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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

* Texto lindo de minha Maria. Uma confirmação. Uma profissão de fé.

Ainda não entendemos como o tempo,
tão curto ainda, 
existe em função de tudo 
que se pode realizar numa vida inteira. 
Já confessamos um segredo perigoso, 
do tipo que se guarda para sempre, por medo ou vergonha. 
Já curamos males que ciência ou mesa de bar alguma consegue tratar. 
Já pintamos uma janela ouvindo música. 
Já acordamos ao som de “Eu te amo”. 
Já envergamos. 
Já arriscamos. 
Já o vi chorar. 
Já temos um jardim. 
Já bebemos como dois velhos amigos. 
Já dançamos.
Já assistimos a uma apresentação do Suassuna.
Já experimentamos as primeiras alianças, que trançamos um para o outro. 
Já nos seguramos firmes, como só irmãos podem resistir.
Já nos presenteamos nos dias comuns do ano. 
Já nos surpreendemos. 
Já manifestamos, como o Dragão do mar. 
Já coincidimos prazeres no escuro.
Já escolhemos nossa música com todo o sentimento. 
Já caímos e levantamos. 
Já nos movemos por fé. 
Já perdoamos falhas dolorosas. 
Já podemos enfeitar mais de um álbum de fotografias. 
Já nos buscamos, cedo ou tarde do dia, em outra cidade ou num barzinho da rua. 
Já sei, de cor e salteado, as suas poesias. 
Já velamos o sono de cada um.
Já nos cuidamos, quando muito cansados.
Co(n)fundimos os nossos nomes.
Já dormimos nos beijando. 
Perdemos, e as vezes são inúmeras, as horas. 
Todos os dias, recebo suas palavras róseas. 
Todos os anos, em seu aniversário, dedico a ele as minhas melhores e mais raras letras. 
Já perdemos as formalidades superficiais, aquelas que acusam somente distância, 
as pertinentes ainda não, que a admiração não nos deixa dispensar o trato gentil.
Já brincamos com travesseiros e beliscões.
Já nos aconselhamos.
Já nos amamos.

domingo, 24 de novembro de 2013

Porvir


ainda não compensei os convites ausentes,
tampouco estanquei o desejo irrefreado de vê-la invitar-me,
não percorremos caminhos interioranos
nem comparei à piçarra molhada sua pele morena;
ainda não olhamos atentamente o mar, embevecida e demoradamente,
sequer admiramos o ocaso ou deitamos vista sobre o oriente;
não desenredamos todas as curas, também não curamos todas as exegeses;
ainda não a vi afligir-se de cansaço
nem lhe dei a oportunidade de partir em paz;
não recordamos o suficiente, sequer apuramos o tempo da memória;
ainda não viajamos, não cozinhamos juntos, não desenhamos coração no pulso,
não pusemos cria no mundo, não nos abraçamos no dia do aniversário,
não nos despedimos com um volte logo, não nos cobramos presença,
não perdemos por completo a formalidade;
ainda não preenchemos os vazios, não lemos poema de Quintana
ou nada compusemos a quatro mãos, a não ser o futuro;
não nos beijamos sob as luzes de artifício do réveillon,
não segredamos dores, não assistimos a um casamento,
não adormecemos ao som de "Eu te amo";
não acariciamos as paredes recém-erguidas de nossa casa,
não nos amamos na chuva, em noite de quintais.
Ainda não nos convencemos dos contrários
nem desacreditamos da imanência dos acasos;
não tomamos vinho tinto, não mergulhamos com golfinhos,
não viajamos a Paris, não nos preocupamos com as horas navalhadas;
ainda não perdemos as comparações, não arrefecemos o ciúme
ou adestramos a saudade;
não recebemos a visita dos nossos, não dançamos sozinhos no meio do salão,
não montamos álbum de retratos, não fomos ao cinema,
não trocamos carícias diante dos amigos,
não nos presenteamos no Natal;
ainda não ouvimos estrelas, não pintamos nosso quarto,
não nos queixamos das ausências, embora breves;
não levamos um filho ao hospital, não combinamos surpresas,
não adivinhamos frases, não experimentamos as dores alheias,
não tememos o dia seguinte
nem perdemos a fé;
não noivamos, não casamos,
não penduramos na parede da sala de estar
a fotografia de família;
ainda não assistimos a uma apresentação de Alceu,
não cultivamos orquídeas,
não desacreditamos das flores,
não choramos o suficiente;
ainda não tomamos café na cama,
não passamos o domingo no aconchego de uma rede;
ainda não nos livramos dos vícios,
não nos precipitamos no abismo,
não saltamos de paraquedas,
não despressurizamos a cabine,
não nos esperamos no aeroporto,
não arrepelamos as últimas farpas,
não tomamos sorvete de cupuaçu,
não nos medimos a temperatura,
não nos arrependemos de nada;
ainda não permitimos derrotas,
não apadrinhamos ninguém,
não experimentamos as alianças,
não tememos as vias escuras;
ainda não entendemos como o tempo,
tão escasso, tão magro,
existe em função de tudo
que ainda não foi realizado.  

sábado, 16 de novembro de 2013



"Para tão longo amor, tão curta a vida."
Camões


          A vida nos conferiu a dádiva do reencontro. Instruímo-nos pelo tempo, pela espera, pela fé em algo distante e amorfo, mas orientador de crenças, justificador de desejos, que é assim, a estender a mão, a forma mais inteiriça de súplica. Se tudo começou por um gesto de amor, se a própria existência assim se fez, não é diferente o que em nós irrompeu, como a construção do mundo, nas mesmas dores e essências da criação. Estamos pelo que se fez desse universo erguido sobre as distâncias. Somos pelo que se apresenta até onde as vistas arpoam, caminhos longevos e sinuosos, que assim são todas as trilhas. 
          O amor está nela há mais tempo, não há dúvidas, pelas razões mais inesperadas, que era apenas uma menina, mais sustentada pela clarividência do olhar atento do que pela gana de permanecer de pé. Encantou-se comigo de primeira. Será verdade? Precisamente eu, o ser mais insípido da face da terra, sem braços firmes, de pernas bambeadas de cansaço, arfante do cigarro, dependente inveterado das gentes que me cercam, distante, pálido, insone. Por que eu? A própria esperança embrionada em uma garotinha de ares interioranos e trejeitos formais atraída por um professor simplório e alheio a todo o plano que começara a se desenhar a partir daquele momento. Entanto, apesar de as imagens desse tempo se distanciarem - se fossem impressionistas, haveria mais nitidez pela distância, mas as tenho surrealistas - vejo-a ao lado do namoradinho de escola, tão combinados, sem nada a pesar-lhes nos bolsos, a cabeça despida de comparações, que eram os primeiros exemplares de um mundo que, até então, não se abrira. 
          O ano acabou, e a primeira distância veio. Passei tempo sem vê-la e confesso que não mais trazia comigo qualquer vestígio de sua presença. Porém, anos depois, ela retorna, carregada ainda do mesmo amor, talvez movida a duras penas por ele. Mulher longe das imagens colegiais, apesar do ar ainda maquinal de menina desamparada, mas era inteiriça agora, despertava atenções, desejos, malícias. Em mim, revelo, o que se deu foi curiosidade. O que faria essa menina por ali? Descobri depois que ela estava naquele lugar por mim. Será verdade? Justamente eu, desmerecedor de qualquer tipo de amparo, professor de tantos, aluno de poucos, fugidio, arisco, vazio como a pedra que educa, iluminado pelo sol das aspirinas, sempre de supermercado em supermercado a vasculhar cada prateleira em busca de felicidade. Dessa vez, aproximamos-nos, embora distância ainda houvesse. Fisicamente, estávamos próximos, mas as circunstâncias do tempo nos separavam. Tanto o tal tempo fez, que findou, mais uma vez, por nos separar, e eu crente que fosse de vez. A segunda distância veio.
             Vez em sempre, apanhava-me vasculhando sua vida. Sentia-me tolo, ameninado. Admirava-a de longe, sem o menor contato que fosse, receoso que era de modificar o que já estaria certo em seu caminho. Tive duas oportunidades e não aproveitei. A vida jamais lançaria mão de uma terceira margem. E aconteceu, por pura casualidade, outra vez nós dois em meio a tantos, próximos e ainda distantes. Deixei que ela passasse por mim duas vezes, para certificar-me de que os caminhos estavam livres. Reencontrei-a então pela terceira vez. Será verdade? Finalmente eu, que tanto esperei encontrar um lugar que me fosse comum, uma bússola que apontasse na direção de um futuro promissor e feliz, um amparo de quem nunca, por hipótese alguma, me soltaria a mão, uma espreguiçadeira à beira-mar que gritasse serenidade pela certeza de que mentiras e hipocrisias não mais haveria. Dessa vez, não mais nos separamos. Decidimos confiar nisso que os mais exaltados chamariam destino. Sim, creio que essa história não começou a ser escrita de agora. Estava escrita antes mesmo de se inventar a razão da existência. 
                 O próximo parágrafo é exclusivamente para ela. 
             Minha vida, amo-a sem imprecisões, de forma pura e independente. Em você, descobri passo firme, liberdade de ser o que sou e o que não poderia ser. A paz reside em seu sorriso, mais que simples sorriso, a medição de todos os sorrisos. Sua força, que fortaleza essa! Como braços tão pequenos e mansos podem sustentar tantas vidas?  Se seus braços faltarem, tantos cairão. Quanto orgulho sinto dessa minha pequena, minha morena de todas as horas, que cabe tão bem no meu abraço, que me acolhe de forma tão solidária. O que dizer senão da imensa alegria de tê-la a pintar minha casa com as tintas da esperança. Não, amor, não vou impedi-la de fazer nada. Apenas caminharei ao seu lado, sem qualquer resquício de distância, para que eu possa, aos poucos, retribuir o que foi feito por mim. De seus olhos quais enigmas, desenhos de Nazca, renasci. Para toda a eternidade, estarei aqui. Exatamente aqui, onde sempre estive. E a terceira distância, depois de crisálida, metamorfoseou-se em amor. 
          

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Via crúcis



          Em uma barraca de praia, há pouco, um homem que, como todos por ali, aproveitava o feriado em conversas fiadas, petiscos variados e cervejas geladas deu de estrebuchar, contorcer-se e cair. Estava morto. Na mesa ao lado, eu apenas observava o tumulto. Choro de quem quer que seja não houve. Apenas o baque, o arrebatamento inicial de quem não esperava que, em pleno feriado, ao pino do sol, em uma praia, alguém pudesse morrer. Aos poucos, mesmo com o cadáver estendido na areia, a normalidade tomava conta dos passantes. Em uníssono, uma pergunta. Como ele morreu? Hipóteses não faltaram. Coração entrevado, acidente vascular cerebral, alergia a caranguejo, engasgo, overdose. Mas, no final das contas, ao se inquirir o motivo de sua morte, conscientemente ou não, perscrutavam-se também as razões de sua vida. Como ele viveu? 
            Vivemos muito pouco, ao menos para o que realmente deveríamos fazer. Ao longo de trinta e seis anos, a vida me foi um tanto imprecisa. Sobrevivi a sobressaltos, colhi restos e apaziguei lembranças. Por vezes, fiz escolhas torturantes, dessas que deixam estigmas profundos na alma. Extirpei passos promissores, senti dores terríveis no ombro e nos joelhos. Descobri, a duros entraves, que felicidade não se compra a granel, tampouco se engarrafa ou se perde em fumaças. Senti cada poda, desviei a atenção de mim, empobreci-me. Lutei como qualquer brasileiro, dei-me às promessas de um futuro profissional sólido, dediquei-me, na maioria das feitas, às coisas erradas. Deixei de pedir perdão quando deveria e cheguei a pedir demais quando não mais existia fé. Desacompanhei minha cria, fui acusado de inúmeros crimes dos quais, por contradição, não me sinto réu. Tolerei as mais vis lembranças e carreguei a cruz de todas as culpas do mundo, qual Cirineu. Se me fosse dada a oportunidade de redesenhar algo, que se afastasse de mim, pois, o cálice da culpa.
            Caminhei, por certo, em passos desastrados, mas sempre fui diligente no que concerne à vida alheia. Nunca me permitiria atravancar caminhos há muito escritos. Ausentei-me inúmeras vezes para não conduzir comigo a falta de ter, ainda que sem intenção, desviado o destino de outrem. A frialdade das coisas, o racionalismo mais impertinente,  a descrença em quase tudo, isso me protegia e me desconstruía a cada insônia. Entanto, acreditar no que está escrito é inerente a quem se dispõe maquinar tolices no papel. Algo de primordial existe na essência dos seres, o que não se revela e está lá, da maneira mais velada, mais impressentida. É essa essencialidade, a confundir-se com desejo e lembrança, que chamo destino. E se, por desleixo e egoísmo, desuni mãos que, por hipótese que fosse, nunca deveriam se desenlaçar? E se participei, mesmo que involuntariamente, do sofrimento de alguém que, por me ser desconhecido, terminei julgando ser merecedor de mágoa? E se interrompi histórias reais por razões imaginárias? E se a tinta que ora emprego fosse apenas para cobrir outros traçados, que, de tão marcados na página, fingem apagar-se, até que a folha seja posta contra a luz? 
            O homem morreu na praia. O mar não se abriu para recebê-lo. A conta de sua mesa ficou por ser paga. Amparado por estranhos, descalço, pálido. Imaginando-o no céu, seria ele a única nuvem no estirão azul. O vendedor de queijos não choraria por ele. A mulher magra de biquíni não o amaria. O garçom atento às mesas entupidas de comentários não o abraçaria. O guarda-vidas não o ressuscitaria. O boyzinho não abaixaria o volume do rádio. Estendido na areia, jazia um corpo franzino, leve por não mais trazer consigo as culpas que lhe foram impostas. Cumprira sua sina, trilhara sua via-crúcis. Nome não tinha. Como foi mesmo que ele morreu?

domingo, 3 de novembro de 2013

a resistência das coisas



                         a casa é longe agora,
                         entretecida de taquaras,
                         tabiques espessos, argamassa em taipa,
                         nem joão-de-barro, arquiteto nato,
                         sonharia erigir, que em sonho
                         não se ergue casa assim.

                         a casa de longe
                         parece morada de gente, de bicho,
                         som de passarinho, viola e latido,
                         tudo é de papel, sofá-papel, mesa-papel,
                         espelho-papel: o dia comum,
                         o açude verde, o jitó olho-d'água.

                         a casa de outrora
                         avermelhou-se na distância,
                         armou rede na parede quebradiça,
                         rangeu pelo íntimo da noite
                         um ranger de tanger o juízo,
                         de britar o tempo na moenda do engenho.

                         a casa de antigamente
                         meou-se de repente, acidulce, terra e pão,
                         piçarra molhada e batida, rosto de cimento queimado;
                         distanciei-me não por acaso ou morte,
                         que sou feito a taboca entrelaçada no barro:
                         o fado da casa é dizer adeus.