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domingo, 22 de agosto de 2010

Sobre revoltas e banhos de mar

          Que coisa louca essa correria desenfreada, esses relógios em erupção constante, esses olhos de asfalto esbugalhados sobre nossas cabeças. O espelho aponta-nos falhas irremediáveis, imprecisas, cegando-nos pela ação revitalizante dos cosméticos virtuais. Os jovens buscam, em despreparo, os veios da maturidade, confundindo liberdade de espírito com penteado da moda. Os velhos, que assim não o são, travestem-se de puerilidade, como se fosse possível guardar a juventude no guarda-roupa, junto ao remédio para hipertensão. O que falta a esses indivíduos de porcelana é um daqueles inesquecíveis tabefes da vida, dos que se marcam por remorsos ou arrependimento, dos que desorientam de tal maneira, que os caminhos clareiam e os tijolos se alinham.
          Tomemos uma atitude, criemos grupos de resistência, levantemos a bandeira de que a felicidade absoluta corre por nossas veias, sem a fealdade das telas-espelho, sem a fatalidade dos modismos com molho especial e picles. Afinal de contas, o que diabo é “picles”! Vamos às ruas, fuzis em punho, fechar lojas e abrir corações. Temos de seqüestrar um ônibus. Isso mesmo, seqüestrar! Marquemos um local estratégico, em um desses pontos movimentados da cidade, e esperemos o coletivo ideal, de preferência o que conduz ao trabalho, o que vem abarrotado de interrupções, entupido de torpor e apatia. Já no ônibus, um de nós vai até o motorista e instrui que ele siga por outra rota, previamente traçada. Os outros terão que aplacar o pavor dos passageiros. “Não queremos dinheiro, é só um sequestro!”. Nada como uma boa nota de sarcasmo. Obrigaremos o condutor a seguir até uma praia deserta, dessas de propaganda de cerveja, e lá, sem muita pressa, pediremos que cada passageiro observe atentamente o mar, ouça seu cálido convite, suas asas pensas sobre a areia, seu grito incolor de protesto. Hora de mergulhar. Todos, sem exceção. É preciso sentir a água morna, exorcizar os relógios, lembrar que, para atar os laços da divindade, tem-se que subir nos ombros uns dos outros.
          Aos poucos, as intempéries da existência dariam lugar a um gosto salobre de novas esperanças, e as pessoas teriam pelo mundo um estranhamento necessário, um apreço filial. Uma dolorosa reconciliação se processaria. O operário, que tantas vezes se confundiu com os andaimes, decidirá escrever na areia um poema há muito abandonado. A senhora presa às compras caminhará pela praia e, pela primeira vez, lembrará com carinho seu velho amor, já desaparecido. Os estudantes teleguiados construirão castelos que, de tão frágeis, serão confundidos com espelhos. O motorista conduzirá as leis do mundo e perceberá o dinamismo das aves e dos insetos que o rodeiam. O professor assumirá sua ignorância e exigirá do mar um tridente e os tritões. A prostituta em carne viva esquecerá, por cinco segundos, as dores alheias e se ocupará, depois de séculos, de suas próprias dores. O estelionatário de bela face rasgará o tempo e as promessas de vida fácil, restando-lhe apenas o conforto do sol e das nuvens encarneiradas. O homem sem rosto gravará seu nome em todas as árvores do manguezal.
          Depois disso tudo, retornaríamos aos guetos, não mais os mesmos. O ônibus, outrora carregado de exilados, agora traria as chaves para os tormentos do mundo. Os cordões umbilicais de concreto e piche se desfariam. Seria o princípio de uma revolução silenciosa, um tempo de coexistir sem receios ou covardias. Assim, em todos os pontos de ônibus, figuras insanas se armariam de consolações e rasgariam os ponteiros, que os germes da mudança proliferam e o sal das coisas nos condena à plenitude.




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