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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Todos os muros

Chegara da escola pela última vez. Da menina, restava apenas uma vaga indecisão, uma lembrança hostil dos primeiros passos, das antigas calçadas, das cadeiras de balanço em ferro trabalhado. Trancada no quarto, agonizou, sedenta para romper o casulo que sempre a acompanhara, como um casco de lesma que era obrigada a arrastar. O peso quase nulo de seu corpo confundia sua expressão de dor com a de fome, uma incontrolável leveza tomava conta de todas as suas tempestades, e o espelho, sempre em solene espera, passou a cercá-la, tragando-a para um mundo esverdeado de veias ressaltadas, galopantes, entupidas de um ódio que, longe de todas as medidas, lhe abria os olhos. Via-se nela um torpe compromisso com todas as aflições, e ali, ensangüentada, enfiava-se definitivamente em um labirinto de sombras. O rosto, de tão alvo, escondia-lhe o melhor, descartava qualquer inútil tentativa de sorrir diante de convidados que, por segurança, jamais pisaram girassóis na praça. Ocultava em curtos lances de piedade um intento cruel. Pegou a tesoura de costura e tosou os pêlos, estocando com força, mutilando-se n’alma, vendo escorrer de sua face a ledice e as veredas com que sonhava, mesmo convencida a desejar apenas aquilo que lhe viesse ao alcance do toque. De cabelos curtos, sua carne amorenada dava lugar a poças de lama e a mudez peculiar de todas as horas arrefeceu de tal modo, que cuspiu na própria imagem e fez ecoar, pela primeira vez, um grito que a devolveu ao derradeiro instante de um parto, quando a luz e o frio do mundo nos revelam a indignidade de estar vivo e nos aproximam, sem fatalidades, daquilo que, por falta de lucidez, aprendemos a chamar de morte. Desceu à sala e estava nua, como em todos os momentos de sua vida, mas agora parecia saber como enfrentar o olhar acusador das figuras que a cercavam com solenidade, numa desesperada certeza de que com ela morreriam as mazelas dos que se escondiam não de tempestades, mas dos primeiros raios de sol de uma bela manhã de domingo. Se ela os curava, muito mais forte era a vontade de vê-los no chão, pedindo perdão por tudo que deixaram de esperar ou dizer ou realizar.
Naquela tarde de maio, depois de tornar-se um ser hermeticamente recluso, de jogar no quintal as últimas mechas de menina esbranquiçada, buscou algo que a nutrisse, e isso não viria se insistisse em permanecer naquele quarto. Tornou-se uma estrábica, que a verdade irrompia como um aleijão, mas o alívio sobrevinha por nunca mais, em tempo algum, deixar-se cegar pelas lonjuras. No meio de uma movimentada avenida, esperou com paciência de adulto o momento certo de precipitar-se. Em súbito, um caminhão cegonha brotou do asfalto. Sem asas que lhe amparassem, flutuou até o tempo em que subia nos ombros do pai para ver o que havia além dos muros do quintal. Não compreendia por que tinha tanta vontade de cruzar aqueles muros. Muito mais que cruzá-los, era preciso ser um desses muros, para que, um dia, alguém tivesse vontade de atravessá-la e, para isso, buscasse ombros paternos que ressurgissem quando, nas brandas horas, se precisasse de alguma tímida recordação.

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