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sábado, 15 de agosto de 2009

Libertinagem

- Atrapalho?
- Não, pode entrar... fique à vontade!
- Então, como faz?
- Paga antes.
Apartamento 204. O corredor dava para uma janela, mais nada. Dos quartos, vozes, choros arrastados de crianças, um programa de tevê. A imundície das coisas, o corrimão enferrujado, os azulejos riscados, números, palavrões, desgovernou-se por um tempo, mesmo assim decidiu tocar a campainha.
O prédio ficava em uma avenida movimentada. Deixou o carro longe, reparou as lojas, ninguém conhecido, o peso dos quarteirões, as gentes nas calçadas, o mendigo não lhe estendeu a mão, a inquisição dos olhos. Passou do local, perdeu-se entre os números, percebeu o erro, deu meia volta, parou em frente. Tateou os bolsos, não achou os cigarros, deu-se por vencido, excitou-se, um bar perto, cigarros, uma dose, de volta ao ponto, prédio alto, 204, sem portaria, qualquer um entraria, uma pocilga.
Perseguido por um calor insuportável, parou numa banca de revistas, pediu uma água mineral, o jornal do dia. Nos classificados, empregos, apartamentos, acompanhantes, uma barbaridade, cobrar por sexo, tantas mulheres, uma delas, morena, casada, liberal, não deve ser verdade, uma mulher casada, fazer o que o marido não faz, e se não faz deve ter seus motivos, ao menos deviam conversar, não vem ao caso, o que diz no anúncio é que a mulher é casada, um vulcão na cama, carente, ferida, vingativa. O carro estava um forno, mulher casada, ligar não custa, três toques, deveria estar ocupada, voz doce, chamativa, suspirava, parecia estar com alguém, o calor aumentava, ouviu dela uma intimação, tinha que saber quem era.
Antes do costumeiro, juntou o necessário e saiu, que já não cabia na casa. Se algo o protegia, muito mais que isso era o mundo que o cercava, enjoativo, insosso, de jogar uma pedra no abismo para saber a profundidade e nada, nem um sussurro que o fizesse renegar o que está escrito, descer da cruz, constituir família, morrer de velho. A dimensão de todas as coisas desfazia nele a mínima possibilidade de crença, que todos os homens, em maior ou menor grau, são essencialmente maus, retalhados, e é nesses retalhos que se resguardam, mostram-se limpos quando estão desgraçados de berço. Desde menino acostumara-se à traição, à crueldade das mentes lancinantes dos pequenos – ainda que não fosse um incapaz, um inválido, pousava-lhe um aleijão, um temeroso estigma de fraqueza que percorria seu íntimo, atribuindo-lhe uma honestidade que facilmente se confundia com fraqueza. Precisava ser tão ruim quanto o seu tempo, tão intenso quanto tudo que lhe doía, mas a ele faltava o cacoete dos que de cedo rompem com o mundo e decidem ser juízes de todas as coisas. Descobrira isso tardiamente, e as horas o abandonavam, e as pessoas há muito queridas esfacelavam-se. No carro, segurando com firmeza o volante, decidiu que era tempo de fazer alguma coisa por si mesmo.

Um comentário:

  1. "Antes do costumeiro, juntou o necessário e saiu, que já não cabia na casa. Se algo o protegia, muito mais que isso era o mundo que o cercava, enjoativo, insosso, de jogar uma pedra no abismo para saber a profundidade e nada, nem um sussurro que o fizesse renegar o que está escrito, descer da cruz, constituir família, morrer de velho."


    Tão perfeito esse conto... desses que nem mesmo a rotina te arrastando por anos vai ser capaz de apagar...

    *S

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