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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O encontro

          O ônibus deveria ter chegado há quinze minutos. Como não acreditasse na ineficácia do tempo, perguntei as horas a um passante, que respondeu desconfiado, olhando para o meu relógio. Prestava atenção nas conversas alheias, criava pretextos contra o incômodo do atraso. Vasculhava os bolsos com insistência, desviava-me da plataforma de desembarque para verificar os ponteiros, escrutava cada detalhe da antiga rodoviária.
          A três dias do Natal, o lugar fervilhava de senhoras de todos os tamanhos, carregadas de curumins, mirando sem pressa o corredor por onde os ônibus entravam e saíam. Em outro ponto, mochilas multicoloridas derramadas sobre o banco de cimento cru. A voz estridente dos vendedores de bugigangas salientava-se. No refeitório, um grupo de freiras, alheias à vozearia, tirava um terço lento. Um senhor de gestos antigos socava fumo no cachimbo. Amealhavam-se pelo acinzentado do lugar encontros e despedidas. Vendo de longe, não era possível diferi-los. Apenas sucediam, sem interrupções. Mães apegadas aos filhos, numa ladainha quase ensaiada, eivadas de recomendações e bênçãos. Filhos distantes, o pensamento no meio da rodagem antes mesmo do embarque. E mulheres de todos os matizes, chorosas de seus maridos, umas por remorso, outras por saudade. Decerto a maioria dos que se atalhavam pelas plataformas planejavam as festas ao lado da família. Pelas palestras, facilmente se notava essa intenção. Eu apenas esperava, todo malfeito, derreado num canto de parede, como se estivesse sob efeito de pancadas.
          - Mas demora esse ônibus! Você também espera o que vem da Parnaíba?
          - É sim ...o de Parnaíba ...já devia ter chegado! – respondi aturdido, sem saber direito de onde rompia a indagação. Olhei de lado e ali estava, sentada sobre um garajau, a dona de tão inoportuna intervenção. Uma senhorinha de ar brejeiro, jeito de moleca arteira, conquanto os vincos na cara repicassem-lhe a idade avançada. A velha deu seguimento à inquisição.
          - É parente?
          - Como?
          - Estou perguntando se você espera algum parente. Eu espero filha, genro e três netos. Vieram passar o Natal comigo.
          Quase todos que ali estavam, senão todos, assim o faziam por causa de algum parente. Não importasse a patente genealógica, os laços familiares compeliam seus motivos. Pais, filhos, irmãos, cônjuges, todos se amontoavam na esperança contígua de recuperar as horas usurpadas pela necessidade. Aquela mulher perguntadeira, ao aceitar a prodigalidade dos seus, redimia a si e a todos de sua árvore familiar, que os galhos podados agora ressurgiam mais fortes e viçosos. Se não fora abandonada por merecimento, ao menos tinha por expiação a distância dos que, quando de casa, nunca acreditaram numa total aproximação.
          - Não é parente não...
          Faltava-me dever explicações a uma desconhecida, uma velha enxerida que deveria apegar-se a um terço, como as freirinhas empoleiradas no refeitório, e deixar de lado o falatório inquiridor. Ela nunca entenderia.
          - É não?
          Como descortinar o motivo de tamanha insistência? De onde viria esse apego a alguém tão pouco confiável como eu?
          - É minha namorada...
          Melhor assim. Sem pormenores. Sem esgarçar toda a minha vida para justificar uma simples espera em rodoviária.
          - E já faz tempo que ela está longe?
          Como tossisse, afastei-me um pouco, mirei o atracadouro dos ônibus. Fiz um gesto num estalar de dedos para indicar um longo tempo. A senhora deu-se por vencida, grunhiu, gesticulou e, finalmente, concluiu o interrogatório.
          O cansaço já me cobrava assento, quando o ônibus de Parnaíba despencou pelo corredor. O pulso disparou. Rangia os dentes como se mascasse um chiclete. E ela, como estaria? Com a mesma apreensão ou, quem sabe, mais segura de gestos e falas. Como tocá-la, se é que o devo fazer? Talvez um simples aperto de mão indique certo descaso ou mesmo indecisão. Um abraço parece-me ousado demais. Somos namorados, acordamos isso, mas o fato é que nunca nos encontramos de verdade. Sempre confidenciamos nossos porquês pelas vias seguras do computador. Um ano e cinco meses de intimidades digitais não me garantiam segurança no momento mais aguardado por nós dois. E se ela não gostar do meu cheiro, da textura de minha pele, da espessura de meus cabelos? E se tudo que a tela e o teclado escondiam não for suficiente para ela?
          O motorista pôs-se à porta para recolher os bilhetes. Seria ela a primeira a descer, como em cena de novela? Não foi. Um senhor de ossos engelhados roubou-lhe a cena. Mas ela veio. Deve estar no aguardo, assim como eu, do momento certo de aparecer, como na hora marcada para entrar na internet e traçar longas conversas, ternas e silenciosas, outras vezes até picantes, dada a intimidade que adquirimos com o passar dos acessos.
          Depois de alguns minutos de expectativa, ela surgiu, trajando o suéter vermelho que lhe enviei seis meses atrás, quando ainda embrionávamos o primeiro encontro no mundo real. Acenei timidamente. Seu sorriso cercou-me de alívio. Estacou em minha frente e abriu os braços. Já não me sentia um estranho naquele lugar. Agora eu tinha a quem esperar ou por quem chorar quando partisse. Abracei-a com força, sentindo sua complacência.
          - Adorei seu cheiro!

Um comentário:

  1. Caro amigo

    Antes de tudo, parabens pelo Prêmio.

    Hoje a minha visita
    é para agradecer.
    Cada visita sua ao meu espaço
    de sentimentos,
    inspira alegrias em
    minha vida,
    e leva o que de melhor
    existe em mim.

    Sua amizade é preciosa
    em minha vida,
    e há de continuar a ser
    neste novo ano
    que está nascendo.

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