Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 24 de agosto de 2010

          Como é árduo apostar na realização de um sonho! Melhor mesmo contentar-se com o sonho literal, aquele que, surreal e efêmero, só existe durante o sono. O pior é que sempre existe quem seja do contra, quem não goste de literalidades, quem não se permita guardar sonhos na gaveta. Esses são tolos, são os que se arriscam pela possibilidade, por vezes irrisória, de experimentar a divinal sensação de apalpar o etéreo. Não, é melhor permanecer quieto. Afinal, para que arriscar? Tudo bem que, um dia, alguém apontou para o horizonte e disse: É pra lá que eu vou! E foi. E encontrou o que buscava. Que tolice dar um passo adiante sem a certeza de um solo, de uma placa de advertência antes do oitão.
          Ah, esses sonhadores me tiram do sério! Sempre tão felizes, tão íntimos de tudo, tão retilíneos no que fazem... Sabe o que eles dizem: o medo é a razão dos perdedores. Alardeiam por aí que, se não houvesse o medo, não haveria amores impossíveis, políticos escroques, crianças famintas, guerras santas. Sinceramente, quem trocaria um acesso banda larga à internet por um passeio, sem amarras, por uma praça florida? Quem largaria o confortante abrigo de um Orkut por uma barulhenta e colorida festa de réveillon? Quem abriria mão da segurança européia de um MSN pelo frêmito das palavras certas, sussurradas na medida certa, pela pessoa certa?
          Um sonho pelo qual não se luta é uma igreja sem fé, dizem os sonhadores, e, pasmem, caros leitores, eles ainda são capazes de reinventar amizades, tecer firulas na chuva, caminhar descalços pela areia da praia. Parece até que não existe assalto, resfriado, traição...
          Mas uma gripe nunca arrefeceria o gosto pueril do sorvete; nada que houvesse decifraria o enigma esfíngico que percorre o mar até o horizonte; ninguém, por mais ressentido que fosse, teria alpendre seguro na solidão.
          Tenho inveja dos que sonham. É isso. No fundo, no fundo, é pura inveja. Viver não é preciso, sonhar é preciso. E realizar também. E confraternizar. Agir duas vezes antes de pensar, eis o segredo. Não ter receio. Basta entender que o necessário para a felicidade não está numa tela, numa garrafa, numa carteira, num passaporte... Está sim no vigor das mãos, na suavidade da voz e no conforto do colo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sobre revoltas e banhos de mar

          Que coisa louca essa correria desenfreada, esses relógios em erupção constante, esses olhos de asfalto esbugalhados sobre nossas cabeças. O espelho aponta-nos falhas irremediáveis, imprecisas, cegando-nos pela ação revitalizante dos cosméticos virtuais. Os jovens buscam, em despreparo, os veios da maturidade, confundindo liberdade de espírito com penteado da moda. Os velhos, que assim não o são, travestem-se de puerilidade, como se fosse possível guardar a juventude no guarda-roupa, junto ao remédio para hipertensão. O que falta a esses indivíduos de porcelana é um daqueles inesquecíveis tabefes da vida, dos que se marcam por remorsos ou arrependimento, dos que desorientam de tal maneira, que os caminhos clareiam e os tijolos se alinham.
          Tomemos uma atitude, criemos grupos de resistência, levantemos a bandeira de que a felicidade absoluta corre por nossas veias, sem a fealdade das telas-espelho, sem a fatalidade dos modismos com molho especial e picles. Afinal de contas, o que diabo é “picles”! Vamos às ruas, fuzis em punho, fechar lojas e abrir corações. Temos de seqüestrar um ônibus. Isso mesmo, seqüestrar! Marquemos um local estratégico, em um desses pontos movimentados da cidade, e esperemos o coletivo ideal, de preferência o que conduz ao trabalho, o que vem abarrotado de interrupções, entupido de torpor e apatia. Já no ônibus, um de nós vai até o motorista e instrui que ele siga por outra rota, previamente traçada. Os outros terão que aplacar o pavor dos passageiros. “Não queremos dinheiro, é só um sequestro!”. Nada como uma boa nota de sarcasmo. Obrigaremos o condutor a seguir até uma praia deserta, dessas de propaganda de cerveja, e lá, sem muita pressa, pediremos que cada passageiro observe atentamente o mar, ouça seu cálido convite, suas asas pensas sobre a areia, seu grito incolor de protesto. Hora de mergulhar. Todos, sem exceção. É preciso sentir a água morna, exorcizar os relógios, lembrar que, para atar os laços da divindade, tem-se que subir nos ombros uns dos outros.
          Aos poucos, as intempéries da existência dariam lugar a um gosto salobre de novas esperanças, e as pessoas teriam pelo mundo um estranhamento necessário, um apreço filial. Uma dolorosa reconciliação se processaria. O operário, que tantas vezes se confundiu com os andaimes, decidirá escrever na areia um poema há muito abandonado. A senhora presa às compras caminhará pela praia e, pela primeira vez, lembrará com carinho seu velho amor, já desaparecido. Os estudantes teleguiados construirão castelos que, de tão frágeis, serão confundidos com espelhos. O motorista conduzirá as leis do mundo e perceberá o dinamismo das aves e dos insetos que o rodeiam. O professor assumirá sua ignorância e exigirá do mar um tridente e os tritões. A prostituta em carne viva esquecerá, por cinco segundos, as dores alheias e se ocupará, depois de séculos, de suas próprias dores. O estelionatário de bela face rasgará o tempo e as promessas de vida fácil, restando-lhe apenas o conforto do sol e das nuvens encarneiradas. O homem sem rosto gravará seu nome em todas as árvores do manguezal.
          Depois disso tudo, retornaríamos aos guetos, não mais os mesmos. O ônibus, outrora carregado de exilados, agora traria as chaves para os tormentos do mundo. Os cordões umbilicais de concreto e piche se desfariam. Seria o princípio de uma revolução silenciosa, um tempo de coexistir sem receios ou covardias. Assim, em todos os pontos de ônibus, figuras insanas se armariam de consolações e rasgariam os ponteiros, que os germes da mudança proliferam e o sal das coisas nos condena à plenitude.




domingo, 15 de agosto de 2010

Lembranças e esquecimentos


          O mal de Alzheimer, ou doença de Alzheimer ou simplesmente Alzheimer é a forma mais comum de demência. Um sintoma primário é a perda de memória. Evidentemente, não é algo que se deseje a alguém. Entanto, se pudéssemos dosar essa patologia, rastrear seu desenvolvimento e usá-la em benefício próprio, que espetacular seria. Imaginemos um remédio, criado a partir dessa doença, para deletar de nossas cacholas apenas o necessário. Para não mais sofrer com aquela derrota monumental do time de coração, bastaria uma drágea. Para não mais recordar aquela malfadada angústia de não ter sido aprovado em um concurso, depois de anos de preparação, uns dois ou três comprimidinhos já seriam suficientes.
          Agora, para esquecer os arrebatamentos líricos que a vida nos reserva, seriam necessárias umas boas doses cavalares, mesmo assim sem muitas garantias de sucesso. É que existe uma diferença abismal entre o que esquecemos por pura falta de vitamina B1 e o que tentamos desesperadamente não mais lembrar. Minha memória, por exemplo, é rala, exaurida pela falta de tempo e pelo tabagismo inveterado. Costumo confundir-me entre números e palavreados, de sorte que, vez ou outra, me surgem verdadeiras páginas em branco na lata. Houve, certa feita, um encontro para o qual me preparei a vida inteira e ao qual deixei de comparecer, por entraves vários. Entenda-se que isso ocorreu não por esquecimento, mas sim pela vontade tola de apagar da mente o que desde sempre fincou raízes. O tempo do reencontro passou, mas ainda me pego imaginando o que teria dito naquele momento. Para começar, sentado à mesa do botequim de esquina, confessando à fumaça boa parte de meus arrependimentos, mataria o tempo a golpes de silêncio, até acreditar que os astros estariam todos em alinhamento. Sem muito alarde, iniciaria a palestra, sempre buscando os olhos atentos de quem ali estivesse pelo simples desejo de ouvir. As palavras seriam exatamente as que seguem:
          “O tempo nunca foi nosso aliado, não é mesmo? Sempre estivemos quando não deveríamos estar. Tenho algo a confessar: tentei esquecer. Atravessei os desertos da alma em busca de fontes que não te refletissem a face. Inútil. Aprendi que a maneira mais dolorosa de lembrar é tentar esquecer. Bom, isso não vem ao caso. O que pretendo é dizer que a fé não acabou, que sempre tive bons presságios com a tua presença. Tuas asas agora estão fortes, consolidadas, e o que esperar com isso, senão o voo inesperado até fugir de qualquer alcance. Ainda me alegro com o que me ensinaste, não por função, mas por vocação em minha vida. Um dia fui jardineiro firme, cuidadoso de teu jardim, eivado de incertezas daninhas que fiz questão de podar. Sei que hoje, no vão de tuas horas, pouco sobra espaço para fotografias cansadas. Somos instantâneos de vida, estáticos diante da impossibilidade de realizar, nem que por um átimo, aquilo que planejaríamos para a vida inteira, se não tivéssemos tamanha blindagem cardíaca. Porém, sei que nos comunicamos nos telegramas oníricos, nas entrelinhas dos textos, nas curvas melódicas das velhas canções. Passeamos entrelaçados? Lemos, a um só tempo, o mesmo conto? Sorrimos constrangidos em jantares familiares? Que importa! Fomos além. Desvendamo-nos, e isso é mais do que a maioria consegue em uma única existência. No mais, sei que tua lida é constante e vitoriosa, que teus passos ainda são frágeis e ininterruptos, que teus sonhos são maleáveis e certeiros. Se precisar, estou no farol, guiando-te. Não há ninguém que te queira mais próximo da praia, que a vida te reserva o mais seguro e promissor dos portos. Adeus.”
          Que algum desses abençoados cientistas, capazes de realizações beirantes do comportamento divino, leia atentamente este texto e crie o tal medicamento que nos favoreça com os benefícios do esquecimento. Se precisarem de algum voluntário, estarei à disposição.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Retrovisor


          Existe, em algum ponto obscuro da alma, uma espécie de mapa que, no tempo certo, nos guia em retorno a tudo que, um dia, nos deixou. Assim, como na intenção de resgatar um náufrago, às vezes é necessário refazer meticulosamente cada passo, reiterar rastros antigos, desmentir as horas, dar as costas para o futuro. E por onde começaríamos se fôssemos agraciados com a dádiva do retorno?
          Minha primeira parada seria pelas calçadas da infância. Nada é mais leve e desinteressado que o tempo de um menino. As brevidades dos sentimentos, os invencionismos das molecadas das ruas vizinhas, a turma juramentada pela ingênua arte de crer na eternidade. Cresci respirando a renovação das coisas, mesmo sem ter consciência disso. E se todas as dores fossem como as da infância, tudo seria mais fácil. O olho roxo, o joelho arrebentado, o calcanhar em carne viva. O chato é que na fase adulta as cicatrizes se tornam invisíveis e as feridas sangram só de lembrar que elas existem. O certo é que houve um tempo de descer ladeiras no carrinho de rolimã, riscando o asfalto recém-inaugurado, e de aventurar-se pelo sempre solícito pé de castanhola e dali espiar o quarto da misteriosa vizinha, desfilante em trajes íntimos pelos nossos sonhos mais ousados. Deve haver algum bom motivo para essa fase acabar assim, tão abruptamente, sem aviso prévio ou direito a ressarcimento.
          De passagem, reencontraria a malfadada adolescência. Foram anos difíceis, com algumas privações que, depois de tantas e tantas bordoadas, me fizeram entender que o interesse individual não é nada perto do anseio coletivo. O que tenho dessa época são achaques vários lançados contra a vida. Detestava os olhares de pena, muito piores que os de indiferença ou ojeriza. O mundo rompia sua casca. Já não mais havia o colorido das histórias em quadrinhos ou as alegrias de asfalto. Tudo enegreceu de repente. Os amigos de sempre permaneceram na infância e até hoje encontram lá casa e sombra. Optei por enfrentar as feras e os ponteiros. Passei a consultar o mundo pela lente nívea dos livros. As letras suavizavam as horas, faziam-me crer na condescendência do futuro, na indulgência das pessoas. Assim, desliguei-me do menino e contraí as enfermidades de todos que, como eu, sentiam a pele arder de ansiedades e incertezas. Da maneira mais difícil, percebi que a mãe de todas as revoluções é a necessidade.
          Já como adulto, muito mais desfiz do que realizei. Mal larguei as espinhas, me vi casado, pai de família, entupido de contas e responsabilidades. O pior é que, por essas horas, o tempo nos arrasta a um precipício de dúvidas e incompatibilidades, muito por tentar esganar sentimentos rompidos brutalmente na hora errada. Nessas veredas, perdi-me em olhos beatos, agarrei-me a cada segundo agonizante, antevi dívidas e soldos. Melhor parar. Vasculhar o passado é como perscrutar antigos álbuns e descobrir que nos melhores momentos não estávamos por perto. De tanto recordar as pessoas que amei e os caminhos por que trilhei, quase apaguei da memória o melhor de mim e perdi o chão que me favorece agora.