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domingo, 26 de maio de 2013

apenas sem razão



Preciso descobrir urgentemente
quem sou, 
de que gosto,
o que me oprime,
o que me excita ou desanima,
o que me resta ou sobra,
o que me grita ou sussurra,
o que me cura ou desmente.

Preciso ser inconsequente,
e doar, e chorar, 
e escrever sem testemunhas,
e mudar de endereço,
e mergulhar no vazio,
e aflorar no estio,
e viver do amor ausente.

Estarei preparado
para me conhecer de fato?

Frio na barriga:
Sou eu a esperar ansiosamente
o momento de ser finalmente
apresentado a mim.

domingo, 19 de maio de 2013

A memória e as chuvas



          Chove. Uma chuva desarmoniosa, ora desesperada, ora levíssima. Em nada lembra as chuvas de outros invernos, as surpreendentes chuvas de março e abril, encantadoras por sua onipotência. Chove. Sem encantamento. Apenas a chuva, concreta e esparsada. 
              Nasci em um maio chuvoso. A chuva, pelas feéricas histórias de minha mãe, acalmava-me como se me embalasse. Um pingo de gente arrebatado, esbugalhado diante daquela profusão de cinza, vento e água, muita água, e eu tão pingo quanto os que me tocavam levemente o rosto. Essa chuva não é como a de hoje. Chove. Sem abstração. O que vejo remete a uma pintura neoclássica, de traços firmes e tons rigorosamente sobrepostos, construindo um painel distante, sem nada que inove. 
           Molecote agora, as chuvas de antigamente traziam consigo pacotes e mais pacotes entupidos de traquinagens. Pelas ruas sem betume formavam-se corredeiras que, aventureiros que éramos, enfrentávamos com ar de conquistador espanhol. Dezenas de meninos sapateando sobre as enormes poças, diríamos piscinas olímpicas, exercendo, sem fatalidade e com imensa destreza, a plenitude da liberdade. As biqueiras das casas, se não me esqueço, transformavam-se em quedas d'água a fazer das Cataratas do Iguaçu um igarapé morno e sem graça. Éramos nautas de primeira estirpe, capitães de fragata, príncipes submarinos. Olha o torpedo! Seguia-se uma estrondosa explosão, e o encouraçado afundava;  canos, latas, flores de bananeira, e a esquadra, aos poucos, se agrupava, pronta para mais uma missão suicida em mares nunca navegados. Chove. Da forma mais meteorológica possível, como previu a moça bonita do telejornal. 
           O tempo das primeiras namoradas havia chegado. Com ele, as chuvas. A praça da delegacia abarrotava-se de jovens em ebulição. Domingo à noite, findada a missa, corríamos para lá, à procura de qualquer coisa que nos distraísse das rotinas. Em uma dessas, além dos habituais maneirismos de praça, surgiu uma figura terna e desengonçada, como a própria juventude. Atarracada, viva de olhos, descorada, mas essencialmente lúdica. Deu de sorrir. Três ou quatro vezes, se não me falha a memória. Pelas tantas trocas de olhares, nutri a esperança de que aquela criaturinha estranha e doce quisesse realmente ter comigo. Hipnotizado que estava, descuidei-me de tudo, inclusive da tempestade que estava para desabar naquele instante. A chuva principiou sem dó, caindo com brutalidade. Os pingos grossos, gélidos; os convivas da praça logo se dispersaram. Perdi de vista a menininha com quem esboçava um possível romance. Corri para debaixo de uma marquise, onde alguns já se aglomeravam. Encolhi-me num canto. E ela ressurgiu, os cabelos desgrenhados, a pele encaroçada de frio. Tecemos algumas palavras que não me chegam agora com exatidão. Quando a chuva amansou, ela se despediu e, com a agilidade de quem rouba, aplicou-me um milésimo de beijo. Saiu correndo para nunca mais voltar. Chove. Uma chuva sem cumplicidade; impessoal demais para um primeiro beijo.  
                Chove lenta e inconsequentemente. Chove sem propósito que seja. Chove para molhar as coisas, não para avivá-las. As chuvas de hoje têm a mesma consistência das lágrimas de ontem. E este céu, inutilmente acinzentado, parece-me grande demais para chorar dessa forma. 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O surrealismo da solidão



       Enfim só, e que a solidão pouse suavemente sobre os ombros, sorria um sorriso antigo e prometa visitas amenas e rápidas. Que chegue sem gravidade e estenda a mão por acolhimento, despendendo carinhos de colo, como se me houvesse libertado por ressurreição. Que seja tão próxima quanto as noites que se derramaram a fio, pactuadas com a manhã certeira e seus raios impressentidos e fatais. 
          Solidão, essa menina arteira a brincar de gangorra nos ponteiros, deixe-me ressurgir um pouco, mas sem desamparo. Vele pelas minhas rotinas, banhe-se nas minhas palavras exangues, liberte-se na voz ausente, que não mais existirão espaços que a delineiem tétrica. Seja, para mim, o arranha-céu dos suicídios, o décimo oitavo andar. 
          Os dias preenchem-me de um cansaço absurdo, embora familiar. Sinto ainda um amargo na língua, um formigamento que não cessa e que entorpece. Redivivo, alço-me sobre olhares perdidos, como se reconhecesse em cada um deles os pedaços puntiformes de um espelho. É neles que habita a solidão, que me acalenta com suas histórias de trancoso, suas andanças sem glória pelas veredas da alma. Tenho sede. As crenças que me chegam em vultos não me abalam. Preciso sair urgentemente, calçar sandálias alheias, sem promessas; a vida ainda responde, soturnamente. 
          Apenas os primeiros raios de sol me incomodam. A claridade torna-se parte de mim aos poucos. Vejo estrelas que formam um desenho indecifrável. Ninguém à porta; cães ao longe anunciam a glória de um novo dia. Não latem pela minha presença, por certo. Sequer desconfiam de minha existência. Agem por instinto, por capricho. Eu, por dor. 
            Algo me dói. Um grito rouco, aprisionado entre ossos e veias salientes, asperge a memória. Existe um suave tom esfumaçado que, em vez de ocultar, decifra. Quais artes a solidão reserva para esta noite? Não seria eu perito o suficiente para me esquivar dessa doutrinação chinesa? 
              Estou ali, ao lado de meu pai, suplicando uma última bênção. Meu filho dorme da forma mais serena. É com ele que quero ter, ainda hoje, no paraíso. Ouço gemidos. As aves lançam-se sobre os castiçais. A sombra das velas descreve figuras distorcidas. Uma delas me é íntima. 
              Só, desembrulho presentes. Os papéis laminados embelezam futuros tão artificiais quanto o clarão que me cega. O sol bate violentamente nas lâminas do papel. O calendário está na cozinha, e eu sinto imensa preguiça de ir até lá para arrancar-lhe as páginas que já não servem. Comprei sapatos novos, embora os velhos ainda me caibam. 
           O sono me abate. Desenhei algo na parede com o dedo indicador. Um olho, uma lágrima. A solidão continua aqui, ao meu lado, como se me esperasse sair de um estado mórbido de sonolência profunda. Sei que pretende uma paga. Um dia, quando sono não mais houver, honrarei todas as dívidas. Por enquanto, a letargia. A solidão me conta histórias de viagens. Algumas delas são tão claras quanto o dia que, pelo olho mágico da porta, vejo chegar.