Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 31 de julho de 2011

Dádiva do tempo


O amanhã é virgem,
fruta de vez,
inconha, temporã.
Pertence a ninguém
ou pertence a quem primeiro alcançá-lo,
cortar-lhe a espessa casca
e extrair o sumo da esperança.
Não existe ponte ou escada
para ligar-nos ao futuro.
O único caminho
é desejar o inatingível,
conservar a razão de ser
de tudo que, por um triz,
não deixou de ser sonho.
Se existe como escapar do hoje,
não o do calendário apenas,
mas o da movediça saciedade,
faça-o pleno de amor.
Tenho pés e mãos cansados
dos intermináveis agoras.
 

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Peregrinação

                                          Amor é o que se aprende no limite,
                                          depois de se arquivar toda a ciência
                                          herdada, ouvida. Amor começa tarde.
                                                     Carlos Drummond de Andrade
 
Amei uma vez
e tive uma inútil impressão de vivenciar
o imponderável.

Quando amei pela segunda vez,
era final de tarde, numa sexta-feira, último 31 do ano,
sem plenilúnio.

Pela terceira vez, arrisquei-me,
andrajoso, pés mastigados de betume e insistência,
antipoesia.

Por fim,
profundamente fatigado,
busquei a tranquilidade de uma sombra,
e ali estava a figura que me emprestou os pés e os olhos
que trago comigo até hoje.

A psicogênese do espelho


Faltou-me coragem
para simplificar o que em mim ardia.

Não que pensasse sobreviver
sem as acácias e aroeiras sobressaltantes
do amparo que me prenunciaste.

Antes justificava reentrâncias e degredos,
mas agora, depois de o peito à mostra,
o que se tem é o profundo desejo
de uma demorada e eficiente ausência
que nos prolongue a imagem antiga 
de dois inexperientes à deriva.

Certa vez, declarei meu amor
polindo-te a moldura.
Sequer me dei conta dos gemidos
inconfessos no vidro polido.

Amor, espelho de carne, caixilho de ossos
e reminiscências,
vontade irreprimida de, enlevado,
enganar os sentidos,
tornar-se a si e ao outro
ser e miragem.
.







quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sobre lágrimas e recomeços

        
         Poucas foram as vezes em que chorei. E não fiz questão de que houvesse testemunhas. Chorei apenas, sem riscos ou descobertas. Meu último sangradouro foi há oito anos, pela perda de meu pai. Ele, com habilidade sinfônica , costumava me alertar para a promiscuidade dos sorrisos. E é uma grande verdade. Todo mundo sorri para todo mundo. Um sorriso não escolhe alvos. Basta um simples cumprimento, um bom-dia no início do expediente de uma segunda-feira nublada, para que a face se contraia em simpatia e dentes. Com o pranto é diferente. Costumamos selecionar criteriosamente aqueles que terão o privilégio de presenciar nossas lágrimas.
        As crianças, é claro, não têm pudores ao expressar qualquer dor ou birra por meio de um providencial berreiro. Mas os adultos, hipócritas de carteirinha, têm a obrigação de transparecer toda a fortaleza necessária para assumir a patente de que realmente cresceram e, por conseguinte, nada é capaz de abalá-los. Conheço algumas pessoas que, nos momentos mais tensos da vida, optaram por esconder-se nos vãos míticos da alegria forçada. Tolice. Chorar é um espetáculo essencialmente humano, e as cortinas da alma se abrem apenas diante de uma plateia criteriosamente escolhida, depois de anos e anos de preparação e consulta aos astros. É fato que choramos pelas mais variadas razões. Há quem o faça por puro capricho, como os que veem o time do coração afundar-se em mais uma derrota para o principal rival. Essas são lágrimas de fúria e frustração. Tanto que, minutos após a lamúria, segue-se um ritual de xingamentos natural de quem queria apenas extravasar a ira. Mas existem motivos bem mais reais para se debulhar em lágrimas. 
         Admiro os que choram de felicidade, talvez por nunca ter experimentado fazê-lo. Lágrimas de alegria são frágeis, pois facilmente se confundem com os sorrisos que seguem em concomitância. Agora, quando queremos chorar de verdade, como uma forma de encurtar dores, tendemos à solidão e ao isolamento. Ninguém que conheço costuma ligar para os amigos na intenção de chorar em terreno alheio. "Vamos sair hoje, que eu estou com uma vontade grande de chorar". Seria algo estranho, por certo. Entanto, como a vida é feita de experimentações, por que não arriscar chamar alguns amigos, como numa espécie de psicoteste, e ver quais estão realmente dispostos a acalentar-nos o pranto? Tantas vezes gastamos nossos indolentes sorrisos com essas pessoas. Vez em quando, é bom mostrar que também somos humanos o suficiente para cair nas tarrafas da tristeza. As melhores lágrimas são aquelas que compartilhamos. Se conseguimos rir com os outros, também deveríamos ser capazes de chorar com os outros.
         Como me meto a escrever, e o sentimento humano me intriga nessas horas, prefiro crer que as lágrimas mais verossímeis são aquelas vertidas por outrem, por alguém que se fez presente e agora não passa de uma persistente ausência. O pranto dos apaixonados é febril, morno feito chuva de setembro, por isso inquieta, perturba ao ponto de não ter hora de iniciar ou terminar. As perdas, por mais banais que possam parecer, ecoam em nós como uma forma de alertar sobre um possível vazio que se formara após sermos privados do que nos preenchia. E os que sofrem pelos pontos-finais que teimam em se antecipar não sentem apenas pela ausência do que outrora soava como amor. O pior é o recomeço. Reinventar costumes. Os sábados sem motivos, os domingos sem a velha pizza, os lugares especiais que voltaram a ser meros espaços desconhecidos. Temos medo de recomeçar. É isso que nos impele a gritar, a criar ambientes de alegria forçada, a esconder as anímicas intenções.
          Não tenho mais disposição para lágrimas. Talvez o açude tenha secado. Entanto, sugiro que os que pranteiam não tenham receio de rasgar lágrimas na frente de quem quer que seja. Ademais, se assim é feito, é sinal de que realmente confiamos naquele que ali está, diposto a acolher nossas lamentações. Nenhum pranto merece ser contido, por quem quer que seja. Enquanto isso, vou em busca de algo que me faça chorar, não o choro indeciso dos que perderam alguma coisa, mas uma lágrima, uma única e derradeira lágrima, diante de um pôr-do-sol que me revele a beleza do recomeço.

           

segunda-feira, 25 de julho de 2011



Nosso tempo sempre foi agora...

sexta-feira, 22 de julho de 2011


Quando vieres me amar,
chega feito passarinho,
com olhos por debulhar
as imperfeições do ninho.

Mas, se vieres me amar,
olvida esse desarrimo,
como sol a escumar
cada dimensão de um limo.

Já que pretendes amar,
sê justa na tua crença,
deixa de lado o pensar
e aceita a nova sentença.


Antes que deixes de amar,
faz da bruma teu consolo,
para que o tempo, ao julgar,
reconheça-te o esforço.

Ao acabares de amar,
sem rastro cicatrizado,
sem um penitenciar,
sem jargão, mira de lado.

Para que tornes a amar,
refaz, em flor, teu caminho:
Abrigos hás de encontrar,
mas teu lar se erige em mim.

domingo, 10 de julho de 2011

Sobre sprays de pimenta e vocações


          Escrever um texto em que todos os professores se reconheçam não é tarefa grata. Até porque somos uma raça em extinção, como pandas ou ararinhas-azuis. Assim como esses bichinhos, somos criaturas dóceis, incapazes de fazer mal a qualquer ser que não seja espelho. Além disso, despertamos comoção entre aqueles que se sentem impelidos a defender causas nobres no planeta. Um dia, quem sabe, visitarão escolas para tirar fotografias em frente à jaula dos professores.
          “Mamãe, o que é aquilo com um toco de giz na mão e uma cara de poucos amigos?”
          “Ah! Aquilo se chama professor. Na minha época, eles viviam soltos por aí e eram muitos, mas hoje só podem ser vistos em cativeiro.”
          “Bicho mais esquisito, mãe!”
          Mas um dos grandes méritos do professorado é que somos dotados de uma credulidade quase papal. Acreditamos que a situação do país vai melhorar e, por conta disso, a classe política vai ser obrigada a discutir a educação de uma forma mais séria e efetiva etc, etc, etc. Venhamos e convenhamos, os políticos, ao menos uma parcela considerável deles, não está nem aí se o professor tem ou não condições de exercer dignamente seu ofício. Vou mais longe, as greves de professores tendem a ser as mais longas e inegociáveis possíveis, afinal, filho de deputado não estuda em escola pública. Na escola particular, greve é assinar a carta de demissão, e por justa causa, diga-se de passagem. Nunca ouvimos falar em uma greve de vereadores ou deputados, sinal claro de que estão satisfeitos com suas condições de trabalho e seus respectivos rendimentos. E outra, quando não se dão com o salário que ganham, basta uma canetada para, da noite para o dia, o pomposo contracheque dos legisladores aparecer com boas cifras a mais. Ninguém acha que um político é um coitado, ganha mal, é desrespeitado no seu ambiente de trabalho, corre risco de vida ao terminar o expediente pelas tantas da noite. Todo mundo quer ser político. Agora, quem quer ser professor?
          Digo, pois, com todas as letras: ser professor não é para qualquer um. Entretanto não me venham com poetizações ou pieguices em relação ao magistério. Fico estupefato quando colegas professores chegam com o discurso onírico de que devemos lecionar por puro amor, por vocação apenas, sem pensar em qualquer problema que ofusque o brilho perene dessa tão solene profissão. Pensando dessa forma lúdica, deve haver quem acredite que professor se alimenta de estrelas, bebe sorrisos e palita os dentes com patas de borboletas. Isso tudo é muito bonito, mas pouco prático. Antes de qualquer imaterialismo, precisamos entender o profissional da educação como um ser de carne e osso, que come, bebe, arrota, procria, deturpa a ordem vigente, cospe na parede e o diabo a quatro. Sem essa concepção, geramos uma teia de conformismos e injustiças, uma vez que o professor, por pior que esteja a situação, não pode abandonar o barco, pois sua atividade requer muito mais que salário ou condições de trabalho decentes. Talvez esse tenha sido o pensamento dos guardas municipais que, recentemente, descarregaram os sprays de pimenta sobre professores. Na cabecinha desses exemplos para a corporação, todos ali eram um bando de vagabundos, sem querer trabalhar, uns acomodados que nunca pegaram no pesado, só dão umas aulinhas aqui e ali e acham que se sacrificam. Se vivêssemos em um país com uma educação mais real e menos imaginária, os guardas que investiram contra os professores soltariam seus sprays de pimenta, desobedecendo a qualquer ordem truculenta para ferir profissionais que já são agredidos cotidianamente pela própria condição que se impõe a eles; em seguida, num gesto de solidariedade, se juntariam aos professores e passariam a exigir, conjuntamente, melhorias trabalhistas para todos. Mas isso é pura ficção.
          Conclamo, pois, a massa juvenil que ainda não tomou tento do que vai ser quando “crescer”. Sejam professores. Entanto, entre nessa para ganhar. Não aceite os mandos e desmandos impostos por uma sociedade cercada de idiotas que querem enfiar na sua cabeça que ser professor é a maior roubada, pois ganha-se mal, trabalha-se muito e não se tem a devida valorização. Não há nada neste mundo que se equipare ao prazer de lecionar. Essa é a primeira lição que o professor deve passar aos seus alunos. Para uma sociedade carente de pessoas que pensem e ajam, é interessante para a classe dominante criar uma publicidade negativa em torno do ofício de ensinar. Seria uma verdadeira revolução se tivéssemos uma leva de jovens, todos sedentos por mudanças, ingressando nos cursos de licenciatura e, em seguida, no magistério, prontos para aplicar novas técnicas e revolucionar a sala de aula. Precisamos de professores jovens, diferentes, entusiasmados e, sobretudo, dispostos a lutar em defesa da educação. Mas que fique bem claro, não espere medalhas de honra ao mérito ou coisa parecida. Muito provavelmente não erguerão estátuas em sua homenagem, nem batizarão ruas com seu nome. Ocorre que, mesmo assim, não é fácil esquecer um bom professor. Se, neste exato momento, fecharmos os olhos e acarinharmos a memória, em questão de segundos alguns professores ressurgirão em carinhas risonhas, amparos sempre providenciais, palavras alentadoras e lições inesquecíveis. Ser professor não é um sonho, eu sei. Para sonhar, é preciso estar dormindo. Uma coisa necessária para se tornar um bom professor é permanecer de olhos bem abertos, construindo esperanças necessárias para que os homens permaneçam acordados, e as crianças também.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Poeminha sem alma

 


          De tanto bater, o coração,
          lânguido,
          extenuado,
          reles,
          entregou-se à fragilidade,
          em desterro,
          pondo-se resignado
          ao carrasco.
       
          O coração, sábio que é,
          percebeu a tempo:

          Em vez de bater,
          melhor apanhar.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cio das horas

          entro em casa alheia, estrangeira,
          e, por agravo, procuro as horas,
          não as que se marcam em rangeres,
          mas as que se escondem

          nos móveis, nas fotografias, nas pálpebras;
     
          os ponteiros longilíneos, renitentes,
          esquivam-se de mãos engelhadas
          e marcam, sem mormaço, os traços pétreos
          das palmas imperitas!
     
          capturo um minuto em cio,
          e dele faço revelar um vulto:
          cheiro doce de café em fogo de lenha,
          passado puro, aroma de mãe.

          deixo-o partir em cardume
          para cumprir sua sina temporã:
          nesse minuto, feito rastro de cobreiro,
          uma rosa antiga me acolhe e cinge...

          


         
     

segunda-feira, 4 de julho de 2011

@narciso



                Passara a noite toda navegando pela internet, de site em site, como um fantasma, a tela refletida no seu rosto pequeno, de menino pálido, bem cuidado. Entrava e saía, num ritmo frenético, de inúmeras salas de conversas virtuais. Não dormia. A claridade do dia incomodava, então cerrava as venezianas para que a noite se estendesse. Assim seguia, decifrando cada ponto luminoso, dia após dia, iniciando e finalizando conversas, recebendo fotos e mais fotos de possíveis pretendentes, mas nenhuma parecia satisfazê-lo. Ele apenas buscava.
                Foi assim que conheceu @eco. A conversa iniciou-se por acaso, pela coincidência de nicknames, já que ele costumava apresentar-se como @narciso.
                @eco diz: Até que enfim um deus...
                @narciso diz: não sou um deus, mas gostei rs
                @eco diz: Adoro mitologia e vc?
                @narciso diz: amo...
              Não tardou para que a intimidade entre eles se consolidasse. Depois de algumas horas de conversa, tornaram-se amigos de infância. Ele não exigiu uma imagem da recém-amiga, o que normalmente faria se não estivesse tão envolvido. Prolongou de forma proposital o mistério em torno da dona daquelas palavras doces e elogiosas.
                @eco diz: Imagino como seja sua voz, gostosa de ouvir:)
                @narciso diz: fala mais
                @eco diz: imagino seus olhos cheios de brilho...
                @narciso diz: mais...
                Foram dias e dias desse jeito. Ela o idealizava, criava as mais delicadas descrições para o possível namorado, que se mostrava cada vez mais extasiado. Ele a sentia, fechava os olhos à procura da imagem certa, que pudesse traduzir toda aquela beleza.
                @eco diz: Quer me ver? posso mandar uma foto...
                @narciso diz: não, por enquanto não...
          Eles já se tinham como amantes. Perdiam a noção do tempo, afagavam-se com palavras entorpecentes, imaginando como seria um possível encontro, o que vestiriam, qual a reação dos dois quando finalmente tivessem a oportunidade de se mirarem.
    Já passavam dois meses desde a primeira conversa. A tela do computador parecia não comportar tamanha volúpia, derramada em frases cada vez mais pulsantes, impregnadas pelo desejo de se tocarem, se amarem. Finalmente tomaram coragem para marcar um encontro. Nada de fotos. Não havia a menor possibilidade de frustração. Ele sugeriu um cinema. Ela concordou. Dali a dois dias, finalmente se encontrariam.
    Chegado o dia, ele se produziu como nunca. Comprou uma camisa especialmente para a ocasião. Ela não ficou por baixo. Passou horas diante do espelho até se convencer de que estava verdadeiramente pronta para encontrá-lo.
    Ele chegou com meia-hora de antecedência. Sentiu náuseas, teve vontade de vomitar. Olhava para os lados, imaginando que ela surgiria da direita, que lá o sol se punha como nunca. Tentava enxugar o suor das mãos, enfiando-as nos bolsos. Até que ela rebentou, pela esquerda, dispensando a paisagem desenhada por ele.
   O que sucedeu foi inesperado. Ela estancou na frente dele, um sorriso largo deformava-lhe o rosto. A beleza do rapaz encantava, os traços delicados, os cabelos lisos cobrindo-lhe a testa, o rosto limpo, sem marcas, tudo exatamente como ela imaginava. Não disse palavra, esperando a reação do outro.
  Mas ele não encontrou o mesmo. Uma súbita sensação de arrependimento tomou conta do seu corpo, que amoleceu, como se não estivesse ali. Deveria ter exigido a tal foto, afinal. A única coisa que podia fazer era ir embora, voltar para o seu quarto, cerrar as venezianas, tentar novamente. Assim o fez. Sem qualquer desculpa. Apenas se virou e seguiu caminho, sem olhar para trás.
  Ela voltou para casa, desanimada, pressionada por cada segundo que havia perdido naquelas intermináveis conversas. Sentou à beira da cama, sentindo um estranho gosto de sangue. Transtornada, partiu para cima do computador, arrebentando tudo. Prometeu a si mesma jamais acreditar em arrebatamentos virtuais. Ninguém nunca mais soube dar notícias de @eco.
  Já no quarto, ele ligou o computador, a webcam, e foi tomar banho. Lavou-se de cima a baixo, como se livrasse de um fartum intragável. Ainda de toalha, pôs-se diante do monitor. A câmera focalizava-o por inteiro. Parecia hipnotizado pela sua própria imagem digitalizada. Ficou nu, e a beleza exposta na tela o remetia a todas as verdades jamais confirmadas nas palavras alheias. Aproximou-se da tela e abraçou-a com voracidade. Uma descarga elétrica tomou conta de seu corpo. Os pés descalços enrijeciam; a pele, ainda molhada do banho, fumegava do choque. Estirou-se no chão, abraçado à tela, agora sem vida, sem imagem, sem nada que lhe recuperasse o tempo perdido.      



         Desisti de esquecer para não ter que lembrar...

domingo, 3 de julho de 2011

Sobre desapegos e formaturas


          Por passear de tempos em tempos pelos vãos da palavra escrita, há quem me veja como uma espécie de conselheiro, um arauto da verdade absoluta sempre disposto a maquiar as mais inexcedíveis cicatrizes. Dia desses, tarde em prantos (poesia e caldo de mocotó só fazem mal aos que nunca provaram), um desses leitores me veio com a seguinte indagação: "O que fazer para esquecer um grande amor?". Confesso que fiquei surpreso, pois perguntas dessa monta devem ser dirigidas a especialistas, com turbantes, mantras e uma visão essencialmente psicodélica da vida. Ocorre que me senti na obrigação de responder, e o fiz da maneira mais objetiva possível, sugerindo o providencial exercício do desapego. 
         Precisamos urgentemente de algo que nos distraia do passado, esse comboio de fantasmas que, de quando em vez, nos desorienta com seus tropéis, apitos e fumaças. Existem coisas, pessoas e momentos que merecem ficar exatamente onde estão, estanques na memória, com cheiro de algo novo, com pele de avelã, com relva e arminho. Há instantes na vida que não precisam ser resgatados, não porque não mereçam, mas porque já tiveram sua hora de permanecer e encantar. Enquanto houve, criou-se um vínculo que, com o tempo, não se desfaz, mas permite elos, extensões que nos conectam ao porvir.  Se assim não ocorre, algo certamente está errado. 
        Desapegar-se, contudo,  não é tão difícil quanto se borda.  Recuperemos a imagem da velha e indissolúvel turminha do colégio, tão solenemente resguardada pelo amanhã. Os amigos da escola têm a estranha mania de nos presentear com o futuro. Todos unidos, convictos de que, um dia, esse futuro será redesenhado pelas mesmas cores que hoje tingem suas unhas e cabelos. Caminham pela certeza de que tudo pode ser de graça, sem interrupções, sem o pedágio dos ponteiros. Até que vem a derradeira classe. Ano seguinte, não há mais colégio. E agora? A escola, que tantas vezes nos serviu de antídoto para as veleidades do mundo, que sempre fazia questão de soar uma sirene antirrealidade quando algum aluno rebelde tentava descobrir o que existia além dos enormes portões de ferro; essa mesma escola, maternal e acolhedora, agora joga seus protegidos num campo de batalha sangrento e cruel, para o qual a maioria não se preparou. Um mundo sem notas, sem opções, sem "o cliente tem sempre razão'. Aos poucos, as juras de amizade eterna dão lugar a um turbilhão de receios. Ainda se tenta algum fôlego na indefectível festinha de formatura, mas não tem jeito. Mesmo com o chororô, que todo fim merece uma lágrima; mesmo cantando "Amigos para sempre" sete vezes, que sete é número de sorte; mesmo com todas as fotos adornando as redes sociais, que não há mais diferenças entre o real e o virtual; mesmo com tudo isso, a realidade, descortinada de forma tão abrupta e brutal, cobra seu espaço. E o que se fez próximo torna-se distante. Assim, os amigos de sempre se tornam amigos de vez em quando. Quase amigos. Colegas. Conhecidos. Como é mesmo o nome dele? Acho que conheço aquele cara, mas deixa pra lá. O desapego veio como algo natural, pela necessidade de limpar a gaveta.     
           Não se deve simplesmente apagar o passado. Entanto, cada momento que experimentamos tem seu prazo de validade. Às vezes, por alguma razão, precisamos esvaziar o salão  para dar lugar a novos convidados, mais estimulantes e hipnóticos do que os que ali estavam já sem vontade de dançar e cantar. Que tal dar uma olhada nos velhos guardados para selecionar o que realmente merece habitar nossa lembrança, que muitas vezes se incorpora numa caixa de sapatos abarrotada de porcarias colhidas nestas idas e vindas sem fim? E se encontrar aquela fotografia da turma da escola, a única que não foi digitalizada, faça o que se deve, rasgue-a. Dê uma boa olhada antes, tente lembrar o nome das personagens, recupere seus apelidos, ria das traquinagens, sinta o gosto de cada um. Se conseguir fazer tudo isso, a tal fotografia já não será mais necessária.      
          Ah reticências, velhas fiandeiras, resguardantes das nulidades,
          velai o cair da tarde, tangendo as palavras no pasto encarnado...