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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Sobre todas as despedidas



           Escrever não é um ofício leve. Viver é bem mais difícil, por certo, mas espelhar no papel tudo que nos denuncia é quase um sacrifício, na intenção mais divina da palavra. Agora, entre todos os temas que podem vingar de uma folha em branco e de uma cabeça em ebulição, o que mais confina a sanidade é tratar de despedidas ou desencontros. Tantos temas mais amenos, como amores inalcançáveis, a política de distribuição de renda no Camboja, as viagens intercontinentais, ou mesmo intergaláticas, dos magnatas da miséria humana...mas atribuíram-me a incumbência de uma sonora e desconcertante despedida. Se não se pode remediar, vamos então aos costumes, não sem antes, como professor de produção textual a legislar em causa própria, dividir essa liturgia em três pontos: a juventude, o tempo e a saudade.
             Envelhecer não é apenas, como li certa feita, uma mera produção desenfreada de radicais livres. Isso faria maturidade confundir-se facilmente com decomposição, e, francamente, prefiro não me sentir assim, uma matéria em constante deterioração, ao olhar-me no espelho. Ficar velho é bem mais que um punhado de células que se estragam. Chega a ser, na verdade, um esquecimento, um sobressalto, uma espécie de susto: quando menos esperamos, cá estamos nós, velhos ranzinzas e obsoletos, pigarreando moralismos enviesados, agitando-se na confortável cadeira de balaços do comodismo. Sendo assim, melhor aproveitar enquanto a vida ainda nos soa colorida e enigmática; enquanto podemos escolher nossas crenças e rabiscar com mãos de alfabetizando o nosso futuro. Qual não é o espanto quando descobrimos, em um desses acasos da vida, que nossos pais já foram jovens, e, na maioria das vezes, parecidíssimos conosco, não apenas fisicamente, mas, sobretudo, comportamentalmente. Se a canção diz que ainda somos os mesmos e  vivemos como nossos pais, não haveria de causar surpresa que os que vieram antes de nós tenham também cometido suas gafes, seus deslizes mais escabrosos. Imagine o que um pai ou uma mãe fizeram na sua juventude e hoje, por razões legítimas e justas, fazem questão de esconder ou negar. Um dia, jovens, sereis do mesmo jeito, cumprireis os mesmos rituais e agireis com a mesma dissimulação necessária. É natural que seja assim. Portanto, envelheçam o mais tardiamente possível e não façam questão de prolongar a juventude forçadamente. Ser jovem é gostoso porque dura pouco tempo, e essa brevidade deve ser aproveitada nas suas mais variadas possibilidades. Não há nada mais ridículo que um velho dando de rapazola; não há nada mais triste e desesperador que um jovem descrente da liberdade.
                Segundo a teoria da relatividade, presente, passado e futuro são apenas uma ilusão teimosamente persistente. Inclino-me a concordar, mas não existe mal algum em cultivar ilusões. Que coisa é o tempo! Esse cavalo intempestivo, essa centelha que se projeta ao longe, esse horizonte sem fim que nos faz caminhar constantemente, mesmo contra a nossa vontade. Somos privilegiados se lembrarmos com exatidão o que ocorreu pela manhã ou na noite anterior, ainda que tenha sido emocionante ao extremo ou romântica em excesso. O que dirá então de recordarmos um ano inteiro, uma vida inteira. Ainda trago fortes memórias dos meus tempos de escola, mas são fugidias, amarelecidas como um retrato em feitio oval na parede da sala de estar na cada dos avós; porém, com algum esforço, consigo retornar aos anos mais doces e intactos de minha vida, quando as tias do primário ninavam-me a imaginação com suas presenças angelicais e suas histórias mirabolantes de duendes e fadas; os amigos que fiz, ou não seriam eles que me fizeram ser quem sou hoje? Esses imaginários seres de luz materializados em pessoas como eu, sempre dispostos a gargalhar, a brigar, a choramingar, a filar merenda no recreio, a acariciar as almas, enfim, pessoas merecedoras dessa dádiva chamada amizade. Recentemente, em um desses passeios do mundo, reencontrei um antigo colega de escola, da época do primário. Demoramos um pouco investigando um ao outro, até que veio a certeza e o necessário abraço. Foi uma conversa rápida, pois já não somos mais jovens - velhos nunca têm tempo para nada - mas o teor íntimo da conversa fazia parecer que nunca saímos dos bancos escolares, mesmo depois de quase vinte anos de espera. Assim, pude perceber o quanto o tempo é implacável, mas inútil perto do que elegemos como verdadeiro em nossas vidas. Talvez jamais volte a ver esse amigo, cujo nome agora me foge da memória (no dia do reencontro, não tive coragem de perguntar), mas tenho certeza de que há espaço para mim em suas lembranças mais singelas.
                  Assim como só é possível medir a dor no irromper da ferida, ninguém é capaz de entender a saudade sem antes experimentar a perda. Agora, sem dúvida alguma, o que mais incomoda são duas coisas: o que se fez pela metade e o que se deixou de fazer. E a conjunção do remorso é o se! Se eu lhe tivesse apertado a mão, em vez de virar as costas; se eu duvidasse menos dos sentimentos das pessoas; se eu dedicasse mais tempo à leitura e à boa música; se eu falasse menos e ouvisse mais; se eu acordasse cedo; se eu não entrasse na rua errada; se eu não chorasse no primeiro tremor de terra; se eu acreditasse mais em mim mesmo. Boa parte da saudade se resume a um bom bocado de "se". Penso que somos todos criaturas sentimentais por excelência, por isso temos que vivenciar a desventura de perder para poder não apenas redimensionar esforços para novas experiências, mas também para compreender o quanto de nós se extravia ao nos despedirmos de algo ou alguém. Porém, para amenizar qualquer efeito nocivo da saudade, faça agora mesmo o que já deveria ter feito há muito tempo. Abrace, beije, ame, perdoe, cobre...exponha-se para que não haja dívidas cobradas no purgatório dos arrependimentos. Façamos, pois, uma reflexão de tudo que nos faz falta. Quanto mais houver motivos para lembrar, mais experiências intensas e marcantes teremos vivenciado, e isso constrói nossa humanidade e determina nossos passos no futuro. Das certezas que a vida nos impõe, a saudade é a mais poética. Às vezes, sinto falta de ter saudade de grandes momentos de minha existência; no entanto, toda vez que aperto com força os olhos e entrego-me às memórias mais íntimas, são os pequenos e insignificantes casos que me vêm à mente. A presença da ausência, como diria o poeta, fica mais amena quando temos a convicção de que não fizemos tudo, mas fizemos o necessário para não esquecer e não sermos esquecidos. 

Um comentário:

  1. Texto que evolui com o sabor de uma prosa embebida na melhor aguardente, mas que ao contrário não embriaga, acorda nossos sentidos e nos expõe às verdades que nos rodeiam.
    adriano souto

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