Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Criogenia


          Não faz muito tempo, ou que faça, que não se detém em ponteiros o dia das descobertas, que não importa se o tempo teima existir, ou não, entre os acontecimentos; por certo, nos arcabouços da memória, não faz muito tempo que encontrei e perdi as razões as mais intrínsecas possíveis para crer em um futuro bom, um amanhã promissor, fecundo, como vésperas de aniversário, como bodas de qualquer coisa, como celebração por estar-se junto, simplesmente assim, lado a lado, comemorando a primeira semana que inauguraria uma vida inteira.
           E não seria a voz o instrumento maior do encantamento, ainda que soasse familiar, que invadisse os poros com a intimidade do colo materno, o seio encantado, eivado de vida, o néctar provinha dessa voz melodiosa, sem cântico, sem celebração, apenas a voz a espantar os pensamentos mais simplórios, até deu de esquecer o entupimento das artérias, o supermercado e as famílias insones que por ali circulam, as pontes  que se jogam das vidas alheias, não seria essa mesma voz que me condenaria a mim mesmo, mais ninguém. 
           Ainda sorver o corpo pálido, raríssimos pelos, contar-lhe os poros, um a um, e apalpá-los, senti-los agudos como estacas, viciosos, pequenas bolsas de ar daquelas embalagens plásticas, e uma alvura enternecedora, olhos por toda parte, as curvas miram arredores, desprezam passantes, insegura é essa morada, não para a proprietária, mas para os condôminos, os que nela amparam-se momentaneamente, os que partem dela para outras moradas, há vãos ali jamais ocupados, empestados de ansiedade, intensamente carregados de um algo confuso e disperso, como na incerteza do que se possa restituir. 
       Se não os olhos, o olhar de esquina, o jeito dobradiço de correr vista sobre os veios menos interessantes, as cavidades tão pouco evidentes, pomba acastanhada de voo raso, perscrutando as fontes, invasores é o que são, fontes inesgotáveis de indagações a confundir o interpelado, mansos quando se entregam à dor, longos como dedos, íntimos quais as pegadas que a maré poupa, levemente aquosos, não pela lágrima, que lhes é natural, senão por sua natureza especular, que me vi nascer e morrer em suas águas medicinais.
            Reservaria uma noite para palavras que lhe descrevessem o ventre, as mãos, os dentes, as íntimas partes, desde que as houvesse em segredo, em perfeito estado de hibernação, criogenia, que assim é o que mantivemos e não mais nos ampara, um algo que teima em não secar, mesmo nas estações mais estiosas, mesmo no assédio do esquecimento. 
              Se resolver dormir, que o faça serenamente: os erros cometidos humanizaram-te a ponto de resgatá-la de um profundo estado de torpor. Que as noites restantes recuperem-nos as forças e as auroras desmintam sonhos e lancem luzes sobre as dores, cauterizando-as. 
          
             

sexta-feira, 5 de outubro de 2012


Prefiro-te assim, inexistente,
guarnecida por metros e metros
de um sentimento farpado,
cujo padrão aferi com palmos 
furiosos e desproporcionais.

Prefiro-te assim, indelével,
marouço invasor iludindo rotinas,
baixio nas costas marítimas,
faixa de mato que escolho cuidar,
tolher sem a menor comiseração.

Prefiro-te assim, distraída,
concebida na mornidão de uma manhã
sôfrega e intrusa, a luz a penetrar
a pele confusa por tanta ira
estagnada nos igarapés da descrença.

Prefiro-te assim, paciente,
à espreita de um momento fixado
que altere o estado das coisas,
que deslize, feito saudade,
pelos últimos resfôlegos do peito errante. 

Palavras ainda existem.
O que não encontro são as familiares alpercatas,
os indícios de movimento pelos corredores,
a grisalha partitura, a voz.

Palavras ainda insistem.
Faltam-me as horas leves do recomeço,
as cordas do violão sem ferimentos,
o marasmo das fantasias vãs, o silêncio.

Palavras ainda escorrem.
Sombras são os entes de amanhã,
a matéria que extingue a aflição dos ossos,
a carne viva dos porta-retratos, a memória.

Palavras ainda invadem.
O espelho é a antiga sinuosidade do corpo,
a alvura dos passos na calçada alta,
a leva de reminiscências sem data e jornal, a crença.