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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Entardecer

          Todas as tardes o velho Afonso se arrastava até a calçada. Na maioria das vezes contava com a ajuda de um dos netos para abancar por ali a cadeira de ferro, toda trabalhadinha com desenhos e curvas. Se não houvesse neto disponível, dava-se um jeito. O importante era que o seu vespertino ritual fosse rigorosamente cumprido. Costumava apoiar-se numa bengala de alumínio, cabo prateado dobrável, de quatro pontas, as mãos sobrepostas quase em vigília, os olhos fixos nos moventes. Todo aquele movimento distraía, mesmo sem muita novidade. Sempre os mesmos passantes, as mesmas pernas de final de expediente.
          Sem pressa, a tarde deixava de flamejar. No sossego das horas, os curumins apareciam, com suas vozes estridentes, num tropel desenfreado de brincadeiras e palavreados. O velho aprumava-se na cadeira, como num incômodo intestinal. Inquietava-se com a movimentação dos meninos. Batia repetidas vezes a bengala na calçada, apreensivo, renitente. A velhice era o pior de todos os cânceres. Os dedos longos lembravam cera derretida lançada sobre uma superfície lisa, formando linhas sem conexão. Cada articulação sua crepitava ou rangia ao menor movimento. Nas mãos formavam-se nódulos hirtos, nauseantes. Mas a carência de força física e a falta de firmeza nas pernas não afetavam tanto quanto a enturvação da memória. Ao perscrutar os vãos das antigas lembranças, comprimia a vista, como se, de longe, quisesse reconhecer algum ponto obscuro. Velho Afonso, dono de terras, engenhos, moendas, casa de purgar. As criadinhas, quando lhe vinham aplacar o fogo, ofereciam seios recém-formados, lábios dispostos, pernas trançadas.
          Lidiane chegava depois de um cheiro gostoso de leite de rosas. No findar de todas as preces do cair da tarde, ela costumava aparecer, rija, de ancas adensadas, volumes desafiadores. Passava o dia na contrição da lida doméstica da casa vizinha, posta em um casulo de temperos e lustrados. Mas, por rebeldia, como se apunhalasse qualquer um que por um instante duvidasse de sua laboriosa beleza, punha-se à calçada, assertiva, senhora de suas carnes. Os cabelos crespos, espiralados desde a raiz, volumosos como suas coxas de égua xucra, vinham ainda molhados, respingando a cada movimento de cabeça, as gotas escorrendo pelo colo, alojando-se providencialmente entre os seios, os poros aos poucos se dilatando para conservar o calor da pele. Lidiane era inteiriça de ponta a ponta, uma afronta à opacidade do velho Afonso, que apenas assistia àquele espetáculo de formas e odores com a impassibilidade de quem se dá ao patíbulo, exaurido de qualquer memória cutânea que lhe despertasse instintos. Esfregava com a ponta do dedo indicador a haste maciça da bengala, as entrecoxas de Lidiane, alternava-lhe carícias no púbis, deslizava delicadamente o dedo umedecido em volta da vulva, deixava-lhe tomar o controle, como nos tempos do senhor de terras e criadas.
         Lidiane aproximou-se, os cabelos encrespados atiçavam a face do velho.
         - Tudo bem, Seu Afonso?
        Aquele cheiro de mulher nova enervava-lhe os movimentos. Sentia mais uma vez as bênçãos da natureza humana, um jorro que lhe trazia uma esperança de enfermo diante da possibilidade da cura. Estar perto de Lidiane, roçar-lhe a pele, ainda que por ínfimos instantes, tudo remetia a uma época de glórias juvenis. Sobrevinham-lhe espasmos há muito esquecidos, como se concluísse um ciclo, uma resposta aos apelos daquela menina que, por milagre, fazia contrair todos os músculos ressentidos do velho. A sensação de euforia tomava conta de seus gestos. Traduzia-se nele a capacidade de amar uma última vez. O líquido morno escorria por suas pernas, encharcava a calça de brim, derramava-se pela calçada.
         - Tudo bem, Seu Afonso?!
         Lidiane gritou para que os de casa acudissem o velho.
         - Meu Deus, o Vô agora deu pra urinar nas calças...
        Apoiado no neto, o velho percebeu o olhar piedoso de Lidiane e esboçou uma contração na face que por muito pouco pareceria um sorriso.



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