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domingo, 15 de agosto de 2010

Lembranças e esquecimentos


          O mal de Alzheimer, ou doença de Alzheimer ou simplesmente Alzheimer é a forma mais comum de demência. Um sintoma primário é a perda de memória. Evidentemente, não é algo que se deseje a alguém. Entanto, se pudéssemos dosar essa patologia, rastrear seu desenvolvimento e usá-la em benefício próprio, que espetacular seria. Imaginemos um remédio, criado a partir dessa doença, para deletar de nossas cacholas apenas o necessário. Para não mais sofrer com aquela derrota monumental do time de coração, bastaria uma drágea. Para não mais recordar aquela malfadada angústia de não ter sido aprovado em um concurso, depois de anos de preparação, uns dois ou três comprimidinhos já seriam suficientes.
          Agora, para esquecer os arrebatamentos líricos que a vida nos reserva, seriam necessárias umas boas doses cavalares, mesmo assim sem muitas garantias de sucesso. É que existe uma diferença abismal entre o que esquecemos por pura falta de vitamina B1 e o que tentamos desesperadamente não mais lembrar. Minha memória, por exemplo, é rala, exaurida pela falta de tempo e pelo tabagismo inveterado. Costumo confundir-me entre números e palavreados, de sorte que, vez ou outra, me surgem verdadeiras páginas em branco na lata. Houve, certa feita, um encontro para o qual me preparei a vida inteira e ao qual deixei de comparecer, por entraves vários. Entenda-se que isso ocorreu não por esquecimento, mas sim pela vontade tola de apagar da mente o que desde sempre fincou raízes. O tempo do reencontro passou, mas ainda me pego imaginando o que teria dito naquele momento. Para começar, sentado à mesa do botequim de esquina, confessando à fumaça boa parte de meus arrependimentos, mataria o tempo a golpes de silêncio, até acreditar que os astros estariam todos em alinhamento. Sem muito alarde, iniciaria a palestra, sempre buscando os olhos atentos de quem ali estivesse pelo simples desejo de ouvir. As palavras seriam exatamente as que seguem:
          “O tempo nunca foi nosso aliado, não é mesmo? Sempre estivemos quando não deveríamos estar. Tenho algo a confessar: tentei esquecer. Atravessei os desertos da alma em busca de fontes que não te refletissem a face. Inútil. Aprendi que a maneira mais dolorosa de lembrar é tentar esquecer. Bom, isso não vem ao caso. O que pretendo é dizer que a fé não acabou, que sempre tive bons presságios com a tua presença. Tuas asas agora estão fortes, consolidadas, e o que esperar com isso, senão o voo inesperado até fugir de qualquer alcance. Ainda me alegro com o que me ensinaste, não por função, mas por vocação em minha vida. Um dia fui jardineiro firme, cuidadoso de teu jardim, eivado de incertezas daninhas que fiz questão de podar. Sei que hoje, no vão de tuas horas, pouco sobra espaço para fotografias cansadas. Somos instantâneos de vida, estáticos diante da impossibilidade de realizar, nem que por um átimo, aquilo que planejaríamos para a vida inteira, se não tivéssemos tamanha blindagem cardíaca. Porém, sei que nos comunicamos nos telegramas oníricos, nas entrelinhas dos textos, nas curvas melódicas das velhas canções. Passeamos entrelaçados? Lemos, a um só tempo, o mesmo conto? Sorrimos constrangidos em jantares familiares? Que importa! Fomos além. Desvendamo-nos, e isso é mais do que a maioria consegue em uma única existência. No mais, sei que tua lida é constante e vitoriosa, que teus passos ainda são frágeis e ininterruptos, que teus sonhos são maleáveis e certeiros. Se precisar, estou no farol, guiando-te. Não há ninguém que te queira mais próximo da praia, que a vida te reserva o mais seguro e promissor dos portos. Adeus.”
          Que algum desses abençoados cientistas, capazes de realizações beirantes do comportamento divino, leia atentamente este texto e crie o tal medicamento que nos favoreça com os benefícios do esquecimento. Se precisarem de algum voluntário, estarei à disposição.

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