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domingo, 26 de agosto de 2012

O barbeiro



              O movimento na barbearia estava fraco. Se houvesse o que fazer, não faria tanto esforço para ler o jornal de ontem. Comprimir os olhos, que os óculos não ajudam, lentes gastas como todo o resto do salão. Mês de agosto, sem vida, sem movimento, à exceção da ventania e do pólen. 
          Quantas notícias nos jornais. Acidentes, mortes. Jesus tenha piedade. Fechar mais cedo, a igreja estaria lá, sempre cheia, alaridos fervorosos. Preparar-se para baixar as portas, o dia acabou, talvez o próprio negócio, outras oportunidades surgiriam, quem sustentou por tantos anos a lida de barbeiro, moedas e crises, promessas e mais promessas, santos e políticos, por certo quem passou por tudo isso haveria de chegar a outro lugar sem muitos arranhões. 
           A tarde é quase no fim. Apagar as luzes, desligar o rádio, economizar, se não se ganha, que não se perca. As lâminas, as tesouras, o pente de osso herdado do pai, o verdadeiro dono de tudo aquilo, quantos anos desde sua morte. Velho teimoso, precisava ensinar o ofício que trouxera do avô, dos tios, dos primos, todos barbeiros, o filho não poderia deixar de cumprir a sina. E ninguém à porta, ninguém para contar as novidades, sequer o telefone público, tão solicitado em tempos de bom comércio, o telefone mudo, como tudo que se apanhava pelo mês de agosto, dias de mudez absoluta, nada de féria. 
           Para baixar as portas, um vulto. 
           - Ainda dá tempo para mais uma barba, filho?
           - Sim senhor, fique à vontade. Sente-se aqui...
          Barba de quantos dias? De quantos meses? Cheiro familiar de suor e terra. A camisa encardida, semiaberta, grisalho e desgrenhado, arfante como no meio de uma crise asmática, como fugisse.  
          Preparar a navalha, a espuma, agir com cautela, um freguês é um freguês, voltaria, recomendaria. A cadeira reclinada, a toalha para não manchar a camisa, se bem que nódoa alguma se notaria naqueles trapos, já tão salpicados do tempo, um fartum. 
          Prosear para amansar o bicho, dizer do pai.
          - O senhor vem do serviço?
          Pescoço de veias salientes. Rijo como uma tora, percorrer com cuidado os contornos do queixo, as faces, o maxilar, navalha infernal, cega.
          - Venho.
          - O senhor trabalha com quê?
          - Caminhão.
          - Vida dura essa de caminhoneiro.
          - Hum, hum!
          - Ainda pega a estrada hoje?
          - Pego, mas é pra visitar um parentes.
          - Então, o senhor não é daqui?
          - Sou de Serra Mansa.
          - Papai era de Serra Mansa!
          - Quem é seu pai?
          - Já é falecido. Seu Chico Pereira, dos Pereira da Serra Mansa, do Sítio Curió.
          - Hum, hum!
          - E o senhor, como se chama?
          - Antônio. José Antônio de Limeira. Dos Limeira do sopé da serra.
          O pai fora cobrar uma dívida dos Limeira, baralho era a perdição do velho, mas tinha sido uma mão de sorte, era dinheiro para alavancar a barbearia, mas o que levou nos couros foi bala, três à queima-roupa, um tal de Antônio dos Limeira, um cangaceiro, um selvagem, um animal que merecia ser sangrado como qualquer outro. E não seria o mesmo ou haveria de existir mais de um Antônio de Limeira, na mesma serra sem lei? Nome comum esse de Antônio. Depois do acontecido, ninguém mais soube o paradeiro do tal Antônio. E não estaria ali, derreado, jugular à mostra, numa providência que só mesmo nas passagens bíblicas se vê igual? E se fosse Salomé a empunhar a navalha, ou Jezabel, ou Herodes?
          O bicho suado, a navalha estacionada sobre uma veia do pescoço. Isso é suor de culpa. Ligar o ventilador. 
          - Então o senhor conheceu meu pai...
          - Penso que sim, mas cabeça de velho falha de vez em quando.
          - Ele era barbeiro, como eu. Morreu porque inventou de cobrar uma dívida. Foi no sopé da serra. O senhor deve ter tomado conhecimento. Talvez seja de seu tempo.
          - Não me lembro, mal me criei e fugi daquelas bandas. 
         - Eu era um menino ainda, uns dezessete pra dezoito. Já estou pelos quarenta. Ainda bem que o velho teve tempo de me ensinar alguma coisa, aprendi a barbear com ele. 
          Olhos abertos, como se procurasse algo no teto da barbearia, e a navalha estancada no pescoço, bastasse um movimento, as coisas voltariam ao lugar, pois quem deve é aqui que se paga, a mãe passou anos esperando a justiça dos homens e de Deus. Quem sabe o próprio Jesus não tenha desenhado esse momento, premeditado esse encontro, pois só a perfeição divina seria capaz de tão astuto enredamento, o assassino à disposição da navalha, um puxão e o bicho sangra feito porco, um puxão e o equilíbrio que só a vingança pode trazer. Mas Antônio tem demais, só de primo haveria uns dez. Seria assim também com os Limeira. 
           - Barbeiro é profissão boa, gente pacata, de confiança, não tem que carregar culpa de nada.
           - É verdade.
           Terminada a tosa. Serviço é bem feito, dizer do pai. Sem espuma, sem barba, sem loção. Navalha sobre o balcão. 
           - Quanto foi, meu filho?
           - Dez contos.
           - Tome quinze pela conversa.
           Recompôs-se e saiu, barba feita, quinze contos, uma gorjeta por não ter feito justiça, um agrado a um covarde, uma vergonha para um homem, que o pai não esteja vendo isso. E haveria culpa? E se não fosse o dito assassino? E ainda que fosse, como matar sem saber matar. Criou-se como barbeiro, não como jagunço. Quinze contos. As únicas patacas do dia. Baixar as portas, poupar energia e água, se não se ganha, melhor não gastar, dizer do pai, que Deus o guarde em bom repouso. 
           

          

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Jornal amanhã, em edição extraordinária



          Eliza era universitária. Depois de muito penar, finalmente conseguira a tão sonhada vaga em uma universidade pública. Aproveitara o sistema de cotas. Com o início do curso, a velha dificuldade: não conseguia acompanhar o ritmo frenético das aulas. O olhar inquiridor dos colegas de sala parecia denunciar que ela era mais um desses cotistas. Os que conseguiram a vaga por meio das cotas andavam sempre juntos, como que se protegendo. Com o tempo, percebendo que os cotistas precisariam de acompanhamento especial, os diretores dos cursos decidiram criar turmas exclusivas para eles. Não tardou e essa separação impregnou outros setores do campus. Construíram banheiros exclusivos para os cotistas. No refeitório, setores eram reservados para os cotistas. Chegou-se ao ponto de construir-se um enorme muro, atravessando o campus, para evitar que os cotistas mantivessem contato com os outros, pois, segundo alguns teóricos, havia razões científicas para acreditar que os não-cotistas seriam uma raça superior. Contrataram seguranças, deram-lhes armas e ordens expressas para atirar em qualquer um que se atrevesse a burlar as normas do muro. Aos poucos, esse muro, voraz e frio como qualquer outro muro, estendeu sua sinuosidade para fora dos campi. Eliza e outros passaram a ser identificados por um código de barras tatuado no pulso direito. Não havia mais o que fazer. E pensar que tudo isso poderia ser evitado com investimento maciço na educação básica pública. Agora é tarde.

Canção para uma ausência



canção de alvo ventre,
espirais douradas,
tenra pele, tez de outono,
estepe a perder-se de vista.

alongada como o tempo
ou o espelho; existe algo de mel
a escorrer dos teus olhos:
à distância, vê-se uma luz viva.

a frialdade é tua ausência
assinalada a ferros na retina
que busca como quem tateia:
a saudade é áspera.

compuseste um estribilho,
Debussy, Clair de Lune;
claves e teus dedos
e um pentagrama em mim.


assimetria



clamaria,
dia,
companhia,
alegria
quereria,
iguaria,
afrontaria,
judiaria.

calmaria

obstruiria,
alvenaria,
minoria,
alegoria,
assimetria.


terça-feira, 14 de agosto de 2012


brotei de ti, mirrado que nem passarinho;
de tuas mãos zelosas, sorvi chuva e sol;
de menino, teu vulto guiava-me, feito oração;
descobri o ventre e um guia, talvez nem tanto imberbe;

chegou a malfadada primavera,
e, com ela, a vontade de alçar voo.

tomei distância e disparei, bala arredia;
sequer um susto, um sopro que fosse,
um grito distante que me fizesse olhar para trás.

vejo-me sem semente, sem pólen,
sem semeio,
e a carne que plantaste inda vive
como paga.