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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Retrovisor


          Existe, em algum ponto obscuro da alma, uma espécie de mapa que, no tempo certo, nos guia em retorno a tudo que, um dia, nos deixou. Assim, como na intenção de resgatar um náufrago, às vezes é necessário refazer meticulosamente cada passo, reiterar rastros antigos, desmentir as horas, dar as costas para o futuro. E por onde começaríamos se fôssemos agraciados com a dádiva do retorno?
          Minha primeira parada seria pelas calçadas da infância. Nada é mais leve e desinteressado que o tempo de um menino. As brevidades dos sentimentos, os invencionismos das molecadas das ruas vizinhas, a turma juramentada pela ingênua arte de crer na eternidade. Cresci respirando a renovação das coisas, mesmo sem ter consciência disso. E se todas as dores fossem como as da infância, tudo seria mais fácil. O olho roxo, o joelho arrebentado, o calcanhar em carne viva. O chato é que na fase adulta as cicatrizes se tornam invisíveis e as feridas sangram só de lembrar que elas existem. O certo é que houve um tempo de descer ladeiras no carrinho de rolimã, riscando o asfalto recém-inaugurado, e de aventurar-se pelo sempre solícito pé de castanhola e dali espiar o quarto da misteriosa vizinha, desfilante em trajes íntimos pelos nossos sonhos mais ousados. Deve haver algum bom motivo para essa fase acabar assim, tão abruptamente, sem aviso prévio ou direito a ressarcimento.
          De passagem, reencontraria a malfadada adolescência. Foram anos difíceis, com algumas privações que, depois de tantas e tantas bordoadas, me fizeram entender que o interesse individual não é nada perto do anseio coletivo. O que tenho dessa época são achaques vários lançados contra a vida. Detestava os olhares de pena, muito piores que os de indiferença ou ojeriza. O mundo rompia sua casca. Já não mais havia o colorido das histórias em quadrinhos ou as alegrias de asfalto. Tudo enegreceu de repente. Os amigos de sempre permaneceram na infância e até hoje encontram lá casa e sombra. Optei por enfrentar as feras e os ponteiros. Passei a consultar o mundo pela lente nívea dos livros. As letras suavizavam as horas, faziam-me crer na condescendência do futuro, na indulgência das pessoas. Assim, desliguei-me do menino e contraí as enfermidades de todos que, como eu, sentiam a pele arder de ansiedades e incertezas. Da maneira mais difícil, percebi que a mãe de todas as revoluções é a necessidade.
          Já como adulto, muito mais desfiz do que realizei. Mal larguei as espinhas, me vi casado, pai de família, entupido de contas e responsabilidades. O pior é que, por essas horas, o tempo nos arrasta a um precipício de dúvidas e incompatibilidades, muito por tentar esganar sentimentos rompidos brutalmente na hora errada. Nessas veredas, perdi-me em olhos beatos, agarrei-me a cada segundo agonizante, antevi dívidas e soldos. Melhor parar. Vasculhar o passado é como perscrutar antigos álbuns e descobrir que nos melhores momentos não estávamos por perto. De tanto recordar as pessoas que amei e os caminhos por que trilhei, quase apaguei da memória o melhor de mim e perdi o chão que me favorece agora.

















2 comentários:

  1. Perfeito esse texto. Realmente não existe tempo melhor do que a infância. Costumo falar aos meus amigos,"isso é do tempo que a gente não tinha problemas" Adoro tudo que vc escreve,Mestre!

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  2. Obrigado, Silvia, pelos elogios. Suas palavras são asas para o que escrevo. Obrigado.

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