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domingo, 25 de outubro de 2009

Perdão

Na véspera da ordenação, resolveram comemorar. Átila esquivava-se, não achava necessário ostentar, mas a insistência dos amigos foi mais forte.
Preparou-se à exaustão para o grande dia em que se tornaria sacerdote, conhecia os afazeres religiosos melhor do que os padres com quem convivia no seminário carmelitano. As provações por que tinha de passar já não o atormentavam, tudo era consumado em seus pensamentos, um sonho, desde que era acólito, ainda molecote, e levava puxões de orelha do padre Álvaro. Sabia que as vestes do mundo não mais lhe cabiam. Era tempo de concelebrar, e para isso tinha os amigos, os mesmo que na infância caçoavam. Lembrava com nitidez os tempos em que o chamavam “boneca de padre”. Agora nada mais importava, senão o dia seguinte, em que se entregaria a uma vida de serviços à igreja e a Deus.
Aceitou o convite. Mal não haveria. Uma confraternização apenas. Os três que organizaram a despedida eram irmãos. Átila veio depois, conheceu-os de brincar no meio da rua, de correr atrás das menininhas. Combinaram então de encontrar-se às oito e meia na frente da matriz, que já estava toda enfeitada para os festejos de Nossa Senhora das Dores, padroeira do distrito. Pela primeira vez um fruto da terra se ordenaria padre, um orgulho para todos, principalmente para D. Nila, mãe de Átila, mulher que a duras penas conseguiu dar estudo e juízo ao filho.
D. Nila nunca foi de prender menino em casa, mas com Átila foi diferente. Era o caçula. Além dele, mais quatro. Todos se perderam na bebida, mas o último a mãe conseguiu segurar, pôs cabresto. Depois da morte do marido, D. Nila perdeu o prumo, ficou doente, teve de ser internada, e confiou a criação do filho mais novo ao pároco da época. Sempre fora mulher de igreja, daquelas de contribuir em todos os eventos, de não faltar a uma novena, de se confessar a cada mês, de ajudar nos preparativos de todas as festividades santas. O padre devia favores a ela, daí aceitar cuidar do menino.
Com oito anos, Átila era o acólito mais jovem e mostrava vocação para o serviço, via-se que fazia com gosto, com dedicação. Assim cresceu no meio dos padres, freqüentando a escola episcopal, estudando com afinco os textos sagrados, afinando o vocabulário. Aos treze anos, era de citar frases em latim, de comentar as epístolas, de puxar ladainhas e terços. Até os erros dos aspirantes a padre, que à noite pulavam a janela do quarto e iam ter com as mocinhas no mato, não o fizeram perder o vislumbre da vida sacerdotal. Certa vez, numa noite chuvosa, a porta de um dos aposentos entreaberta, flagrou um padre, pelos seus sessenta anos, e um seminarista, um dos mais jovens, fazendo coisas estranhas. Voltou correndo para o quarto, trancou-se e ali, em prantos, rogou perdão para as almas de todos os pecadores. A vocação amadureceu. Com dezoito anos, mal saía do seminário. Mesmo nas férias, preferia ficar, preparar liturgias, organizar sacrários, desempoeirar as prateleiras da biblioteca.
Os amigos de Átila preferiram os caminhos do mundo. Viviam de farras, não trabalhavam, sustentados pelos pais, que já haviam decidido entregar o destino dos filhos nas mãos de Deus. Quando pequenos, arrumavam briga com outros meninos, avançando no primeiro que olhasse torto para qualquer um deles. Com Átila não foi diferente, mas entre eles, sem explicação aparente, nasceu uma simpatia. Passaram a querer que Átila andasse com eles, protegiam-no como se fizesse parte da família. Com os acontecimentos, acabaram por se distanciar, mas ainda o tinham em grande estima, tanto que, sem muito porquê, decidiram fazer uma espécie de despedida da vida mundana, um bota-fora para o colega que no dia seguinte se tornaria padre.
Na hora marcada, Átila chegou. A matriz estava um primor, toda iluminada para a celebração da padroeira, preparada para a chegada do bispo e para o grande momento da ordenação. Os irmãos ainda não tinham chegado. Os que passavam faziam questão de cumprimentar o quase novo padre.
- Deus abençoe você, meu filho! Deus abençoe!
- Amém! – respondia.
Átila já estava para ir embora, quando os três apareceram.
- Então, para onde vamos?
- Para a barragem. – respondeu um deles.
- Que tem lá?
- Nada, só nós. – e riram.
Rumaram em direção à barragem. Havia um barzinho, que não funcionava àquela hora, mas, por uma combinação prévia com o dono, um rapazinho ficara de prontidão para cuidar das carnes e das bebidas.
- É aqui.
Sentaram, pediram uns copos e sugeriram um brinde ao mais novo pároco da região.
- Não sei se devo.
- Deve sim! Não fizemos isso tudo à toa! Agora que está aqui, brinde conosco.
Átila pensou não haver mal em um copo de cerveja.
A conversa animou-se de tal maneira, que as bebidas desciam como se o copo não secasse. Os quatro já não se agüentavam, riam de tudo, contavam do passado, das vezes em que levavam carreiras dos meninos mais velhos porque levantavam as saias das meninas na praça.
A carne assada servida como tira-gosto começava a entalar. Átila não previa beber tanto, não era de seu costume, embora não fosse a primeira vez. Àquela altura, os irmãos contavam suas histórias, e o aspirante a padre apenas ouvia, rindo, mesmo sem saber por quê.
- ...E agora vai virar padreco.
- Não fale assim! – retrucou Átila.
- É verdade o que dizem sobre os padres? – indagou um deles.
- E o que dizem?
- Você sabe!
Os três irmãos esticavam-se nas cadeiras.
- Dizem que não são santos...
- Ninguém é santo, a não ser que mereça...
- Não é isso!
- E o que é então?
- Dizem que padre gosta de fazer safadeza.
As gargalhadas estouravam.
- Safadeza?
- Vai dizer que não sabe!
- Sabe o quê?
- Você morou com os padres...
- E daí?
- Sabe que tem safadeza.
Por um breve momento, a cena do velho padre e do seminarista tomou conta dos pensamentos de Átila.
- Melhor ir embora.
- Que foi? Não agüenta a verdade?
- A sua verdade, irmão.
- Você não é nosso irmão!
- Somos todos irmãos...
- Vai dizer que você nunca foi boneca de padre.
Os três cantarolaram no ritmo de uma marcha nupcial.
- Boneca de padre! Boneca de padre!
Um dos irmãos passou as mãos pelas costas de Átila, descendo até a cintura. A cantoria não cessava, o apelido da infância, o velho padre e o seminarista. Átila passou a mão numa das facas que estava sobre a mesa, apertou-a com força e cravou-a no pescoço do que o acariciava.
- Meu Deus!
Os outros dois não sabiam como reagir, apenas tentavam estancar o sangue que jorrava do pescoço do irmão.
Átila correu em direção ao banheiro. Ali, uma corda. Subiu no sanitário, jogou a corda por sobre um caibro, amarrou as pontas no pescoço e matou-se, não sem antes rogar perdão pelos pecados do mundo.



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