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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Táxi

Toda a claridade do meio-dia pendia sobre o pára-brisa. Corria a mão pela testa de quando em quando, muito por sinal de enfado do que para resolver a quentura. A senhora repuxava a roupa do filho, grudava-o no encosto, impacientava-se com o calor que fazia. Mal se distraía a mirar a janela, lá ia o fedelho escorregando pelo banco, como vasculhasse algo, como sentisse falta do safanão da mãe ao esticar-lhe a blusa. Foi assim três ou quatro vezes, enquanto no rádio davam a notícia de um tal empresário que havia cometido suicídio.
Palestrava com todo tipo de passageiro, mas não me sentia à vontade para comentar o que fosse com aquela dona. Poderia aproveitar a deixa, um homem que se mata é sempre razão para um bom prato de filosofia. Ademais, havia o calor, os buracos das ruas, a eleição próxima. Contudo, o olho trágico da mulher, rasgado na direção da janela, repelia qualquer intromissão. Só o filho ainda lhe arrancava algum movimento.
A reação veio num repentino sinal de pare, esticando a mão e apontando um homem que saía de uma revenda de carros. Segurou-me firme no ombro para que parasse o táxi sem que ele percebesse. A senhora esticou os olhos, quase com a face encostada na minha – sentia-lhe o hálito, estava ofegante, chegava a bufar. O menino aquietou-se, entretendo-se com as pessoas da calçada. Sugeri buzinar, descer do carro, o calor me roía os nervos, mas o não veio rápido.
- Vou só nesse bar comprar algo gelado, que o calor é grande! A senhora quer alguma coisa? O menino quer?
Outro não. Sequer indagou o filho, que a essa altura já tomava ares de sono. Desci do carro. Do dito bar, percebi a senhora ainda imóvel, mirando o outro. Só assim, de longe, pude realmente notar que não era uma mulher feia, via-se que se cuidava, tinha postura. Deu vontade de levar um refrigerante para ela, mas tive receio de que isso a denunciasse ao homem que esperava na calçada, encostado em um carro. O filho já dormira a essa altura. O homem fumava um cigarro, era lento nos gestos, não aparentava mal-estar, não se escondia, até cumprimentava um ou outro conhecido.
Aquilo só podia ser coisa de mulher enganada, dessas que desconfiam do menor sinal de mudança no comportamento do marido. Deveriam ser casados. Ali, enfurnada num táxi, no pico do meio-dia, espionando homem, com o filho a tira-colo, só podiam ser casados. Imagino o que não teria feito a boa peça da calçada. Traição. Não tem outra desculpa para uma situação dessas. Cheguei a ter pena daquela senhora, mas quem é que conhece as pessoas. Sabe-se lá se não é uma desvairada, que prefere um casamento medíocre, que luta até o esgotamento para manter o que já não se sustenta. Talvez queira apenas confirmar os próprios devaneios. Talvez o marido nunca a tenha traído, e é esse o dilema que aquela senhora experimentava: se foi traída, perde pela vergonha de ser trocada, mas ganha pela intuição certeira de mulher; se não, perde por se achar paranóica, mas ganha por ter um marido direito. De uma forma ou de outra, a sensação é terrível.

Continua...

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