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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

As outras do recomeço

Jacinta preparou tudo com muito zelo. Era aniversário do marido e nada podia dar errado. Muito mais do que uma festa, uma reaproximação. O casamento já não fluía como antes. As discussões sucessivas, pelos motivos mais banais, afastaram os dois, as coisas poderiam mudar.
Contratara um cantor especializado em aniversários, com amplo repertório de músicas das décadas de cinqüenta e sessenta, as preferidas do marido. Pensara, com cautelosa antecedência, em todos que poderiam comparecer ao evento. Amigos íntimos do casal ou tão-somente conhecidos, o importante era que os jardins do bufê abarrotassem de gente. Também estavam nos planos uma boa quantidade de bebidas, de todas as marcas e para todos os paladares, da cerveja ao uísque.
Tudo deveria ser uma grande surpresa, mas o marido, sempre atento, apertou um dos empregados da casa até extrair a revelação sobre a festa. Agiu com naturalidade depois disso. Saiu como de costume, despedindo-se da mulher com a formalidade de sempre. No caminho para o trabalho, veio-lhe a idéia de parar numa barbearia, polir o rosto, mas achou por bem cumprir a rotina, deixando a barba para o sábado. No final do expediente, recebeu o telefonema da mulher, que o aguardava num endereço estranho. O carro havia enguiçado, precisava de auxílio. O marido atentou para a boa mentirosa com quem se casara. Sorriu levemente, encerrou o dia e tocou para o tal lugar.
Encontrou a mulher enfeitada demais para quem estava no prego. Fez que nada sabia, perguntou pelo carro. Puxando-o pelo braço, sorridente como há muito não se via, a esposa levou-o até uma esquina próxima, onde uma faixa de feliz aniversário encimava a entrada de um luxuoso bufê. Os convidados, para mais de cem, levantaram das mesas e aplaudiram o aniversariante. Seguiu-se uma interminável fila de cumprimentos, que só não se tornavam mais enfadonhos porque o marido aproveitava a ocasião para tomar umas dosezinhas de uísque. Passadas as formalidades, Jacinta aproveitou o microfone para erguer um brinde ao marido, com sonoros desejos de saúde e felicidade vindos de cada mesa. Propuseram uma dança, que o marido recusou, alegando não ter bebido o suficiente para tanto.
A festa prosseguiu. Os garçons não paravam de servir bebida. Das mesas, estouravam gargalhadas, seguidas de demorados apertos de mão. Jacinta sentou-se para descansar, satisfeita por ver o marido se divertindo, passando de mesa em mesa, conversando, rindo, bebendo.
A noite corria leve, sem maiores preocupações. O marido, animado pela bebida, arriscou uma música ao lado do cantor. Formou-se um coral em torno dele, que àquela altura era dono da festa. Abraçou repetidas vezes a mulher, pediu-lhe perdão, chorou e ameaçou ajoelhar-se diante de todos. Jacinta apenas observava e ria, e de alguma forma conseguia ver sinceridade nos gestos do marido.
Terminada a festa, depois de o último convidado se despedir, ela levou o marido para casa. Estava cansada, mas tudo correra como planejado. Conseguira mostrar a ele o quanto se importava com o bem-estar de seu casamento.
Em casa, Jacinta jogou o marido na cama e foi banhar-se. Se ele estivesse em condições, estariam os dois no chuveiro. Ainda assim, engoliu o desejo e sentiu pela derradeira vez que havia feito a coisa certa.
O marido acordou por volta das duas e meia da tarde. Arrastou-se até a cozinha, onde a mulher o cumprimentou com um melodioso boa-tarde. Continuou até a garrafa de café, esfregando a mão no rosto com vontade. Sem dizer palavra, rumou à sala, tateou os livros que enfeitavam a mesa de centro. Deitou-se no sofá e de lá não mais saiu. A mulher percebeu a inércia do marido, deitado ali, sem esboçar gesto. Tocou-lhe a testa, tomou-lhe a veia do pescoço e constatou: estava morto. Jacinta correu como louca, puxando os cabelos, gritando por socorro. A sala rapidamente encheu de curiosos, entre vizinhos e empregados.
Jacinta não se conformava. O marido era jovem e nunca despertara a menor suspeita de qualquer problema de saúde. O laudo cadavérico sugeria diabetes. Não fazia o menor sentido que um homem que gozava de plena saúde, sem mais nem menos, caísse morto no sofá da sala, como uma vela que se apaga.
Seis meses se passaram. Jacinta continuava inconformada, mas já se ocupava de uma ou outra coisa que a fizesse esquecer. Era uma mulher jovem ainda, poderia refazer-se, mas faltava coragem ou vontade. Vivia agora sozinha. Quase não tinha amigos. Se encontrava algum conhecido, trocava meia palavra, alegando compromissos inadiáveis que nunca existiram. Convivia com a culpa de ter sido a causadora da morte do marido, por conta da tal festa.
Uma vez por semana, freqüentava a igreja. Depois da missa, ficava por mais uns bons minutos penitenciando-se, enquanto fitava o Cristo crucificado no altar. Foi numa dessas demoras que conheceu Salomé.
Aos poucos, as duas se aproximaram. Salomé também era viúva, mas já não trazia um olhar trágico. Passaram a freqüentar a casa uma da outra. Em pouco tempo, já eram confidentes. Almoçavam juntas, faziam compras, demoravam-se em conversas ao telefone.
Numa das idas à igreja, Salomé sugeriu um happy hour em um bar próximo. O luto de Jacinta a incomodava, e naquele dia saiu decidida a mudar essa situação. Sentaram e pediram uma cerveja. Pelas tantas, a conversa corria animada, contavam histórias picantes dos maridos, reclamavam das traições. A bebida vinha como uma anestesia, e Jacinta, quando questionada se queria ir embora, apenas sorria, enquanto fazia gestos para que o garçom trouxesse outra cerveja.
Era perto de meia-noite quando um garçom aproximou-se com um bilhete. Dois rapazes em uma mesa próxima perguntavam se as donzelas não gostariam de companhia. Jacinta riu, piscou para a amiga e chamou um deles. Logo o outro rapaz também se chegou.
O mais jovem era militar, via-se pelo porte físico e pelo corte de cabelo. O outro era comerciário, prestes a ser promovido à gerência da loja. Eram de boa conversa, educados e bem-humorados. Jacinta chorava de rir das piadas. Os garçons já recolhiam as cadeiras, quando um dos rapazes sugeriu continuar a conversa em outro lugar. As duas se olharam com cumplicidade e, sem muito alarde, aceitaram. Foram ao apartamento de um deles. Enquanto Salomé conversava na sala com o comerciário, Jacinta e o militar ficaram na varanda. Aos poucos, foram se tocando e, por fim, o beijo. Salomé, a essa altura, já tinha ido para o quarto com o outro. O militar levou Jacinta para o banheiro e ali, sob o chuveiro, se amaram.
Bem cedo, ela deixou o apartamento. Sequer se lembrou de Salomé, que dormia tranqüila ao lado do comerciário. O militar ainda tentou perguntar as horas, mas tornou a roncar, caído no chão da sala.
Jacinta apanhou um táxi. Em casa, tomou um longo banho. Pensou no marido. Passando pela sala, fitou por uns minutos o sofá. Ainda que não fosse o mesmo em que o marido havia morrido, era impossível não lembrar. Ouviu o toque do celular. Era Salomé. Decidiu não atender. Arrastou-se até a cozinha e tomou um café, fitando o corredor que dava para a sala.

Um comentário:

  1. Jacinta aparenta ser uma mulher dedicada e honesta cm seus sentimentos
    Gosto como vc Descreve a parte da festa, como se esses momentos fossem vividos milhares de vezes, gargalhadas, aperto de mãos,mesas,úisque...
    Boa também é a discrição dela cm o amante no banheiro
    A sensação do recomeço sempre terá um gosto miscigenado de remócio, saudade , prazer...

    É uma Crônica maravilhosa.
    Seu blog deixa em mim uma vontade de escreve melhor, de estuda mais , e fregüentar o laboratório de redação

    abrço Sinval

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