Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 19 de setembro de 2010

         
          Em certo momento, cercado de vultos e estátuas de cera, admirei o cara de cavanhaque que, indolentemente, tirou a menina de óculos para dançar. Como se num terceiro dia da criação, o que fosse asfalto ou concreto rodopiava em desespero por acompanhar o casal em bailado. Fiquei atônito com tamanha coragem. Ninguém mais dançava até então. Depois deles, a estaticidade das coisas e da vida já não fazia mais sentido. Odiei-os, por certo. Odiei-os por não ser como eles, odiei-os por desacreditar dos ritmos, odiei-os por ser filho único, odiei-os por não ter bebido o suficiente, odiei-os por não haver mais cigarros no maço.
          Quando olhei para os lados, não mais encontrei a inércia com que tão bem me identificava. Apenas cadeiras desarmadas e algumas mentiras, sobras de mesas vazias. As avenidas tomaram-se de loucos, todos perdidos em movimentos frenéticos, um frenesi contagiante, espasmos, suores, as mesmas pessoas que outrora esperariam horas por um assento de bar, os mesmos que não dormiriam sem uma foda virtual e uns trocados de carícias. Que inveja do casal que iniciou isso tudo. Que inveja. Antes, gozaram como nunca, e viram que era bom, e determinaram o destino de toda uma leva de normalidades por um orgasmo, para que qualquer um pudesse experimentar os prazeres, os ditos impulsos desesperadores que um dia geraram as raças e as indiferenças. Por que não pensei nisso antes deles? Lá estavam eles, no alto de uma sinagoga, sem uma palavra que os fizesse arrepender, sem uma carícia forçada que os intimidasse, com sorrisos ancestrais e piscares semanais. Quantas pernas havia neles? Quantas tentações, telas e semicírculos de amizade? Uma moça pálida, óculos, desarranjada desde o ventre, professorinha a se perder na passeata dos desejos. Um cafajeste de cavanhaque, terno de linho riscado, riso por se desfazer, olho canino. Figuras sem o menor sentido, sem a mínima simetria, desfaziam daqueles que há muito morriam e renasciam a cada estocada. De onde tiravam tamanha perfeição?
          Sem a música, dançariam. Sem os holofotes, as betoneiras, as farpas, dançariam. Sem os consentimentos, as concessões, os alarmes, dançariam. Dançariam mesmo que os gritos e as fúrias rebentassem, e as janelas cerrassem suas grades para os suicídios, e as praças expulsassem as crianças de maquiagem escorrendo, e os relógios apiedassem-se das peles esfalfadas de sol. Apenas dançariam, não importando o regime, o comando, as vidas malpassadas, os porvires, dançariam. Que nada restasse senão um deserto de mãos espalmadas em súplicas surdas-mudas, eles dançariam, num entrelaçar de pernas a interromper o trajeto das balas arremessadas.
          Levantei-me, não para dançar, mas para admitir a fraqueza, que aquele a misturar-se com a menina de óculos poderia ser eu. Justo eu, um revolucionário de palavras lancinantes, entanto simplesmente de palavras, nada mais. Por sinceridade, não devo ser merecedor de tais esquinas ou traçados. Virei as costas para os que ali estavam. Por mim, morreriam ali mesmo. Antes de me jogar pelo batente, mirei as figuras que, mesmo criadas por mim, conferiam a si mesmas a independência necessária para negar a existência de seu criador. Apenas dançavam. Por um tempo, tornei-me a moça de óculos, vacilante e suntuosa. Depois, encarnei o dançarino cafajeste de cavanhaque breve. Os dois me devolviam aos tempos das ruas calçamentadas, com papai sentado na cadeira de balanço em ferro trabalhado. Os dançantes sabiam de minha existência, de minha inveja, por isso mesmo dançavam e ululavam. Morri pelo asfalto em algum quilômetro que nos distanciava. Ainda que não precisassem, dançariam, porque nunca foram dançarinos, apenas palavra soltas.













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