Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 31 de outubro de 2010

          Em tempos remotos, os índios comanches norte-americanos participavam de um ritual, no mínimo, curioso: para ingressar na idade adulta, o jovem comanche deveria se ausentar da tribo para caçar um búfalo. Para tanto, algumas regras deveriam ser observadas. Quanto maior o animal abatido, mais respeitado seria o recém-formado guerreiro; não se poderia usar qualquer tipo de arma, a não ser as mãos e o instinto de caçador; por fim, na noite anterior à partida, o índio aspirante a adulto deveria sentar à beira da fogueira e ouvir atentamente os conselhos dos anciãos da tribo. Portanto não se trata apenas de um ritual de passagem para a vida adulta, mas uma importante experiência de vida, cercada de aprendizagem e amadurecimento.
          Nestes tempos de fúrias e espasmos, celebramos rituais de passagem. É fato que não há necessidade de matar um búfalo, pois, além de ser politicamente incorreto, a maioria desses bichos já está enlatada em prateleiras de supermercado. Entretanto, o que nos vale até hoje são os conselhos que recebemos antes de partir em busca dos nossos búfalos. Sendo assim, para sobreviver às desventuras da vida, é necessário tomar certas providências.
          É preciso saber contar com as pessoas, mesmo que, no fim, tenhamos que nos magoar com elas. Amigos são imprescindíveis, pois são eles que nos atiram cordas quando caímos nos abismos; é deles que nos lembramos quando, em noites delirantes e chuvosas, não nos sentimos sós, mesmo estando sozinhos; é neles que nos espelhamos quando pensamos que a vida é repleta de portas que abrem e fecham.
          É necessário valorizar a família que temos. Agradeça em cada segundo de sua vida pelos seus pais, pois são eles a certeza de que jamais haverá abandono em sua vida. Entenda que não há nada mais gostoso do que as chatices da irmã, as babações da avó, as piadas do tio, os puxões de orelha dos padrinhos. Agora, é fundamental que se entenda isso o mais rápido possível, porque um dia eles não estarão mais por aqui. Descobrir a importância deles depois que eles partirem é a pior de todas as dores.
          É fundamental entender que precisamos de ambição. Sim, temos que ganhar dinheiro, construir coisas, destruir outras. Assim o mundo se movimenta. No entanto, de nada adianta comprar uma Ferrari, se não se tem para onde ir; de nada vale um celular de primeira linha, se não há com quem conversar; em nada nos favorece uma mansão de um quarteirão inteiro, se não há com quem dividir a mesa durante o café da manhã. O mundo hoje nos obriga a ser mecânicos nas atitudes, mas, antes de termos Orkuts, é preciso fazer amigos.
          É importante saber que o mundo, muitas vezes, é cruel conosco. Encontraremos pela frente figuras ruins, de má índole, que tentarão, a todo custo, nos fazer desacreditar das pessoas. Quando isso acontecer, lembre-se de que existem milhões de vozes no mundo que se revoltam contra as opressões, as tiranias, as desigualdades, as violências, as desesperanças. Que não nos calemos diante de uma injustiça, pois o que violenta não é o grito dos maus, senão o silêncio dos bons.
          Por fim, tenham sonhos, pois é neles que esboçamos a existência; amem e sejam amados e construam uma família e celebrem o Natal ao lado deles e entendam que os filhos são uma forma de imortalidade; construam coisas belas, escrevam poemas, pintem quadros, mostrem seu talento ao mundo, já que ainda é possível ter sensibilidade; envelheçam com saúde, preservem seu corpo, pois tudo que fazemos contra ele um dia nos será cobrado da forma mais dolorosa possível; voltem-se para o futuro, mas, de vez em quando, olhem para trás e jamais esqueçam de onde vieram, porque é no passado que encontramos as principais razões para crer no futuro.
          É dada a hora de partir. Sigamos à procura do búfalo mais forte. Mas, por um acaso dos caminhos, havendo percalços sem jeito, muito mais importante que as glórias da vitória é a experiência que a luta nos proporciona. Evoé! 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

          Eu não acredito no impossível. Sei que parece um contrassenso, afinal de contas sou professor e, nas horas aprazíveis, escritor de meia pataca. Entanto, não acredito! Sou descrente, por exemplo, de que, um dia, as maiorias e minorias étnicas deixarão de lado as rusgas econômico-religiosas e tomarão café da manhã de mãos dadas, sorrindo sorrisos pardos, brancos, vermelhos. Evidentemente isso jamais acontecerá. Quem suportaria uma bandeira onicolor, qual arco-íris a anunciar o nascedouro de um novo tempo de paz e serenidade, tremulando cheia de pompa e indolência no quintal de cada cidadão universal.
          Não, só pode ser brincadeira pensar que o homem teria a mínima capacidade de enfrentar seus próprios desconfortos para preservar um ninho de mafagafos em uma floresta tropical qualquer, de um paisinho subequatorial qualquer. Certamente é um tolo quem cogita que as pessoas possam ser boas por natureza a tal ponto de esticar as mãos ímprobas na intenção – hipócrita, por certo! – de saciar a fome de pão e justiça de algum menininho estofado de giárdias e desesperanças. Meu Deus, perdoai os que, ignotos que são, dizem-se crentes das boas escolhas cardiovasculares. Por certo, as calhas de roda cordianas são insossas como comida de enfermo. Que passa na cabeça dos tolos amantes quando se crêem eivados de reencontros e quimeras? Mereço eu, pois, um argumento sólido que me comprove, com direito a todos os pingos nos is e jotas, a veracidade das palavras doces dos poetas de esquinas e saudades. Ó céus e terras, passem logo e dêem lugar ao cadafalso do juízo, pois ainda há os que se dão o direito de apalpar ilusões, como quem acaricia em sonho o rosto adocicado de uma distante lembrança. Impossível.
        Se chegar ao esfarrapo de adotar impossibilidades como rota de vida, internem-me a ferros e camisa de força. Aliás, por cinismo, eu certamente alegarei insanidade e regurgitarei motivos sem nexo. Direi, por certo, que vale a pena esperar o momento certo, as horas boas, um tempo de inocência guardado especialmente para acalentar-nos a alma. Que não é para se afobar, que nada é pra já, como diz a canção que compuseram em nossa honra. Que nos é necessário bem mais que um simples rompimento para arrancar-nos a anestesia providencial que a certeza do reencontro nos oferece. Que tudo que se faz espera tornar-se-á abraço. Que as coisas que ficaram por ser ditas esperarão o consolo aflito das bocas imantadas. Que somos, portanto, criaturas de reencontro.
        Que loucura! Alguém leu isso tudo? Acho que variei, como diria meu velho e saudoso pai. Será esquizofrenia? Não sei. Talvez seja apenas saudade.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Entardecer

          Todas as tardes o velho Afonso se arrastava até a calçada. Na maioria das vezes contava com a ajuda de um dos netos para abancar por ali a cadeira de ferro, toda trabalhadinha com desenhos e curvas. Se não houvesse neto disponível, dava-se um jeito. O importante era que o seu vespertino ritual fosse rigorosamente cumprido. Costumava apoiar-se numa bengala de alumínio, cabo prateado dobrável, de quatro pontas, as mãos sobrepostas quase em vigília, os olhos fixos nos moventes. Todo aquele movimento distraía, mesmo sem muita novidade. Sempre os mesmos passantes, as mesmas pernas de final de expediente.
          Sem pressa, a tarde deixava de flamejar. No sossego das horas, os curumins apareciam, com suas vozes estridentes, num tropel desenfreado de brincadeiras e palavreados. O velho aprumava-se na cadeira, como num incômodo intestinal. Inquietava-se com a movimentação dos meninos. Batia repetidas vezes a bengala na calçada, apreensivo, renitente. A velhice era o pior de todos os cânceres. Os dedos longos lembravam cera derretida lançada sobre uma superfície lisa, formando linhas sem conexão. Cada articulação sua crepitava ou rangia ao menor movimento. Nas mãos formavam-se nódulos hirtos, nauseantes. Mas a carência de força física e a falta de firmeza nas pernas não afetavam tanto quanto a enturvação da memória. Ao perscrutar os vãos das antigas lembranças, comprimia a vista, como se, de longe, quisesse reconhecer algum ponto obscuro. Velho Afonso, dono de terras, engenhos, moendas, casa de purgar. As criadinhas, quando lhe vinham aplacar o fogo, ofereciam seios recém-formados, lábios dispostos, pernas trançadas.
          Lidiane chegava depois de um cheiro gostoso de leite de rosas. No findar de todas as preces do cair da tarde, ela costumava aparecer, rija, de ancas adensadas, volumes desafiadores. Passava o dia na contrição da lida doméstica da casa vizinha, posta em um casulo de temperos e lustrados. Mas, por rebeldia, como se apunhalasse qualquer um que por um instante duvidasse de sua laboriosa beleza, punha-se à calçada, assertiva, senhora de suas carnes. Os cabelos crespos, espiralados desde a raiz, volumosos como suas coxas de égua xucra, vinham ainda molhados, respingando a cada movimento de cabeça, as gotas escorrendo pelo colo, alojando-se providencialmente entre os seios, os poros aos poucos se dilatando para conservar o calor da pele. Lidiane era inteiriça de ponta a ponta, uma afronta à opacidade do velho Afonso, que apenas assistia àquele espetáculo de formas e odores com a impassibilidade de quem se dá ao patíbulo, exaurido de qualquer memória cutânea que lhe despertasse instintos. Esfregava com a ponta do dedo indicador a haste maciça da bengala, as entrecoxas de Lidiane, alternava-lhe carícias no púbis, deslizava delicadamente o dedo umedecido em volta da vulva, deixava-lhe tomar o controle, como nos tempos do senhor de terras e criadas.
         Lidiane aproximou-se, os cabelos encrespados atiçavam a face do velho.
         - Tudo bem, Seu Afonso?
        Aquele cheiro de mulher nova enervava-lhe os movimentos. Sentia mais uma vez as bênçãos da natureza humana, um jorro que lhe trazia uma esperança de enfermo diante da possibilidade da cura. Estar perto de Lidiane, roçar-lhe a pele, ainda que por ínfimos instantes, tudo remetia a uma época de glórias juvenis. Sobrevinham-lhe espasmos há muito esquecidos, como se concluísse um ciclo, uma resposta aos apelos daquela menina que, por milagre, fazia contrair todos os músculos ressentidos do velho. A sensação de euforia tomava conta de seus gestos. Traduzia-se nele a capacidade de amar uma última vez. O líquido morno escorria por suas pernas, encharcava a calça de brim, derramava-se pela calçada.
         - Tudo bem, Seu Afonso?!
         Lidiane gritou para que os de casa acudissem o velho.
         - Meu Deus, o Vô agora deu pra urinar nas calças...
        Apoiado no neto, o velho percebeu o olhar piedoso de Lidiane e esboçou uma contração na face que por muito pouco pareceria um sorriso.



domingo, 3 de outubro de 2010

Uma ex-aluna e hoje colega das Letras - Maria Eduarda - enviou-me algumas perguntas sobre os textos que publico neste famigerado blog. Decidi, pois, dividir as perguntas e as respostas com aqueles que por aqui passam. São excelentes perguntas. Espero que as respostas estejam à altura.



1) Você posta (no blog) com frequência. Posta à medida em que escreve, ou costuma publicar textos antigos? Faço essa pergunta porque vi que entre certos textos há uma diferença considerável de estilo e de como abordar algumas temáticas (inclusive recorrentes).


Há textos um tanto recentes, textos de gaveta e textos criados especialmente para o blog, talvez por conta disso se perceba certa diferença estilística e temática entre eles. Existem, ainda, diversos textos que não divulgo, por acreditar que talvez não sejam de fácil degustação. Devo dizer também que as variações estilísticas, mesmo em textos escritos pela mesma época, são decorrentes das experimentações que gosto de fazer. Utilizo o blog como uma espécie de termômetro no que tange à aceitação desses textos de experimentação.

2) A prevalência da prosa, em relação à poesia, no que diz respeito ao formato mesmo desses gêneros, é uma questão de preferência, ou tem a ver com o tempo disponível que você tem para escrever ? (Seus poemas deixam mais clara sua técnica. Nos textos em prosa vê-se a técnica também, mas parecem mais fluidos, naturais. É nesse ponto em que reside, a meu ver, a genialidade de um bom escritor: fazer parecer fácil e simples escrever bem. Considero você 'melhor' na prosa. É uma opinião muito particular, talvez você até goste mais de seus poemas, e talvez também eu tenha certa tendência a gostar mais de prosa, enfim.)


Creio que nem todos estejam aptos a interagir com a poesia, por isso prefiro publicar textos em prosa. Não obstante, a poesia é meu gênero predileto e já tenho um livro de poemas pronto, esperando apenas um prefaciante. Penso ser a poesia o ápice do fazer literário, portanto trato-a com bastante reverência, desde a versificação livre até a metrificação e a erudição vocabular, itens fundamentais para um bom poema. A prosa, tenho-a como um refúgio, um caminho sem farpas e espinhos, um atalho. Procuro em minhas crônicas e meus contos explorar a simplicidade na linguagem, o que, a meu ver, contrasta, às vezes, com a densidade temática de alguns textos. Não sou poeta, nem prosador, apenas escrevo.

3) Há temas bastante recorrentes em seus textos, como o tempo, a solidão, o receio, a traição. Não pode haver alguém absolutamente imparcial quanto à própria obra que escreveu, entretanto há níveis, digamos assim, de envolvimento entre autor e obra. Desculpe-me se estou sendo incômoda, é que sabendo que você fuma, bebe, já foi casado (ou ainda é) e tem um filho, sua obra é biográfica?

A expressão "obra biográfica" não se enquadra no que escrevo. Escrevo sobre os outros, o que certamente nos revela, uma vez que as atitudes individuais refletem-se no corpo social. Eu sou o que escrevo, na medida em que expresso neles minha visão de mundo, que pode ou não ser compreendida. O fato de eu fumar ou beber em nada influencia em meus textos. Para mim, fazer o que faço não é uma atitude destrutiva ou depressiva. Faço porque acho que devo fazer. As experiências adquiridas no decorrer da vida, as pequenas atitudes, as viagens, os amores impossíveis, as tramas da vida, tudo isso abastece o que escrevo, tanto na prosa como na poesia. Entanto, reitero: não há nada de autobiográfico em meus textos. Quanto à temática, gosto do que aflige o homem. A morte, a perversão, o tempo, as ausências, as angústias terrenas e etéreas, enfim, essas e outras são motivos recorrentes no que escrevo, porquanto o homem tomar consciência de suas limitações e fragilidades expõe aquilo que o ser guarda de mais íntimo. Na poesia, aproximo-me do lirismo, mas sem pretensões sentimentalescas. É isso.