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domingo, 25 de outubro de 2009

Rastros

A manhã despontava, e o menino Caçula já descia o alto, tangendo os bichos, vindo do Jitó, puxando pelo cabresto a teima do jumento, grajaús carregados de manga coité. A molecada do sítio Ladeira Grande, às ordens de D. Ambrósia, enfileirada no alpendre, cabelos lambidos, blusas perdidas, o pé da barriga à mostra. Dia de visita, uma primalhada do Sul, gente de outros hábitos, meneios de cidade, difícil de agrado.
Caçula, assim era conhecido, foi o último a se arrumar, o rosto ainda riscado da noda das mangas. O povo chegou às sete. Apenas um deles parecia familiar, os demais tateavam as coisas e as pessoas, os sorrisos soltos, falas estridentes de forasteiro. Bastou um sopro, ficaram de casa. Os mais velhos tomaram conta das cadeiras do alpendre. Os meninos amontoaram-se no terreiro, vendo de longe, esbugalhados, curiosos.
- Traz café, Nana! – gritou Ambrósia.
O povo do sítio era amarronzado, diferente dos visitantes, anêmicos, uma brancura de dar dó. Ambrósia, sempre solícita, de instante em instante oferecia alguma coisa, elogiava os cabelos lisos dos pequenos da trupe de estrangeiros.
- Tão loirinho! Branquinho, meu Deus! – derramava-se.
Entre os chegantes, um menino, de nome Ariel, olhos cor-de-fumo, cabelos escorridos. Os pequenos do sítio puseram-lhe o apelido cabelo-de-macarrão. Caçula, a essa altura, tinha se despido da camisa e começava a separar as mangas. Era rude, entroncado, olhos e nariz esticados. Apalpava com ligeireza as frutas, expulsava o mosquitaral.
- Çula...ô Çula, cadê as manga?
As melhores foram para as visitas. Caçula separou uma três para chupar na ribanceira do engenho. Os capotes ciscavam pelo terreiro. Vez em quando as camionetes, carregadas de gente da Feira, riscavam a piçarra, a poeira cobria o cimo.
Ariel se chegava, catando palhas, vistoriando os pés de jaca.
- Não tem medo de cair? É alto!
Caçula, sem mirar o outro, a boca entupida de casca de manga, respondeu com a cabeça.
- Como subiu aí?
Apontou com um gesto de queixo a pedraria que dava para o alto da ribanceira. Continuou a chupar as mangas, enquanto o outro se metia a subir. No alto, Ariel despercebeu-se da presença de Caçula, mirou até onde pôde o estirão de terras, admirou-se da imensidão do sertão e das nuvens deitadas no azulado dos serrotes.
- Dá pra chegar até aquela nuvem? – apontou sem esperar resposta.
Caçula escondia-se por detrás dos joelhos ossudos, cercado de mosquitos, o focinho amarelado da meladeira das mangas.
- Qual?
- Aquela...que parece um tapete. Lá em casa tem um tapete parecido com ela.
Os dois no cume da ribanceira mal falavam. Entre eles havia um abismo tão cavado quanto o da Pedra dos Índios. Caçula era um curumim arredio, bicho de andar descalço pelas veredas, de subir na jaqueira com faca no cós, que as jacas de vez costumam ser as do topo. Desde meninote, costumou-se com a lida de serrano, acordando antes do sol, tangendo o gadinho até a beira do açude do Careta. A insistente presença de Ariel o acuava, como se lhe pusesse em cercado, qual as reses do curral. Um menino de brancura igual à dos coroinhas do padre Sebastião de certo não saberia amansar um jumento brabo, arregaria da primeira coiçada. Os olhos de Caçula não desgrudavam do outro, que já se mostrava incomodado com os mosquitos, gemia, estapeava-se. Se vira moleque tão frágil, não se lembrava, a não ser os meninos do prefeito, que em época de campanha levava a família toda para os palanques. Esses não contavam, eram vistos de longe, figuras desfocadas. Ariel era diferente, de uma alvura próxima, um olhar curioso, uma quase agressão a todos os instintos de Caçula.
- Vem comer alguma coisa, Ariel! – gritaram do sobrado.
O menino desceu numa rapidez de baladeira. Sequer escorregou. Caçula quase sorriu.
À tardinha, os curumins do sítio costumavam se juntar para o banho na bica do Jitó. Caçula já esticava na frente.
- Çula!...ô Çula, leva o Ariel contigo, que ele quer conhecer o Jitó!
E o menino aproximou-se, tenso, medroso do que poderia encontrar no meio do caminho. Caçula farejava o medo do outro, mas seguia calado, riscando o terreiro com um galho de Juá.
A vereda estreitava a cada ladeira, e o mato rompia os cercados. Caçula pegava do chão umas manguitas, cheirava, jogava com força até estourar nos troncos grossos das antigas jaqueiras. Ariel repetia o gesto, mirava o mesmo ponto. Os dois ali, sem palestra, sem maiores intimidades, dividiam o caminho e as brincadeiras. Caçula percebia o esforço do outro, ensinava o melhor lugar para pôr os pés, alertava para as cobras, esticava o dedo para o chiado das cigarras. Ariel firmava-se a cada passo, e a rudeza daquele mundo invadia-lhe os pensamentos, atiçando a vontade de descobrir.
Os dois chegaram à bica sedentos de um banho. Deitaram as roupas em uma pedra e caíram na água, que enrijecia os ossos de tanto frio. Caçula demorava no mergulho, prendia a respiração por um bom tempo, depois emergia, fitando com olhar traquina o colega, como se o desafiasse. Ariel arriscava uma ou outra mergulhada breve, que a asma e o frio não o deixavam à vontade.
Ariel correu para a margem, agarrou-se com a toalha que trouxera, reclamou do frio. Caçula permaneceu na água, mirando o moleque trêmulo, esbranquiçado como as imagens de porcelana da sala de ex-votos da igreja. Como figura tão frágil, tão necessitada de alguém que o ampare, pode sobreviver neste mundo? Ao menos perdesse o olhar de anjo, de peça sacra; ao menos engrossasse as carnes. As gotas escorriam-lhe pelo corpo, em rastros parecidos com os veios das árvores.
Caçula sentia as palmas das mãos engelhadas, calosas. Chegou a sentir pena do outro. Saiu da água e sentou-se ao lado de Ariel, que lhe ofereceu um espaço na toalha. O curumim da serra nunca havia sentido tanta maciez. Nos seus doze anos, despidos, cobertos pelo alvor do instante, entreolharam-se e riram-se, até o vento apagar os rastros.

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