Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 30 de agosto de 2011

 
                Escrevo pelas dores do outro, pelos vãos que se abrem, feito cicatrizes cálidas, no corpo alheio, espelho de carne. Cada palavra que liberto navalha a retina. Meu sussurro habita a incômoda verdade das entrelinhas.

domingo, 28 de agosto de 2011

Poema para retornos


Que o cansaço sublevado dê lugar ao êxtase
e os ponteiros estáticos, arquétipos das limitações humanas e inumanas,
encontrem pouso noutros versos.

Que os desejos inauditos deixem rastros seguros
e o passado recupere seu posto de presente
para que alma e corpo cumpram sua sina.


Que a razão adormeça por breve momento
e os sentidos acordem famintos por encurtar distâncias
e remir os que se encarceram em peito inóspito.

Que as dores necessárias à criação criem asas
e ferrem todas as criaturas, luzentes e viventes,
e retornem mansas ao aposento do poeta.

Que o movimento das palavras seja recolhimento
e o passo derradeiro repita o primeiro
e o tempo de colher não tarde.

domingo, 21 de agosto de 2011

Interlúdio lírico



...medo e amor são antípodas, faces opostas da alma; devoram um ao outro, como o tempo faz com sua prole.
O amor não se ergue onde o medo subsiste, que este é humano, portanto incapaz de compreender a essência divina daquele.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre mim e meu pai

         
          De quando em vez, o olhar para de mirar as distâncias que nos restam e busca rastros antigos, que nos servirão de guia, caso tenhamos, um dia, que refazer os caminhos. Assim, por motivos vários, alça-se sobre nossas cabeças despreparadas um tropel de imagens, algumas desbotadas, outras palpáveis, que indiscutivelmente confirmam a carreira desarvorada do tempo, esse devorador de horas, irmão de todas as formas, justas ou não, de saudade. Foi dessa maneira, como se encontrasse todas as páginas perdidas de um calendário, que refiz as veredas serranas e reencontrei a inexata figura de meu pai.
        Como lembrá-lo sem ouvir o arrastar manso das sandálias de couro a expugnar cada palmo da casa. Em falas modestas, de ressoar lento, como se calçasse as palavras com as velhas alpercatas de estimação, contava-me estórias de sua infância, na Serra da Ibiapaba, onde tinha que se nascer homem feito e pedir a benção a todos que lhe oferecessem serviço. Estudar era luxo. Somente os bisnetos dos bustos encravados no coração das praças é que sabiam o que era ler e escrever. Mas papai, teimoso que só ele, deciciu conhecer a razão das coisas, inclusive por que o curuminzal dos sítios não podia se estirar nos bancos escolares, mesmo com a carne das mãos exposta de tanto cortar mato para fazer trilha até os remansos e o rosto enodoado do sumo das jacas de vez. E ele ingressou no grupo escolar para aprender a lidar com as letras e os números, a contragosto da mãe, mulher descarnada pela lida na roça. Vira o pai apenas uma vez, numa festividade de Nossa Senhora das Dores. Pediu a benção, o que faria com qualquer um que lhe parecesse importante. Foi mais um desses deus-te-abençoe feito de água de pote. 
            No colégio, as palavras se aproximavam e tomavam conta dos sonhos do curumim. Com a foice ou a enxada nas mãos, era obrigado a ser gente grande. Mas, quando tirava para ler, sabia-se menino dos mais levados, daquele capaz de montar lobisomem ou dar volta no lombo do carcará-rei. Novidade mesmo foi no dia em que inauguraram o cinema da cidade. Lá estava ele, o primeiro da fila, para assistir aos filmes de "cowboys". Certa vez, perguntou à mãe por que somente índio morria nesses filmes, mas ela não soube responder. Por essa época, descobriu-se doente, com um sopro no coração. Tinha apenas doze anos. Disseram que não passaria dos dezoito. Mas ele passou.
       Como sentisse que aquela cidadezinha eivada de verde e melancolia não lhe coubesse mais, tomou o rumo de Fortaleza, onde foi morar de favor na casa de uma prima. Matriculou-se no Liceu do Ceará. Cumpriu o curso técnico de contabilidade. A doença da infância ainda o perseguia. Chegava a desmaiar com as convulsões mais fortes. Já trabalhando por conta própria, prestando serviços contábeis para pequenas empresas do bairro, conheceu minha mãe. Depois de cinco tentativas frustradas, finalmente eu nasci, um primogênito de fato, mas não de direito. 
         Quando eu era molecote, ansioso pelas datas em que se trocavam mimos, papai criou um mecanismo interessante para me despertar o gosto pela leitura. No Natal, por exemplo, ou no aniversário, lá vinha ele com um par de presentes, embrulhados estrategicamente com o mesmo papel. Um carrinho, um boneco qualquer ou coisa parecida, sempre acompanhado de um livro, como se me oferecesse mais do que um menino comum mereceria numa data comemorativa, dois brinquedos, mas só um deles seria "de quebrar", como ele próprio gostava de afirmar. E ele ria de tudo. Até hoje, depois de tanto tempo sem compartilhar do seu sorriso, sou capaz de ouvir sua risada, sempre tão viva, daquelas de contagiar quem quer que seja, como numa pandemia de alegria. Várias foram as vezes em que caí na risada só porque ele estava rindo, simplificando a arte da felicidade. 
               Com meu pai, também aprendi a ser brasileiro. Nunca houve alguém tão patriota e ufanista. No sete de setembro, ele fazia questão de pendurar uma bandeira verde-amarela na frente da casa. Tinha orgulho disso. Emocionava-se com o hino nacional, que, nas palavras dele, era o mais lindo do mundo porque fora concebido poeticamente, como acalanto de filho. Fora dispensado do exército por conta de sua doença, mas trazia consigo uma grande vontade de viver e lutar pelo Brasil. Além disso, indignava-se com a politicagem dos corruptos de plantão. Quando noticiavam na tevê alguma falcatrua oficial, exigia que eu assistisse e desse alguma opinião sobre o assunto. Na maioria das vezes, eu dizia que aquilo tudo era muito chato, referindo-me ao fato de que, em vez de estar brincando com a molecada, estava ali, vendo telejornal. E ele ria e confirmava a chatice da situação. 
               Foi com papai a minha primeira viagem. Apenas nós dois. A caligem e o intenso frio da serra pela época de inverno me despertavam para os filmes de terror a que tanto gostava de assistir. Ficamos no sítio onde meu pai nasceu. Sem energia elétrica, sem fogão a gás. As paredes eram de taipa, barro comprimido numa estrutura entretecida de taquaras. Tudo era tão devagar, cercado de uma monotonia necessária para quem vinha da desumanidade da metrópole. Passamos cinco dias por ali, entre visitas, fogueiras, churrascos e historietas de assombração. Hoje, o tal sítio não existe mais. Chamava-se Sítio Comum, por ser de todos ou por ser como todos os outros. Para mim, por ser poesia.
              Quando dei por mim, infância e adolescência haviam passado de estalo. Ingressei na universidade, comecei a lecionar, casei, tive um filho. Esses foram os únicos presentes verdadeiros que consegui dar a meu pai. Saber que ele teve a oportunidade de abraçar o neto é algo que me conforta bastante. Outro dia, meu filho perguntou: "Pai, como era o vovô Evaldo?". Perdi o prumo. Ele já não se lembra do avô, apesar de tê-lo conhecido. Descrevi-o, pois, com habilidade alencarina, para que nunca mais fosse esquecido. A seu tempo, o arremate: "Pai, ele morreu faz tempo?". E a resposta: "Morrer é ser esquecido. Se você não o esquecer, ele sempre estará entre nós!". Foi quase assim. 
              A verdade é que não lembro de tê-lo abraçado depois que me tornei um adulto inveterado. Sequer tive a oportunidade de expressar o quanto o amava. Mas tudo que realizei, da forma como realizei, talvez tenha sido a maneira mais sincera de agradecer-lhe. Há oito anos não o tenho comigo. Oito anos. E, em tudo que escrevo ou maquino, sei que existe a sua mão sobrepondo a minha. Que falta aquele velho me faz. Com ele por perto, tudo parecia tão fácil, tão realizável. Mas a doença de outrora foi mais forte. E ele partiu. Sem se despedir, sem deixar contato, sem aquela gargalhada contagiante. Certa feita, eu ainda menino, questionei-o:
                 - Pai, quantos amigos você tem?
                 E ele redarguiu com maestria:
                 - Dois. Você e eu.
                 Na sua voz, as palavras procuravam o lugar certo.
                 Pelo olhar de meu pai, forjava-se a poesia do mundo.
    


                   

segunda-feira, 8 de agosto de 2011


De todos os silêncios que me perseguem,
há um que não me incomoda,
que não é doentio
ou regalado.
É um silêncio de fim de tarde,
de amantes inseguros roçando os olhos,
de beijo demorado na bochecha da avó,
de espera pela palavra inexata
no reencontro das antigas vozes
na frialdade do acaso.
Sem esse silêncio,
teu nome perderia o viço.