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sábado, 15 de agosto de 2009

asas e lixo

Os meninos curvavam-se para colher latas no monturo. Os outros eram cegos, olhar branco, e com voracidade engoliam os restos de um cão, um pequinês. A ninhada seguia, fingia que as latas eram um tipo de arma: espocavam tiros de mentira, caiam uns sobre os outros como se morressem, para em seguida ressurgirem mais fortes e com revólveres mais potentes.
- Toma, ladrão...
O pobre cão não tinha a mesma sorte. Morrera de vera, sem a misericórdia de um faz de conta. Sem perceberem, um estranho ritual aplicava-se àquela brincadeira, e toda a bestialidade do baixio, fétido de fome e escarro e excrementos, dava lugar a uma espécie de renascimento. Ao pino do sol, os moleques, já desarmados das latas, começaram a grunhir, encolhidos, espojando-se no lixão, contorcendo-se como se buscassem sair de um casulo imaginário. Em súbito, o mais novo, de costelas salientes, sentiu a pele romper, fazendo surgir um par de membros alados. Os colegas aos poucos passaram pela mesma metamorfose. Todos eles agora tinham asas. Entreolharam-se com espanto, mas logo deram conta do que podiam fazer. Um deles, o de cabelos verdes, passou a sacudir as asas com força, erguendo com facilidade seu corpo sem peso, alçando um vôo raso pelo lixão. Vendo que aquilo era bom, os pivetes seguiram a orientação, e o céu agonizado escureceu de meninos alados a quebrar o silêncio dos que se alimentavam das carnes do cão pequinês.
- Vai, galinha...
Tomaram o rumo da cidade de asfalto, e brincaram de esconder nas sacadas dos altos edifícios. Os passantes das avenidas não criam na cena. Uns buscavam paus e pedras para proteção, outros erguiam câmeras para registrar o ocorrido. Os meninos alados, sentindo o medo das pessoas, voaram baixo para roubar-lhes os pertences, e invadiram casas, lojas, levaram o que puderam. Saltaram para dentro de um restaurante, que a fome apertava, e de lá só saíram quando nada mais havia para devorar. Um deles, o de asas tortas, recomendou cautela, que não se mata a fome do mundo num susto. Os outros acataram. Assim, retornaram ao lixão, onde os cegos ainda farejavam em desespero algum outro cadáver de cão.
Pousaram leves no topo das árvores e de lá observaram o balido dos que tinham fome e não sabiam voar. Sem culpa, dormiram tranqüilos, na certeza de que não mais viveriam no lixo. Um deles, o de olhos amarelados, sonhou com um imenso campo de margaridas. Os demais sentiam o sangue rasgando a garganta.

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