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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Desisti de buscar veredas incompreensíveis, de rasgar bestialidades em prol de ideologias de shopping, de enfrentar, a cada dia, o leão da discórdia, de reinventar instantes, como se o que houvesse para viver fosse, necessariamente, uma continuidade. Vivemos de interrupções. Desisti de pensar, de procurar vampiros, de assustar criancinhas, de demolir esculturas clássicas, de espionar o quintal do vizinho. Não tenho mais vizinhos nem quintais. Desisti de apelidar os outros, de sorrir sorrisos vãos em sinal de cordialidade, de engolir palavrões por ofício, de vomitar poemas por segundas intenções. Desisti de arremessar insultos contra todos os que crêem em sentimentalidades, de refrescar a moleira nos olhares que, por serem íntimos, são impenetráveis. Desisti de perfurar poços artesianos, de mirar a calçada pelas persianas, de ter bichos de estimação, de refugar desejos, de ouvir, à meia-noite, alguma canção de Bob Marley. Desisti de correr atrás de solicitudes, de escalar colinas áridas, de gritar em grutas, de revelar, por torpeza, nos cálidos momentos de embriaguez, decadências e fragilidades, das que nos fazem perder as máscaras sob as máscaras sob as máscaras... Desisti de pagar por um amor cronometrado, de viver a expensas de leprosos e cegos, de aprender truques novos, de negar velhas experiências, de cerrar a alma para tudo que arrefece esperanças, de teorizar sobre o vácuo, de irromper de asfaltos, de amar sem ser amado. Desistir de ler as cartas amareladas, de ter de volta a tão bem-vinda paciência, de emocionar manequins, de ver lágrimas escorrendo no rosto de porcelana dos que se julgam inocentes, enquanto condenam a humanidade ao desterro. Desisti de ver televisão, de perder tempo racionalizando o incômodo crepúsculo do domingo, de ir à igreja, de ter fé em qualquer porta que se me abra. Desisti de procurar em muros e fachadas a sofrível carinha do tenha-um-bom-dia, de participar de folguedos e reisados, de desfechar escrúpulos nos tolos momentos desejosos, de dominar asperezas, de resgatar impossibilidades, de alienar os mais moços, de parir o futuro. Desisti de manter as aparências, de insistir em decências, de angariar simpatias, de ser o primogênito do mundo, de cobrar esterilidade, de balbuciar jingles publicitários, de escrever sem pensar no outro, de ser as coisas, de coisificar o ser. Desistir de felicitar por casamentos, de emprestar alianças, de encarar finais felizes, de mecanizar Drummond, de desartificializar Spielberg, de ironizar Bush, de esfriar Clarice. Desisti de responder mensagens apócrifas, de fotografar infelizes, de implorar abraços, de sussurrar paquidermes, de abrigar gostos antigos, de revisar linhas retas, de esclarecer fantasias, de aparecer de repente, de fomentar receios, de esconder botijas, de esfacelar artérias, de morrer. Desisti de retaliar frugalidades, de desrespeitar os dogmáticos, de invejar estrangeiros, de envelhecer por remorso, de remoer aflições, de culpar o espelho, de fumar por terapia, de ceder no primeiro blefe, de buscar o que não me busca. Desisti de tentar, de tramar seqüestros, de parafrasear lingüistas, de lamber macerações, de perscrutar juventudes, de perecer inocente.

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