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segunda-feira, 1 de maio de 2017

Eu matei Belchior!


   De princípio, chegamos a acreditar que as coisas novas nos encontram tarde demais. Mas esse pensamento costuma surgir bem depois, quando qualquer arrebatamento não passa de um cheiro enjoativo de incenso vendido em feira. Na juventude, quase tudo nos enleva e nos transporta a um tempo de descobertas que se torna instigante e melancólico por ser tardio.
    E foi exatamente assim, inebriado por uma penumbra de insatisfação com tudo que me cercava, que ouvi, pela primeira vez, a canção "A palo seco", de Belchior. 
    Estava pelos dezessete anos, já no curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Procurava me encontrar em meio a tantas caras novas, tantos gritos contidos, tantas faces ainda por se construir como peças de um mosaico. Era noite, pois assim deveria ser, e acontecia uma espécie de sarau no bosque Moreira Campos, outra figura que vim a conhecer muito tardiamente. Entre estranheza e desassossego, dei de sentar em um fio de pedra no tento de apenas observar o movimento. Até que uma figura de cabelos compridos surge de assalto, saca um violão e começa a entoar uma canção que falava de desespero de uma maneira misericordiosa e, ao mesmo tempo, essencialmente convidativa à reflexão e à revolta. 
     Não resisti a aproximar-me do camarada e perguntar se aquela belíssima letra era de autoria dele. Nunca me esquecerei daquele riso murcho e daquela expressão reprovativa ao me responder lacônico: "Não! É Belchior!". A maneira como me respondeu fez-me corar de vergonha, afinal de contas eu sequer sabia do que ele estava falando. Belchior? Não me vinha nada com esse nome, nem mesmo o jardineiro amolgado do romance - uma lástima, por certo, para um estudante das literaturas!
     O nome Belchior e a letra da tal canção ainda martelariam por dias sem fim na minha já tão acabrunhada memória. Se fosse hoje, bastaria puxar do bolso um "smartphone" qualquer e voilá, habemus papam. Naquele tempo, tudo era mais difícil e burocrático. 
     Só depois de muito inquirir e vasculhar, acabei por descobrir que um amigo de faculdade tinha um disco chamado "Alucinação", do dito Belchior. Tratei logo de pedir emprestado. Mas ele não queria emprestar, sob a alegação de que o material era uma raridade. Que banho de água fria! 
      Quem sabe por se comover com minha cara de frustração diante de sua negativa, ele sugeriu algo que me soou como presente. Se eu lhe desse uma fita cassete, ele gravaria o disco para mim. Assim o fiz. No dia seguinte, estava eu com uma Basf novinha, pronta para ser gravada. Prometeu-me, então, que traria no dia seguinte. Demorou quase um mês. Quando finalmente decidiu me entregar a bendita fita, já nem sabia se deveria mesmo agradecer. Agradeci assim mesmo e tomei rumo.
     Em casa, na privacidade do quarto, peguei meu toca-fitas portátil e botei a fita para rodar. O que veio depois nem sei como explicar. Ouvia cada faixa umas três ou quatro vezes, isso para poder entender mesmo, deglutir as letras, anotá-las em um caderno, quase como se me pertencessem. Com o tempo, fui estabelecendo com essas canções um acordo de pertencimento. Elas eram minhas, ao passo que eu me entregava a elas mansamente, como se por medo de me extasiar em demasia e não conseguir mais encontrar o caminho de volta. 
      Ao passar dos dias, apreendi também o nome das canções. "Apenas um rapaz latino-americano", "velha roupa colorida", "Como nossos pais" - que já tinha ouvido na voz de Elis Regina. E a canção que me despertou para tudo isso: "A palo seco". Duro foi saber o que essa expressão significava. Mas tudo veio em seu momento certo. E fui, enfim, apresentado a Belchior. 
     Ele me acompanharia por meses a fio, quase num ritual diário, um mantra. Não saía de casa sem antes ouvir o que quer que fosse de Belchior. Outras canções chegaram, as preferidas se estabeleceram. Mas, de susto, ele partiu de minha vida. Letras e leituras diferentes tomaram conta de meus dias. Belchior passou a ser um nome eventual. Suas músicas se distanciaram de mim. Migraram para o Sul, quem sabe. No começo, ainda mandavam notícias da nau. Depois, deixaram de me procurar, muito por não obterem resposta de minha parte. Eram como um amigo distante, que só fazia sentido ou despertava algo quando se materializava, mas, se não, desaparecia fácil da lembrança. Belchior, aos poucos, foi esvanecendo da memória;
    Meu Deus, em que momento mesmo eu matei Belchior? Quem me fez fazer isso? O pacto que estabeleci com a maquinação renitente do dia a dia? A concupiscência mercantilista a que submeti boa parte de minha sensibilidade? A indefectível pressa que me fizera queimar os escritos que outrora me protegiam? 
     Penso que sou esse assassino. Matei Belchior. Hoje até teria o poder de ressuscitá-lo. A tecnologia me permitiria esse feito. Mesmo assim não mais dividi com ele as mesmas sensações de desamparo. Para reencontrá-lo de verdade, eu deveria morrer também, mas, por enquanto, falta-me a coragem necessária para tanto. Talvez eu morra amanhã, só para experimentar mais uma vez o corte cego da primeira navalhada.