Amigos leitores que por aqui já passaram

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Os finais jamais se apagam, porque não existe uma última linha. Sempre haverá algo por ser escrito, no tempo certo, pelas mãos certas.

PÉLAGO

meus dedos são pássaros indecisos

que se assustam a cada movimento,

que se enervam em gestos caridosos,

que se fartam com tão pouco alimento.



meus olhos são redes de arrasto ao mar,

que assim chega o que me comprime a vista,

água brotante à cata de espraiar,

grota de margem oculta, imprevista.



meus pés guiam-se por outras passadas:

silenciosos e dóceis entregam-se

à estranha alvura dos novos luares.



meu tempo, no teu, encontra morada;

por tuas quimeras as preces elevam-se;

em teu corpo edifico meus pilares.

terça-feira, 20 de julho de 2010

SONOLÊNCIA

Se, com o tempo, as palavras secassem,

mais por precaução que por amargura?

Se as vozes unas perdessem a alvura

e os corpos nunca mais se procurassem?



Se as imagens ressequidas perdessem,

sem aflição, o torpor da brandura?

Se a indolência me trouxesse a cura

e os ponteiros, em mim, alvorescessem?



Como haver encontro sem abandono?

Como, se em cada lavra há um retorno?

No tropel das lembranças, a resposta:



Entre alguns porta-retratos e o sono,

entre as horas cerradas e um contorno,

mais uma vez deixo a saudade exposta.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Não chega de saudade

          Vez em quando, perguntam-me por que sou tão cruel ao arremessar no limbo das crônicas o avesso do que esperam de um arlequim de escritor. Um questionamento retórico, por certo. Uma forma delicada, quase tíbia, de dizer que minhas palavras são torturantes. Sinceramente, não me incomodo com isso. O que subjaz ao texto não me é, de forma alguma, agônico. Admiro o poder destruidor da ironia e dele me sirvo quando há necessidade. Agora, não me venham corromper com a pecha de que não sei expressar outra coisa, senão rancores e insensibilidades. Apenas prefiro a ferida exposta, enquanto a maioria sai em desespero à cata de band-aids. Permitam-me, contudo, forjar um instante de contemplação ao que fere mais fundo e mais fecundo em qualquer ser humano: a saudade.
          Sentir falta de outrem, de coisas vividas ou desperdiçadas, de tempos repartidos ou perdidos, isso é inerente à condição humana. Somos criaturas eivadas de ausências. Cada átimo trilhado é uma certeza de que não retornaremos a ele, não da mesma forma como se nos apresentou da primeira vez que com ele deparamos. Explico: A rua por que passamos todos os dias não é a mesma, pela simples razão de que nós não somos os mesmos todos os dias. As coisas, as pessoas, o tempo, tudo é passível de mudança não por serem mutáveis na essência, mas sim porque tendemos a mudar o modo como enxergamos cada passo trilhado e retrilhado em nossas vidas. Mas o que isso tudo tem a ver com saudade?
          Ao contrário do que os arautos da pieguice apregoam, a saudade não é um estertor de dores e dissabores. Se a condição humana remete-nos, a todo instante, ao que não é mais tangível, palpável ou vivenciável, sentir saudade é presenciar a ausência. Temos as mãos calejadas de toda espécie de perdas. Sinto imensa falta da infância, por exemplo, quando a vida nos surpreendia sempre que nos atrevíamos a dar um passo em direção à maturidade. Recordo as empreitadas homéricas em busca das arraias que, por birra, teimavam em escanchar-se serenas no coqueiro do quintal. As lúdicas aventuras amorosas, sem compromisso, na porta do colégio. As saias rodadas das menininhas em botão. Os carrinhos de rolimã. Os ponteiros parando, admirados de tanta traquinagem.
         Arrisco dizer que, embora possível apenas na linguagem dos bêbados e poetas, também tenho saudade do que poderia ter sido. Se tivéssemos, naquela noite de lua e textos, aprendido a ler o que irrompia dos olhos. Se soubéssemos que cada mão espalmada na verdade representava o mais puro e indelével gesto de amor. Se entendêssemos que cada encontro marcado pelo acaso da procura poderia ser o último ofego. Se crêssemos que os sorrisos únicos, as palavras soltas, as línguas sedentas, tudo gestava um sentimento que, de tão incompreensível, tornar-se-ia a redenção de todas as farpas que nos foram arremessadas pela vida. Saudade, para mim, é um retrato desbotado do que se viveria intensamente, se não fôssemos covardes ao ponto de desacreditar que, nas carícias etéreas que compartilhávamos, havia mais do que corpos em sofreguidão. Éramos, pois, a prova inconteste de tudo que é universal e movente: remanescentes da mesma jornada, senhores das tenras palavras de aflição, detentores dos silêncios mais eloqüentes.
          Saudade é tudo que nos move ao passado, sem mágoa ou crises de histeria. É um baobá ancestral no qual gravamos nossos nomes e o de outros que, sem exigir nada em troca, ampararam-nos nas horas de desconforto. Assim, façamos da ausência um remanso, que muitos ainda nos farão o favor de chegar e partir. Sugiro que tranquemos nossas almas para evitar transtornos. Às vezes, é preciso agir assim para assegurar que nossas ausências jamais se ausentem de nós. Sem elas, sequer nos entenderíamos humanos. Sem elas, perderíamos a esperança de, um dia, voltarmos àquele velho baobá. Sem elas, não teríamos o cuidado de, ao fechar os olhos, verificar se tudo que perdemos ainda permanece onde deixamos.





sexta-feira, 9 de julho de 2010

HONRANDO DÍVIDAS

         Sem dívidas, não progredimos. Com essa máxima em punho, os capitalistas de plantão seguem firmes desde os primórdios das relações comerciais. Acontece que fui educado de uma forma diferente. Sou um desafeto das dívidas. Prefiro exercitar a tão espinhosa dádiva da paciência e esperar o momento certo de dar o bote. Trocando em miúdos, sou dos que optam por pagamento a vista, em qualquer situação. Entanto, a vida nos compele a dever, mesmo sem a obrigatoriedade de pagar. Lembrando as boas e indolentes aulas de Português, dever é verbo bitransitivo, ou seja, deve-se algo a alguém. Maldita sintaxe. Bastaria dever algo e pronto. O pior é dever a alguém. O que pretendo, pois, com tais divagações é tentar, pifiamente, honrar algumas dívidas.
          Aos meus diletos alunos, peço-lhes compreensão pelas vezes em que, mais por cansaço que por condescendência, suspirei em frente ao quadro branco e, num átimo de segundo, roguei aos céus a oportunidade de trilhar por outras veredas, menos serpenteantes. Ademais, não me senti culpado por pensar dessa forma. Outra coisa é que, por vezes, lancei ironias sobre quem não merecia. Disparei contra todos os contrastes, arrebentando sem propósito as coisas que me parecessem opacas demais, ao ponto de não refletir minha própria imagem. Por alguns momentos, usei a sala de aula por puro protesto, quase descaso, embora fizesse questão de que isso não se aclarasse. Não hei de jurar nunca mais agir assim, mas, pelos acintes desferidos, suplico perdão.
          Aos amigos presentes e ausentes, admiro-lhes a tolerância. Saibam que, se um dia a dor urgir e os tais fardos leves revelarem-se como realmente são, não poderão contar comigo. Entanto, não me tenham por mau caráter. É que amparar amizades exige compromisso, dedicação, desprendimento, ou seja, tudo aquilo que a vida fez questão de furtar, enquanto me pegava distraído pelos cantos. Confesso que sou daqueles que exigem demais de si e dos outros. Espero sempre que os outros me procurem, afinal são ou não são amigos? Se não ligo, é porque antes alguém pensou em me ligar e não o fez. Claro que, se todos pensassem dessa forma, não haveria motivos para tantas operadoras de telefonia, nem para grandes amizades. Ainda assim, cônscio das blasfêmias lançadas contra certas tolices sentimentais, sei que a amizade tolhe-nos preconceitos, permite-nos lembrar que, se estamos sozinhos no universo, existem constelações de indivíduos a gritar o contrário, empurrando-nos para fora da cama e fazendo-nos notar os benefícios quase psiquiátricos de uma boa conversa, uma cerveja gelada, um abraço verossímil. Amigos, pois, uni-vos em torno do nobre exercício da tolerância.
          Às impossíveis realizações, por desistência ou adiamento, não há o que dizer. Certos momentos já trazem em si todas as justificativas necessárias. Pensemos, portanto, que nunca existiu, em qualquer que seja a frente de batalha, um tropel tão fervoroso, uma trilha tão minuciosamente expugnada. Se não ofereci o fino trato, necessário às sentimentais empreitadas, abri-me por completo, deixei ser o que realmente sou, coisa rara em tempos de ocultamentos eletrônicos. Da maneira mais pueril, com olhar macerado de desejo, os toques em botão abrindo-se no alvorecer, os flagrantes arrepios no avistar, ao longe, a silhueta atemporal da figura amada, foi assim que me realizei nas impossibilidades. Destarte, apelo para a pena máxima, pois jamais mereci dedicação e decência. Mesmo assim, se do estreito cardíaco escorrer alguma misericórdia, favor não esquecer que, a despeito dos apelos, os amores partiram, mas deixaram a luz acesa. Em nome das boas intenções ecológicas, um dia voltarão para apagar. Nesse instante, em meio à escuridão, direi mentiras que, de tão necessárias, farão as verdades aqui derramadas parecerem sombras no jardim.

domingo, 4 de julho de 2010

EXTEMPORÂNEA

Às quatro, as horas pararam

no engalhamento das mãos –

arcanjos que me guiaram

pelo entrecruzar dos vãos.


Às quatro, o peso das coisas,

súbito, pôs-se a galope:

sua simples presença açoita

a mansidão do abandono.


Às quatro, fez-se vivente

no imaginário (uni)verso

eivada das indecências

derramadas sobre o tempo.


Às quatro, cravou a língua

nas ancas das solidão,

escarnando cada fímbria

dos ponteiros e dos nãos.


Às quatro, lúcida ou lúcifer,

enlanguesceu-se espantada,

que as ternas horas das núpcias

por tão pouco se findavam.


Às quatro, nas longas horas,

se não reparei seu grito

pelas noites belicosas,

é que fingi, por instinto.


Às quatro, restou-me a lápide

branda do porta-retrato –

imperfeição que não passa

pelo tempo, sempre às quatro.