada
          pelo quase-nada sorriso providencial;
          sigo a reconhecer passos antigos.

          se não houve tempo, que as mãos distantes,
          engelhadas de saudade, deem lugar a um novediço
          amar marouço maré ressaca.

          se é ontem, é favor deixar aviso
          de que a porta que dá para o quintal-amanhã
          cerrou-se, por inveja do peito.
   
         
                   

quarta-feira, 9 de março de 2011

Metades




metade é o que somos à luz das coisas,
metade é espelho.
metade do que temos é a sombra e a pedra,
metade é reentrança.
metade das vidas que segamos é a nossa,
metade é sobrevivência.
metade do caminho intercede e ampara,
metade é axioma.
metade das pernas é aragem e estro,
metade é atonia.
metade das ruas é ajuntamento,
metade é distração.
metade das ditas é prospecção,
metade é imperfeito.
metade do tempo é a presença pura,
metade é privação.
metade das horas é amputação e aflição,
metade é inópia.
metade das travessias é a mediocridade,
metade é róseo.
metade dos desejos resiste à ruptura,
metade é o que me dou: renúncia.


segunda-feira, 7 de março de 2011


E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.
Vinícius de Moraes




          É assim, nas intempéries da vida, que se descobrem veredas no resguardo da caatinga, das que fazem trilheiros sorrir pelo natural da saída ou da reentrança. Ainda que não seja um escape, que surja com essa esperança: a própria saída não é tão importante quanto a consciência de que há uma saída. O que nos resta é buscar algo por preenchimento, como um recém-nascido à procura do olho esquivante da mãe. E o que nos completa afinal? A idade aprisonada em um calabouço de memórias vãs, a juventude entorpecida de momentos ou a vaidade acolhida por um mundo de coisas e formas?
          E se voz houvesse? Não é grito o que me apetece; é fome, é desejo, é a ânsia do não-querer – raiz de tudo que nos causa dor. Não quero e desejo mais. E esse não-querer é limitação. Medimos com exatidão o que queremos, ao passo que o não-querer é imensurável. Agora, se é para fugir, que se fuja! Mas o diabo é que, ao contrário do que os sonhadores pensam – ah, sonhadores, sede o prisma do mundo! – não somos nós a perseguir os sonhos, e sim estes que nos acuam.
          Quem mandou conceber sonhos, diriam os menos instruídos em assuntos oníricos. Quem dera que fosse simples assim. Enojo-me com a bondade dos que não conhecem a vida, que esses são puros demais e tanta pureza soa-me imperdoável, tão ártica quanto um reclame de margarina. Costumo vir a público pela torpeza dos céticos. Quedo-me diante desse temeroso ceticismo, que é feito jaula a nos impor uma inútil sensação de proteção. Não são fortalezas o que erguemos, são antes prédios tumulares, mausoléus de esperanças, tolas sobreviventes.
           É na perda, no não-querer, no sonho acre, que se revela a agonia humana. Fiquemos, pois, com a credulidade, que a paz derradeira virá, cairá do infinito em plumas alvidoces, ao som retorcido de incontáveis trombetas. Quiçá surgirá da própria ignorância, da filosofia dos que não têm teto nem contralto, que vivem em perfeito sonambulismo, escafandristas da iniqüidade. Talvez se mostre na intelectualidade viril dos teóricos de plantão, que racionalizam as sombras. De que tanto me maldigo? Do amor, esse não-querer perdido no inútil vão da autopiedade.




Tia Margarida



          Quando nasci, um anjo empoleirado, desleixado por sua própria condição angelical, vaticinou: “Vai, que ensinar é tua sina!”. E o que faz alguém se tornar professor? Por que não investir nos tentadores e venturosos sonhos de menino, em vez de se encarar os tortuosos e desvalorizados caminhos da educação? Tantas são as indagações, que parece não haver quem as responda. Mas há. Sempre há. Um dia, um desses mesmos anjos fez questão de me esclarecer as coisas.
          Pelos idos do velho Liceu do Ceará, uma figura tomou para si a responsabilidade de simplesmente alterar tudo que se pudesse tachar de futuro. Uma mulher, como deveria realmente ser, única na sua forma de dizer as coisas, detentora do poder de me fascinar, mesmo nas ingratas aulas de análise sintática. Que havia nela de reluzente ao ponto de me engalfinhar naqueles robustos olhos de fumo, não sei explicar. Era apenas uma professora de português e eu, que me deixei escravizar no primeiro instante em que a vi, seu mais caloroso admirador. Por tanta afeição, nossa relação estreitou-se naturalmente. Revelava-lhe segredos, mostrava-lhe meus escritos mais íntimos e menos edificantes, e ela, em sua generosidade, tecia comentários nada breves, prolongava sorrisos, como se estivesse nas suas geniais aulas de literatura a analisar os incansáveis clássicos. Foi ela que me apresentou figuras como Clarice Lispector, Machado de Assis, Drummond. Por suas mãos passei a ter com esses camaradas uma relação mais leve, sem as arestas do distanciamento, sem os arranca-rabos pelas entrelinhas. Na verdade, passei a gostar de ler porque gostava dela. E, de alguma forma, eu a lia também. Entanto, era difícil interpretá-la. Às vezes, ela chegava triste, definhada, o vigor no olhar dava lugar a uma melancolia consentida, como se necessitasse disso, como se de toda aquela secura adviesse seu tempo de ir e vir.
          Assim era Tia Margarida, professora de língua portuguesa, mulher de palavras ágeis, arremessadas no vão da classe como cães farejadores a nos perseguir. Nossos encontros duraram três anos, e nisso quase a conheci, quase a fiz chorar quando escrevi um texto para homenageá-la em seu aniversário, quase a esqueci quando ela me apresentou o namorado, quase me deixei levar por seus cabelos ruivos – intocáveis cabelos ruivos margeando os olhos mais solícitos que já vi. Ao fim do terceiro ano, às barbas de um crudelíssimo vestibular, ela me procurou e, com o mesmo ar das iaras e dos sacis dos textos de Lobato, presenteou-me com um panfleto, no qual, providencialmente, havia grifado o curso de Letras. Tia Margarida me sorriu com os olhos. Sinceramente, não sabia o que um profissional de Letras poderia fazer em benefício próprio, mas aquele gesto me intimava. Ela jamais me enganaria, e se estivéssemos à beira do abismo e ela pedisse para pular, eu pularia sem hesitar. Todos me machucariam, menos ela. E assim fiz. Cursei Letras. Depois disso, não mais a vi. Talvez por isso mesmo ninguém mais tenha conseguido fazer por mim o que ela fez. Eu a amava porque sabia que ela amava o mundo que a cercava, e falava de liberdade e de poesia. Tia Margarida me ensinou a sorrir com os olhos. Quem faria isso hoje?
          Tempos depois, passeando com minha família em um shopping, avistei uma mulher antiga, curvada do tempo, amparada por uma senhora. Os mesmos cabelos avermelhados, os olhos de fumo ainda vivazes, as mãos pequenas de menina. Era Tia Margarida. Apressei o passo para alcançá-la. Pus-me à sua frente, segurei-lhe a mão e não consegui dizer palavra. Apenas desabei diante daquela imensidão. Com muito esforço, agradeci por tudo. Se não fosse por ela, eu não seria o que sou hoje. Tia Margarida não mais me reconhecia, estava velha, cansada, distante. Mesmo assim, ela me acariciou o rosto, sorrindo com os olhos um sorriso verde, talvez seu último. Um sorriso que tenho a obrigação de perpetuar.







quarta-feira, 2 de março de 2011



          - Que há de necessário em lembrar?
          - Quase nada... melhor olvidar...
          - Que há de justo no que é temporão?
          - Se as horas oprimem, apaguemos-lhes os rastros...
          - Que há de revelador no esquecimento?
          - Não ceder ao malho, que arriscar esquecer ainda é a mais penosa maneira de recordar.