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domingo, 27 de maio de 2012

Sobre distâncias e identidades


             Meu tempo se foi, mas preciso antes dizer que não preciso caminhar ao lado do tempo, que não fiz promessas, portanto os remorsos não me perseguem, nem os bons, nem os maus, pois há remorsos bons que nos atiçam o juízo com sua cantiga incessante de grilo: das mil coragens que te iludiram, restou um medo que te  salvara dos outros e de ti, da tua vontade pueril de saltar com o carro em movimento etc, etc, reporto-me ao remorso que passeia com seus cascos secos o peito dos que, como eu, já envelheceram para os riscos que as trilhas oferecem, é que não sou de acampar, acampar é para os que não tem marcas de expressão, também não as tenho, mas as minhas marcas são profundíssimas, são de impressão, escondem-se na ponta dos dedos e deixam marcas por onde quer que se passe, e não tenho estômago para a frialdade e a escuridão de um acampamento, sou de confortos, confunda-se com conformismo, mas não me arriscaria, há quem o faça, invejo-os por alguns segundos, remorso mau, mas passa quando vejo o que arriscam, já que lançam sobre a mesa cartas que não existem, blefam, mudam os próprios nomes, as identidades se alteram em função de uma partida, uma simples e vil partida, entre milhares que se seguirão, valeria a pena?, minha alma é pequena demais,  não sou moderno, e é seguro observar daqui, mesmo sabendo que escrever sobre isso é uma forma de turvar a visão, se não escrevo, esqueço, é o que me deram dos céus, mas, se escrevo, guardo tão bem, que chego a perder, de tão escuro o vão, só assim é seguro, guardar demais e também perder, às vezes é a melhor forma de cuidar, perder de vista, e, mesmo que se descubra o paradeiro do que jazia esquecido, não se terá a mesma forma, o mesmo gosto, o mesmo rosto, porque o tempo não nos muda, as distâncias sim, essas são crudelíssimas, desmentem as crenças, as mais intensas, o tempo, se não ampara, mantém a vista cerrada, e essa cegueira é necessária para fixar as imagens na retina, da forma como não são, mas como gostaríamos que fossem, que importa uma cor sem a imagem que trazemos dela? o álbum de fotografias não passa de guarda-papéis sem valor, senão quando embarcamos dali para as lembranças que sejam despertadas, é daqui, diante de letras emaranhas e sem nexo, que me escondo, mesmo havendo essa lápide, o texto, com um epitáfio torpe,  alguma filosofia descartável que revele qualquer coisa que não somos, ou somos, mas depois de morto, que importa?, no texto, oculto-me, porque o que diz quem sou está em minhas mãos, a melhor forma de esconder e fingir revelar. 

Sara


Sara, pedra rara,
nunca para,
sempre cura,
sempre espera
no alpendre
da promessa,
no altar
da solidão.

Sara, sem ter cara,
sem ter fala,
mal se entrega
à flor que rega,
que vem outro
e outro e outro,
qual seu nome?
nome não.

Sara, que dispara
os batimentos,
os ardores,
os tormentos,
ama a cama,
o mato, a relva,
a poltrona
e o chão.

Sara, que enamora
o estrangeiro,
o menino
mais arteiro,
o vilão, o timoneiro,
o cunhado do ferreiro,
a cidade
e o sertão.

Sara, já é tarde,
vai pra casa,
amanhã tem nova lida,
outro dia, outro peito,
a flor do eito
se findara
em gozo, em fel,
em Sara.