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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pedras, chumbos e revoltas

          De um lado, um homem branco, jovem, empresário bem-sucedido, atirador de chumbinhos, péssima mira (ou não...), orgulho dos pais, dos amigos e das incautas da meia-noite. De outro, um flanelinha, foragido da justiça, da família, da vida, intruso em qualquer lugar que não seja de asfalto, desacordado das drogas, repulsivo, escarnado pelos olhares de asco e ódio.
          O primeiro estudou nas melhores escolas, e lá, provavelmente, destacou-se por suas inofensivas brincadeiras, dessas de se escolher uma vítima, de preferência solitária e tíbia, e arquitetar uma brutal perseguição, com apelidos insistentes, agressões constantes, macerações morais de toda espécie. Por ser a alegria da turma do shopping, o garotinho do papai expandiu seus negócios, franqueando a violência, criando uma corrente de bestialidade jamais vista. Os muros escolares já não podiam conter seus instintos. Agora, em qualquer lugar, sem prévio aviso ou hora marcada, irrompia uma agressão gratuita contra quem se predispusesse a compartilhar o mesmo oxigênio do sobrinho preferido da titia que mora em Miami. As meninas o tinham como um vingador, um herói troiano, um mártir a arriscar a própria vida para levar o lixo do mundo para a reciclagem. Ora, diria ele em sua infinita pequenez, ninguém suporta estar em um barzinho, balbuciando anedotas sem sentido, e deparar com uma mãozinha trêmula, estendida miseravelmente à cata de um trocado ou, quem sabe, um resto de tira-gosto ainda sem dono; é de causar enjôo aquele povo torturado, maltrapilho, esquálido desde sempre, interrompendo a tranqüilidade do canteiro central com suas caras de fome que a miséria iguala; não se pode conviver com aquela mãe parideira, com setecentos filhos espraiados no calçadão, torta e manca, mal se levanta, com os moleques fazendo todo o trabalho sórdido, matando a fome com uns trocados e algumas brincadeiras. Ocorre que, um dia, com todo o futuro devidamente engatilhado, esse representante mais do que legítimo das grandes mansões, das gordas porcas de clubes recreativos, dos bigodes retilíneos borbulhados de champanha; esse exemplo maior de que o planeta já tem dono e são poucos os que possuem o passe livre para a liberdade social e financeira; esse pedaço de moleque travesso que, sem saber, estapeou a todos nós com suas atitudes aplaudidas desde cedo pela miopia familiar; é justamente esse indivíduo que, por um ato insano de galhofa ou justiça, empunhou uma espingarda de chumbinhos, apontou para um flanelinha, mirou e atirou. Seguiu-se a isso uma risada frouxa, acompanhada de uma débil sensação de poder.
          A outra personagem dessa história é breve demais para ser notado. Não há vestígios do pai. Cresceu assolado pelos tapumes que o cercavam, no favelal do sopé do morro. Quando pequeno, apanhava da mãe, que exigia dinheiro e impunha-lhe um expediente. Apanhava dos irmãos, que lhe tomavam o dinheiro do final do expediente. Apanhava dos estranhos, que lhe queriam tomar o dinheiro que já não havia. Apanhava dos nãos que recebia, das vistas enojadas, das crianças curiosas repreendidas por chegarem perto demais, dos guardas municipais cumpridores de seu mister, da polícia cidadã, das milícias, dos cães, da chuva e do sol. Aos quinze anos, debutou na marginalidade, presenteando a si próprio com o primeiro revólver. Viu que era fácil assustar os otários de tênis bonitos, de bons carros. Bastava se chegar. Só sacava do “berro” se fosse ameaçado, o que raramente acontecia. Um dia, um comparsa de esquinas e pequenos furtos chegou com a salvação de todas as fomes. Era uma pedra, branca, macilenta, uma pedra de fumar. E como se houvesse desvendado o segredo das pedras filosofais dos alquimistas de outrora, aquilo lhe vinha como a maior de todas as invenções, superior à criação da roda ou à manipulação do fogo. As coisas, então, começaram a fazer sentido. Ele era um caçador, uma fera instintivamente preparada para agir e matar a fome. Os outros eram presas, caminhando em bandos, indolentes, patéticas, nascidas para sucumbir. Assim seguiu, sem rumos ou expectativas, sem a mínima idéia do que fosse amor ou esperança. Com aquelas pedras providenciais, ia construindo seus castelos de penúria e sectarismo. Vez ou outra, tirava uns trocados pastoreando carros. Em uma dessas, manhãzinha aflorando, ao virar-se para atender o chamado de um estranho, sentiu uma lágrima adensada misturando-se à noda entranhada no rosto. Era a forra do mundo que ele barbaramente caçou durante toda a sua vida. Inutilmente sentou no meio-fio. Alguém riu disso tudo.

Um comentário:

  1. Esse texto nasceu da vontade de comentar um fato policial recente: um empresário jovem que havia acertado um tiro de chumbinho no olho de um flanelinha. Duas personagens instigantes e culpadas, de alguma forma.

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