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domingo, 23 de outubro de 2011

Sobre insônia e ausências

        
        Sinto profundo cansaço. É que quase não durmo. Na verdade, a noite me é convidativa e instiga-me a acompanhá-la, como se precisasse investigá-la ou conspurcá-la com meu vulto. Pelos caminhos noturnos, muito de mim já ficou, o tempo de todas as coisas retorna e estanca, não se consegue dormir. Encontrar a saída desse labirinto de formas e vozes não é tarefa simples. Tenho que me espedaçar para trilhar o caminho de volta. 
         Se me faltam braços ou pernas, não são os meus que exijo, mas os de que me fizeram promessas pelas vias da ternura e do encantamento, sem as burocracias de aras e altares. Redivivo, penso não ter tino para esquivar-me das ausências, insuportavelmente ausentes, comprimo a vista, estico o pescoço e busco em vão no horizonte algum vestígio que seja, como quem persegue inutilmente uma utopia. Essa é uma boa imagem. Existem pessoas utópicas.  O que são as utopias, senão sombras? À noite, deixo velas acesas, cada uma a chiar por uma sombra hesitante, cinzas em borrasca, impregnadas de pensamentos distantes, inverossímeis: utopias. 
         Um mão leve, dedos estéreis a pressentir distrações, pousa-me sobre os ombros. É uma noite larga, meu Deus, em que me desespero por nada. Passeio incestuosamente pelo ventre dos que, por muito pouco, não vieram ao mundo com o sangue que me identifica e amarga. Grito com os olhos, que lá fora me parece menos seguro, mas é no mundo do qual me aparto que residem as respostas. Preciso encontrar um pouco de paz, nem que para isso tenha que reatar as amarras do tempo, as que rompi por enfado e impaciência. Pouco me importa se os que poderiam ouvir ora dormem. São covardes, por certo. Eu não. Desafio a noite e todos os seus sussuros. Quero seus gemidos de langor, balbucios na escuridão que afluem ao pensamento. O tempo me carrega em rede de cortejo. Ouço vozes de ladainhas. Alguns rangeres são familiares, outros são meus, os mesmos que deixei para trás, sim, estão lá, no exato dia em que alguém me disse que ficaria, a despeito de tudo, entanto era mentira. A noite se contorce, as verdades adormecem.  

domingo, 2 de outubro de 2011

UTOPIA DE UM PROFESSOR QUE SANGRA


SITUAÇÃO: DURANTE UMA MANIFESTAÇÃO POR MELHORIAS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO, UM PROFESSOR ENSANGUENTADO, APÓS UMA CONTENDA COM POLICIAIS MILITARES, PEGA UM MICROFONE, PEDE A ATENÇÃO DE TODOS QUE ALI ESTÃO E INICIA UM DISCURSO EMOCIONADO.

DIRIGINDO-SE AOS COLEGAS PROFESSORES:

Companheiros, 
Vejam isto! (Segura a camisa com ênfase, de modo a destacar as manchas de sangue) Este sangue é o símbolo de tudo que doamos, diariamente, àqueles que se dispõem a aprender conosco. Ao menos assim, com as roupas manchadas de sangue, todos podem enxegar nossa humanidade, que as lágrimas e o suor que derramamos ao exercermos com afinco nossa profissão de educar são incolores. Esta vermelhidão, brotada da violência gratuita, é a prova de que não somos criaturas sacerdóticas, alimentadas de esperanças distantes, sem os pés no chão. Somos, acima de tudo, humanos, profissionais que sonham com mudanças efetivas para que haja uma verdadeira valorização do magistério. Somos brasileiros, e uma das prerrogativas de nosso ofício é crer neste país, viver por ele e, se preciso, sofrer, para que as gerações futuras não precisem lutar tanto, para que os jovens nos reconheçam não por heróis, como os dos filmes ou gibis, mas como homens e mulheres que assumiram o risco de acreditar que a educação é o princípio de todas as revoluções. Sinto dor, uma imensa e torturante dor, não pelas pancadas que levei, que meu sofrimento e o de meus pares é perene; a dor que me incomoda e atordoa vem de dentro, num sopro de arrependimento por ter escolhido ser quem eu sou: professor. Mas sei que não há motivo para arrependimentos. Sou professor porque me foi dada a missão de manter viva a chama da revolução. Somos peças fundamentais de qualquer sociedade que se proponha crescer com dignidade, respeito e igualdade social. Nunca baixaremos a cabeça, jamais esmureceremos diante da barbárie e da arrogância. Levantamos a voz em prol de uma mesma lição. Hoje, ensinamos ao país e ao mundo o que é a verdadeira democracia; hoje, desmascaramos tiranos; hoje, revisitamos os inglórios tempos de 68, quando a juventude mundial mostrou que não era apenas um mero joguete nas mãos dos poderosos; hoje, sentimos na pele a essência da palavra PROFESSOR (pausa para enxugar as lágrimas, misturadas ao sangue que lhe escorre da testa). Que todos tenham aprendido conosco essa lição, e que se juntem a nós educadores, pais, filhos e todos que, de uma forma ou de outra, já se sentiram marcados pelas palavras de um professor. Tenhamos orgulho de ser o que somos. Se um dia o mundo, depois de uma catástrofe natural ou humana, tiver que recomeçar, estejamos certos de que isso não ocorrerá pelas mãos de um político ou de um burocrata. Nesse momento, todos clamarão por alguém que ensine a dar novos passos, com sensibilidade, firmeza e criticidade. Enquanto houver professores, o mundo terá a oportunidade de renascer. Ai do país que agride seus professores. "Se você acha a educação cara, experimente a ignorância" (o professor se dirige agora aos policiais que o agrediram).

DIRIGINDO-SE AOS POLICIAIS:

Amigos policiais,
Sei que cumprem ordens, mas percebo no olhar de vocês a mesma gana de luta, a mesma indignação que sentimos agora. Larguem suas armas, seus cacetetes, seus sprays de pimenta. Ergamos a mesma bandeira. Procuremos os reais inimigos, aqueles que, a esta altura, devem estar fechados em gabinetes climatizados, tomando uísque importado. Pensem nos seus filhos, e nos filhos de seus filhos. É essa a herança que pretendem deixar? É assim que entrarão para a história? Como algozes de professores? Escrevam sua própria história, meus amigos. Juntem-se a nós. (Alguns policiais largam suas armas e se misturam aos manifestantes, gritando palavras de ordem). 

DIRIGINDO-SE AOS ALUNOS:

Caros alunos,
Onde vocês estão? Venham conosco. Esqueçam por um minuto a segurança da virtualidade e gritem. Rasguem suas gargantas, sangrem também, pois é tempo de luta. O que vão conseguir? Cicatrizes, lembranças, amizades, vitórias e derrotas. Vocês serão o assunto da aula do dia. Gritem liberdade. Defendamos com todas as forças a educação brasileira, que depende tanto de vocês, como de nós. Mostrem a todos que há tempo de aprender e ensinar. É o tempo de aprender com vocês. Venham.

AOS FUTUROS PROFESSORES:

Que este sangue respingue em cada um de vocês e deixe marcas profundas, para que todos entendam que não há ofício mais imperioso, mais enfadonho e, a um só tempo, mais essencial, que o de professor. Os que pensam em desistir, façam, pois jamais seriam bons professores. Os que têm dúvida, desistam também. Apenas aqueles em cujas veias pulsa um sangue verde-amarelo, apenas os que se comovem com a fome, a miséria, os que se indignam com a corrupção e a falta de ética, apenas esses devem seguir, que serão educadores essenciais e transformarão a vida de cada aluno. E nunca morrerão. O olhar e a memória de nossos alunos não nos permitem morrer. 
(O professor, já sem forças, senta-se um pouco. Prestes a desfalecer, ergue com dificuldade o braço e conclama a multidão a gritar)

NOSSO ORGULHO É EDUCAR!