Amigos leitores que por aqui já passaram

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

apartamento 305

as mesmas horas...o ar-condicionado do carro incomoda, recém-instalado, uma novidade, o jornal no banco do passageiro, alguma notícia sem importância para os minutos, o relógio no painel, ontem as crianças no colégio encenavam uma peça, dom Quixote, os dois pequenos em papéis secundários, os moinhos, sorrio, não lembro de ter lido, mas os moinhos são conhecidos, sonhos, gigantes, são conhecidos, na próxima esquina à direita, uma algaroba, boa sombra, o número, 305, uma loja de animais, coelhos, nunca gostei de coelhos, o portão, o velho espremido numa cadeira de palha, dorme, o espasmo, sono profundo, sonho, o relojoeiro, a lente obtusa, disforme, o olho do relojoeiro é acusador, a escada, passo, lento, o azulejo esverdeado, algo na parede, a música, mas chegou o carnaval e ela não desfilou, as falhas lembram reticências, a criança de sempre chora, a televisão, tudo vem do mesmo lugar, ecos, riscos obscenos, convites para um encontro às escuras, telefones, primeiro andar, vultos, um casal, o olho mágico, alguém sabe, de tudo se sabe um pouco, aperto o passo, segundo andar, latidos, o último jogo de escadas, 305, sua a palma da mão, a campainha, de novo, outra vez, barulho de chaves, a porta semi-aberta, só um instante.

apt. 305

a puta breve, olhar sobrecarregado, ressaqueado, seca no falar, reticente, exigia o soldo, batia com a unha exagerada do indicador na penteadeira, deixa aqui o dinheiro, primeiro o dinheiro, do lado de um porta-retrato, dois jovens se beijando, foto de revista, e no canto uma três-por-quatro de criança, da idade de minha filha mais nova, sua filha?...não se espera resposta, pegou o dinheiro, ia banhar-se, Luana, o nome dado por ela na última vez, essas mulheres se ocultam por trás de nomes pomposos, Luana, não tem cara de Luana, tem cara de maria alguma coisa, francisca sei lá de quê, marcas arroxeadas no corpo, um cheiro de sol saía da toalha, não vai se banhar?, ou se banha ou nada feito, assim é mais real, o chuveiro era um cano, uma bica, a água vinha de repente, um chicote, fria, indecentemente fria, dói nos ossos, rio, não se espera reação, se incomoda que fume?, não se espera que incomode, não sou de fumar, me dá um, fumamos juntos, não sou de fumar, isso eu não ensino, riu, você é tão sério, só um pouco, tem cara de safado, longe de mim, tem que ser safado para estar aqui, sou não, tem cara, e você?, que tem?, é safada?, faço o que posso, rimos, a conversa segue por quatro ou cinco tragos, o cigarro acabou, dá vontade de fumar outro, vamos começar, como você se chama, Larissa, mudou o nome, não tem cara de Larissa, tenho cara de quê?, maria alguma coisa, como sabe?, não sei, quer um filme, uma música?, uma música, gosta dessa?, pode ser, não gostei, pode ser, gosta de quê?, deslizava as unhas pelo braço, qualquer coisa, por isso está aqui, por quê?, porque gosta de qualquer coisa, não é bem assim, você é casado, não, não diria nunca a ela, tem cara de casado, não era safado?, por isso mesmo, se fosse casada meu marido não ia buscar nada fora de casa, a garotinha da foto, minha filha, já gostei de um homem, não foi pra durar, não, as unhas nas minhas costas, e você?, que tem?, já se apaixonou?, íntimo demais para uma puta, todo mundo já se apaixonou, e hoje?, prefiro beber, rio, por quê?, amar é tão bom, beber é melhor, não acho, quer uma bebida?, quero, tem cerveja, serve, beber pra quê?, beber e amar são coisas muito parecidas, não acho, ambos entorpecem, ambos fazem dizer coisas que não seriam ditas em estado normal, ambos causam euforia e tristeza, ambos nos jogam num mundo irreal, se é assim por que prefere beber?, beber tem uma grande vantagem, qual?, no dia seguinte se está curado, você é engraçado, as unhas abrem a toalha, acaricia-me o sexo, você é inteligente, que faz da vida?, trabalho com informática, sabia que era estudado, como pode saber?, fala de um jeito esquisito, como?, fala de professor, não é pra tanto, uma vez um professor saiu comigo, divertido, era de me comparar com mulheres de livros, de falar poesia, de beber vinho, casado, quase me deixei levar, apaixonou-se?, quase, que faltou?, eu não quis, nisso não se manda, eu mando, não seja tão fria consigo mesma, é meu jeito de me defender, pra que se defender do que é bom?, não é bom depender de alguém, falo de amor, falar assim não combina com quem prefere beber, você é bem esperta, também sou estudada, é formada?, terminei o segundo grau, pretende continuar?, vou fazer faculdade de estilismo, bem sua cara.
Continua...

Táxi

Toda a claridade do meio-dia pendia sobre o pára-brisa. Corria a mão pela testa de quando em quando, muito por sinal de enfado do que para resolver a quentura. A senhora repuxava a roupa do filho, grudava-o no encosto, impacientava-se com o calor que fazia. Mal se distraía a mirar a janela, lá ia o fedelho escorregando pelo banco, como vasculhasse algo, como sentisse falta do safanão da mãe ao esticar-lhe a blusa. Foi assim três ou quatro vezes, enquanto no rádio davam a notícia de um tal empresário que havia cometido suicídio.
Palestrava com todo tipo de passageiro, mas não me sentia à vontade para comentar o que fosse com aquela dona. Poderia aproveitar a deixa, um homem que se mata é sempre razão para um bom prato de filosofia. Ademais, havia o calor, os buracos das ruas, a eleição próxima. Contudo, o olho trágico da mulher, rasgado na direção da janela, repelia qualquer intromissão. Só o filho ainda lhe arrancava algum movimento.
A reação veio num repentino sinal de pare, esticando a mão e apontando um homem que saía de uma revenda de carros. Segurou-me firme no ombro para que parasse o táxi sem que ele percebesse. A senhora esticou os olhos, quase com a face encostada na minha – sentia-lhe o hálito, estava ofegante, chegava a bufar. O menino aquietou-se, entretendo-se com as pessoas da calçada. Sugeri buzinar, descer do carro, o calor me roía os nervos, mas o não veio rápido.
- Vou só nesse bar comprar algo gelado, que o calor é grande! A senhora quer alguma coisa? O menino quer?
Outro não. Sequer indagou o filho, que a essa altura já tomava ares de sono. Desci do carro. Do dito bar, percebi a senhora ainda imóvel, mirando o outro. Só assim, de longe, pude realmente notar que não era uma mulher feia, via-se que se cuidava, tinha postura. Deu vontade de levar um refrigerante para ela, mas tive receio de que isso a denunciasse ao homem que esperava na calçada, encostado em um carro. O filho já dormira a essa altura. O homem fumava um cigarro, era lento nos gestos, não aparentava mal-estar, não se escondia, até cumprimentava um ou outro conhecido.
Aquilo só podia ser coisa de mulher enganada, dessas que desconfiam do menor sinal de mudança no comportamento do marido. Deveriam ser casados. Ali, enfurnada num táxi, no pico do meio-dia, espionando homem, com o filho a tira-colo, só podiam ser casados. Imagino o que não teria feito a boa peça da calçada. Traição. Não tem outra desculpa para uma situação dessas. Cheguei a ter pena daquela senhora, mas quem é que conhece as pessoas. Sabe-se lá se não é uma desvairada, que prefere um casamento medíocre, que luta até o esgotamento para manter o que já não se sustenta. Talvez queira apenas confirmar os próprios devaneios. Talvez o marido nunca a tenha traído, e é esse o dilema que aquela senhora experimentava: se foi traída, perde pela vergonha de ser trocada, mas ganha pela intuição certeira de mulher; se não, perde por se achar paranóica, mas ganha por ter um marido direito. De uma forma ou de outra, a sensação é terrível.

Continua...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Desisti de buscar veredas incompreensíveis, de rasgar bestialidades em prol de ideologias de shopping, de enfrentar, a cada dia, o leão da discórdia, de reinventar instantes, como se o que houvesse para viver fosse, necessariamente, uma continuidade. Vivemos de interrupções. Desisti de pensar, de procurar vampiros, de assustar criancinhas, de demolir esculturas clássicas, de espionar o quintal do vizinho. Não tenho mais vizinhos nem quintais. Desisti de apelidar os outros, de sorrir sorrisos vãos em sinal de cordialidade, de engolir palavrões por ofício, de vomitar poemas por segundas intenções. Desisti de arremessar insultos contra todos os que crêem em sentimentalidades, de refrescar a moleira nos olhares que, por serem íntimos, são impenetráveis. Desisti de perfurar poços artesianos, de mirar a calçada pelas persianas, de ter bichos de estimação, de refugar desejos, de ouvir, à meia-noite, alguma canção de Bob Marley. Desisti de correr atrás de solicitudes, de escalar colinas áridas, de gritar em grutas, de revelar, por torpeza, nos cálidos momentos de embriaguez, decadências e fragilidades, das que nos fazem perder as máscaras sob as máscaras sob as máscaras... Desisti de pagar por um amor cronometrado, de viver a expensas de leprosos e cegos, de aprender truques novos, de negar velhas experiências, de cerrar a alma para tudo que arrefece esperanças, de teorizar sobre o vácuo, de irromper de asfaltos, de amar sem ser amado. Desistir de ler as cartas amareladas, de ter de volta a tão bem-vinda paciência, de emocionar manequins, de ver lágrimas escorrendo no rosto de porcelana dos que se julgam inocentes, enquanto condenam a humanidade ao desterro. Desisti de ver televisão, de perder tempo racionalizando o incômodo crepúsculo do domingo, de ir à igreja, de ter fé em qualquer porta que se me abra. Desisti de procurar em muros e fachadas a sofrível carinha do tenha-um-bom-dia, de participar de folguedos e reisados, de desfechar escrúpulos nos tolos momentos desejosos, de dominar asperezas, de resgatar impossibilidades, de alienar os mais moços, de parir o futuro. Desisti de manter as aparências, de insistir em decências, de angariar simpatias, de ser o primogênito do mundo, de cobrar esterilidade, de balbuciar jingles publicitários, de escrever sem pensar no outro, de ser as coisas, de coisificar o ser. Desistir de felicitar por casamentos, de emprestar alianças, de encarar finais felizes, de mecanizar Drummond, de desartificializar Spielberg, de ironizar Bush, de esfriar Clarice. Desisti de responder mensagens apócrifas, de fotografar infelizes, de implorar abraços, de sussurrar paquidermes, de abrigar gostos antigos, de revisar linhas retas, de esclarecer fantasias, de aparecer de repente, de fomentar receios, de esconder botijas, de esfacelar artérias, de morrer. Desisti de retaliar frugalidades, de desrespeitar os dogmáticos, de invejar estrangeiros, de envelhecer por remorso, de remoer aflições, de culpar o espelho, de fumar por terapia, de ceder no primeiro blefe, de buscar o que não me busca. Desisti de tentar, de tramar seqüestros, de parafrasear lingüistas, de lamber macerações, de perscrutar juventudes, de perecer inocente.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Ao poeta de lavras e hinos

Ao mestre Linhares Filho

Tuas cãs em feérica lida
a captar a essência das coisas
e dos seres,
tuas tímidas mãos na moldura verde
a coser vocações no etéreo
olhar dos que, por arrebatamento,
seguem pelos meandros de tua
madura topografia.
Tua nau ainda em desbravo
singra a vida em pulsante faina
que a Poesia, tabernáculo do Ser,
orienta,
em teu peito emerge, lavra e hino,
o grato torrão lavrense, Pasárgada
de rio, alazão e saudade.
Em teu engelhado toque,
inventas um tempo, insumo memorial
de um mundo que recuperas
e colhes.
És presença em Pessoa,
companheiro do alquimista,
de Trás-os-Montes a Lavras
vais em um cavalgamento.
Quando em inexato espaço,
tornas-te ente e preso
no mar ou sótão, no halo ou cio,
no velejar onírico de teu presente
jamais ausente de teu passado.
Transfiguras o simplório, o intelecto
em festa, e em tua modernidade
guias-te pelo farol dos que antes de ti
cumpriram tantas míticas jornadas.
Tua invocação poética, teu talmude,
tua erudição inflexiva, tua apreensão de mestre –
tudo-nada amalgama Ser e Coisa.
Se reinventares, se doares, se ensinares,
apenas se, Linhares.


P.S.: Esse poema fiz em homenagem ao poeta Linhares Filho. Segundo o próprio, será publicado em seu próximo livro. Às vezes, gosto de brincar de ser poeta.

Crônica a bem da solidão


          Alguns se queixam da solidão, como se não houvesse cabimento ficar sozinho neste mundo, entanto todo ser humano deveria ter, vez ou outra, alguma necessidade de isolamento. É que não sabemos estar sozinhos, não temos experiência ou tarimba suficientes para escapar das angústias criadas não pela solidão, mas pela asfixia da ausência ou da sensação de abandono.
       Na verdade, desde que inevitavelmente somos despejados do tão seguro ventre materno, estamos impelidos a perceber que não vamos ficar sozinhos no mundo – isso sem mencionar os gêmeos, que se veem acompanhados desde a fecundação do óvulo. Primeiramente, o colo materno nos induz a acreditar que nunca teremos a oportunidade de olhar para o lado sem que haja uma mão estendida, sempre disposta a colaborar com nossas peraltices. Depois os irmãos, os amigos, os colegas – sim, temos que distinguir bem coleguismo e amizade – os namorados, os amores, os cônjuges, todos esses chegam com faixas e cartazes que nos lembram todos os dias que jamais ficaremos sozinhos nesta existência.
         Certa feita, numa tarde chuvosa, estava eu a contemplar a chuva, sem paranoia, sem culpa ou remorso, apenas em atitude de admiração, sentado mansamente na área de casa. Quando olhei para o lado, qual não foi minha surpresa ao ver meu filho, sentadinho, com olhar entre desconfiado e preocupado. Perguntei a ele o que fazia ali. A resposta não podia ser mais instigante.“Não queria te ver sozinho, papai!”. Lindo, tocante, sobretudo por ter vindo de uma criança de nove anos. Mas eu queria ficar sozinho. O que quero dizer é que solidão não é doença ou prenúncio de suicídio; ao contrário, pode ser apenas um momento de silêncio, tão raro em tempos de paredões de som ou carros com potência sonora capaz de encabular o mais estridente trovão.
          Qualquer forma de desfavorecer a solidão não passa de puro despeito, ou medo, ou ignorância mesmo. Os que gostam de apreciar a arte, por exemplo, sabem dar valor a um bom e produtivo momento consigo mesmo. Por mais que se vá ao teatro ou ao cinema com um grupo de amigos, se o objetivo é mesmo considerar o espetáculo ou curtir o filme, assim que as luzes apagam e tudo principia, a relação que se tem entre quem vê e o que é visto é de solidão pura, tanto que sequer lembramos que há alguém ao nosso lado enquanto o drama nos prende, nos encaminha a reflexões e a belezas. Será que existe coisa melhor do que ler um bom texto, tentar decifrá-lo, mergulhar nele, resgatá-lo e trazê-lo para nós – sempre entendi a leitura como uma espécie de desapropriação, como quem retoma a posse de um terreno de ocupação. Ler é bom, mas muita gente não gosta. O motivo é simples: ler exige solidão. Se não sabemos como agir quando estamos sozinhos, jamais seremos bons leitores.
              De tanto buscarmos companhia, esquecemos as maravilhas e vantagens da doce e nobre solidão, a mesma que acalentou centenas de poetas, acompanhou outros tantos profetas em peregrinações pelos desertos da alma, encantou pintores para fazer brotar do branco a mais íntima beleza...Sem a solidão, não haveria arte, nem estrelas – só miramos estrelas quando estamos sozinhos – nem soluções para os corações estraçalhados, nem autoconfiança, nem conversas diante do espelho. Se estamos sozinhos, alvíssaras, é tempo de repensar as coisas ou de coisificar o pensamento. Lancemos, pois, mil vivas à solidão. Sem ela, por certo, jamais teria escrito tal texto.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

As outras do recomeço

Jacinta preparou tudo com muito zelo. Era aniversário do marido e nada podia dar errado. Muito mais do que uma festa, uma reaproximação. O casamento já não fluía como antes. As discussões sucessivas, pelos motivos mais banais, afastaram os dois, as coisas poderiam mudar.
Contratara um cantor especializado em aniversários, com amplo repertório de músicas das décadas de cinqüenta e sessenta, as preferidas do marido. Pensara, com cautelosa antecedência, em todos que poderiam comparecer ao evento. Amigos íntimos do casal ou tão-somente conhecidos, o importante era que os jardins do bufê abarrotassem de gente. Também estavam nos planos uma boa quantidade de bebidas, de todas as marcas e para todos os paladares, da cerveja ao uísque.
Tudo deveria ser uma grande surpresa, mas o marido, sempre atento, apertou um dos empregados da casa até extrair a revelação sobre a festa. Agiu com naturalidade depois disso. Saiu como de costume, despedindo-se da mulher com a formalidade de sempre. No caminho para o trabalho, veio-lhe a idéia de parar numa barbearia, polir o rosto, mas achou por bem cumprir a rotina, deixando a barba para o sábado. No final do expediente, recebeu o telefonema da mulher, que o aguardava num endereço estranho. O carro havia enguiçado, precisava de auxílio. O marido atentou para a boa mentirosa com quem se casara. Sorriu levemente, encerrou o dia e tocou para o tal lugar.
Encontrou a mulher enfeitada demais para quem estava no prego. Fez que nada sabia, perguntou pelo carro. Puxando-o pelo braço, sorridente como há muito não se via, a esposa levou-o até uma esquina próxima, onde uma faixa de feliz aniversário encimava a entrada de um luxuoso bufê. Os convidados, para mais de cem, levantaram das mesas e aplaudiram o aniversariante. Seguiu-se uma interminável fila de cumprimentos, que só não se tornavam mais enfadonhos porque o marido aproveitava a ocasião para tomar umas dosezinhas de uísque. Passadas as formalidades, Jacinta aproveitou o microfone para erguer um brinde ao marido, com sonoros desejos de saúde e felicidade vindos de cada mesa. Propuseram uma dança, que o marido recusou, alegando não ter bebido o suficiente para tanto.
A festa prosseguiu. Os garçons não paravam de servir bebida. Das mesas, estouravam gargalhadas, seguidas de demorados apertos de mão. Jacinta sentou-se para descansar, satisfeita por ver o marido se divertindo, passando de mesa em mesa, conversando, rindo, bebendo.
A noite corria leve, sem maiores preocupações. O marido, animado pela bebida, arriscou uma música ao lado do cantor. Formou-se um coral em torno dele, que àquela altura era dono da festa. Abraçou repetidas vezes a mulher, pediu-lhe perdão, chorou e ameaçou ajoelhar-se diante de todos. Jacinta apenas observava e ria, e de alguma forma conseguia ver sinceridade nos gestos do marido.
Terminada a festa, depois de o último convidado se despedir, ela levou o marido para casa. Estava cansada, mas tudo correra como planejado. Conseguira mostrar a ele o quanto se importava com o bem-estar de seu casamento.
Em casa, Jacinta jogou o marido na cama e foi banhar-se. Se ele estivesse em condições, estariam os dois no chuveiro. Ainda assim, engoliu o desejo e sentiu pela derradeira vez que havia feito a coisa certa.
O marido acordou por volta das duas e meia da tarde. Arrastou-se até a cozinha, onde a mulher o cumprimentou com um melodioso boa-tarde. Continuou até a garrafa de café, esfregando a mão no rosto com vontade. Sem dizer palavra, rumou à sala, tateou os livros que enfeitavam a mesa de centro. Deitou-se no sofá e de lá não mais saiu. A mulher percebeu a inércia do marido, deitado ali, sem esboçar gesto. Tocou-lhe a testa, tomou-lhe a veia do pescoço e constatou: estava morto. Jacinta correu como louca, puxando os cabelos, gritando por socorro. A sala rapidamente encheu de curiosos, entre vizinhos e empregados.
Jacinta não se conformava. O marido era jovem e nunca despertara a menor suspeita de qualquer problema de saúde. O laudo cadavérico sugeria diabetes. Não fazia o menor sentido que um homem que gozava de plena saúde, sem mais nem menos, caísse morto no sofá da sala, como uma vela que se apaga.
Seis meses se passaram. Jacinta continuava inconformada, mas já se ocupava de uma ou outra coisa que a fizesse esquecer. Era uma mulher jovem ainda, poderia refazer-se, mas faltava coragem ou vontade. Vivia agora sozinha. Quase não tinha amigos. Se encontrava algum conhecido, trocava meia palavra, alegando compromissos inadiáveis que nunca existiram. Convivia com a culpa de ter sido a causadora da morte do marido, por conta da tal festa.
Uma vez por semana, freqüentava a igreja. Depois da missa, ficava por mais uns bons minutos penitenciando-se, enquanto fitava o Cristo crucificado no altar. Foi numa dessas demoras que conheceu Salomé.
Aos poucos, as duas se aproximaram. Salomé também era viúva, mas já não trazia um olhar trágico. Passaram a freqüentar a casa uma da outra. Em pouco tempo, já eram confidentes. Almoçavam juntas, faziam compras, demoravam-se em conversas ao telefone.
Numa das idas à igreja, Salomé sugeriu um happy hour em um bar próximo. O luto de Jacinta a incomodava, e naquele dia saiu decidida a mudar essa situação. Sentaram e pediram uma cerveja. Pelas tantas, a conversa corria animada, contavam histórias picantes dos maridos, reclamavam das traições. A bebida vinha como uma anestesia, e Jacinta, quando questionada se queria ir embora, apenas sorria, enquanto fazia gestos para que o garçom trouxesse outra cerveja.
Era perto de meia-noite quando um garçom aproximou-se com um bilhete. Dois rapazes em uma mesa próxima perguntavam se as donzelas não gostariam de companhia. Jacinta riu, piscou para a amiga e chamou um deles. Logo o outro rapaz também se chegou.
O mais jovem era militar, via-se pelo porte físico e pelo corte de cabelo. O outro era comerciário, prestes a ser promovido à gerência da loja. Eram de boa conversa, educados e bem-humorados. Jacinta chorava de rir das piadas. Os garçons já recolhiam as cadeiras, quando um dos rapazes sugeriu continuar a conversa em outro lugar. As duas se olharam com cumplicidade e, sem muito alarde, aceitaram. Foram ao apartamento de um deles. Enquanto Salomé conversava na sala com o comerciário, Jacinta e o militar ficaram na varanda. Aos poucos, foram se tocando e, por fim, o beijo. Salomé, a essa altura, já tinha ido para o quarto com o outro. O militar levou Jacinta para o banheiro e ali, sob o chuveiro, se amaram.
Bem cedo, ela deixou o apartamento. Sequer se lembrou de Salomé, que dormia tranqüila ao lado do comerciário. O militar ainda tentou perguntar as horas, mas tornou a roncar, caído no chão da sala.
Jacinta apanhou um táxi. Em casa, tomou um longo banho. Pensou no marido. Passando pela sala, fitou por uns minutos o sofá. Ainda que não fosse o mesmo em que o marido havia morrido, era impossível não lembrar. Ouviu o toque do celular. Era Salomé. Decidiu não atender. Arrastou-se até a cozinha e tomou um café, fitando o corredor que dava para a sala.
São tantas as experiências com as quais aprendemos e em cuja sombra nos abrigamos, sem o dolo do julgamento, sem a impraticável leveza dos que colhem, na sombra da caverna, alguma forma agridoce que amenize as dores do mundo. Um dia, amei, da forma mais tola e descabida, sem alicerce, sem o recrudescimento das horas. Não se há, pois, de condenar tal criatura, tão afastada do ninho, rasgando a garganta à procura de uma resposta.
Foi como um quebranto, um ritual de sacrifício. Surgiu casual, puro, irracional, como tudo que, por providência, chega e arrebata. Éramos uma intercessão, criaturas nutridas de uma cumplicidade assustadora, que, na mais serena das horas, criam adivinhar pensamentos, reconhecer necessidades, interpretar sorrisos. Muito mais que isso, fizemo-nos amigos imprescindíveis, desses que habitam o centro do espelho, e o reflexo estava nela, e o que me abrigava irrompia da lembrança de sua fragilidade. Da perplexidade, nasceu o verbo – conquanto houvesse a palavra, criou-se com ela a semiótica, o movediço do texto. A capacidade de reconhecer-lhe os gestos impressionava. E como era frágil, quase etíope, quando, desacreditada de si própria, procurava em mim a propulsão necessária. Encantava-me seu misto de porcelana e armadura, e vi suas asas crescerem, seu primeiro vôo, seu sorriso cálido ao beijar o sol. Percebia tudo aquilo com ares paternos, e um orgulho constante tomava-me a face, arremessava-me para um futuro pré-datado, em que aparecíamos juntos, no porta-retrato da sala de visitas, dividindo as agruras e os prazeres, até a morte chegar e descobrir que seria impossível separar-nos. E tudo se perpetuaria pelo poder de uma única fala.
Contudo, a palavra não veio. As crenças deram lugar a uma cruel inexatidão. As horas já não mais reiteravam seu nome, os livros retornaram inutilmente à estante, o ineditismo de suas formas tornou-se impreciso, pequeno. Caí em desespero por puro despreparo, pela crença infame de que tão profundo amor não haveria de ser temporão. E o era. Agora, ao reencontrá-la, não a percebo, e o que me diz é o que qualquer um diria, o que me revela é o óbvio das coisas, o que me entrega é áspero e efêmero. Talvez eu tenha cometido algum erro imperdoável, talvez, depois do vôo alçado, ela tenha descoberto que não há abismos no horizonte. O fato é que, outrora – muito outrora, quando falava sobre impossibilidades, pensava ser impossível alguém sentir o que, naquele momento, nascia em mim. Hoje, sei que não há retorno.